NOTA DO AUTOR
Esta é menos uma nota e mais um lembrete do autor sobre o
que apareceu impresso em letras pequenas algumas páginas atrás: Este livro é
uma obra de ficção. Eu o inventei. Nem os textos nem os leitores se beneficiam
de tentativas de descobrir se há fatos reais por trás de uma história fictícia.
Tais esforços são um ataque direto à crença de que histórias inventadas podem
ser relevantes, o que é mais ou menos a crença fundamental da nossa espécie.
Agradeço a sua colaboração neste quesito.
CAPÍTULO UM
altando pouco para eu completar meu décimo sétimo ano de
vida minha mãe resolveu que eu estava deprimida, provavelmente porque quase
nunca saía de casa, passava horas na cama, lia o mesmo livro várias vezes,
raramente comia e dedicava grande parte do meu abundante tempo livre pensando
na morte.
Sempre que você lê um folheto, uma página da Internet ou sei
lá o que mais sobre câncer, a depressão aparece na lista dos efeitos
colaterais. Só que, na verdade, ela não é um efeito colateral do câncer. É um
efeito colateral de se estar morrendo. (O câncer também é um efeito colateral
de se estar morrendo. Quase tudo é, na verdade.) Mas a mamãe achava que eu
precisava de tratamento, então me levou ao meu médico comum, o Jim, que
concordou que eu, de fato, estava nadando numa depressão paralisante e
totalmente clínica e, portanto, ele ia trocar meus remédios e, além disso, eu
teria que frequentar um Grupo de Apoio uma vez por semana.
O grupo era formado por um elenco rotativo de pessoas com
várias questões psicológicas desencadeadas pelos tumores. A razão de o elenco
ser rotativo? Efeito colateral de se estar morrendo.
O Grupo de Apoio era megadeprimente, óbvio. A reunião
acontecia toda quarta-feira no porão de uma igreja episcopal — uma construção
no formato de cruz com paredes de pedra. Nós nos sentávamos em uma roda bem no
meio da cruz: onde os dois pedaços de madeira um dia se cruzaram, onde esteve o
coração de Jesus.
Sabia disso porque o Patrick, Líder do Grupo de Apoio e o
único naquele lugar com mais de dezoito anos, falava sobre o coração de Jesus
todo raio de reunião, sobre como nós, jovens sobreviventes do câncer,
F
estávamos sentados bem no sagrado coração de Cristo, e tal.
Bem, era assim que acontecia no coração do Senhor: os seis
ou sete ou dez de nós chegávamos lá a pé/de cadeira de rodas, comíamos um pouco
daqueles biscoitos velhos com limonada, sentávamos na Roda da Esperança e
ouvíamos o Patrick contar pela milésima vez a história ultradeprimente e
superinfeliz da sua vida — sobre ter tido câncer nas bolas e acharem que ele ia
morrer, mas não morreu, e ali estava, já adulto, no porão de uma igreja na 137ª
cidade mais linda dos Estados Unidos, divorciado, viciado em videogames, quase
sem amigos, levando uma vida sem graça explorando seu fantástico passado com
câncer, ralando para terminar um mestrado que não vai melhorar sua perspectiva
de progresso na carreira e esperando, como todos nós, que a espada de Dâmocles
traga para ele o alívio do qual escapou muitos anos atrás, quando o câncer
levou seus testículos e lhe deixou algo que só a alma mais generosa poderia
chamar de vida.
E VOCÊS TAMBÉM PODEM TER ESSA SORTE!
Aí nós nos apresentávamos: Nome. Idade. Diagnóstico. E como
estávamos no dia. Meu nome é Hazel, dizia na minha vez. Dezesseis. Tireoide,
originalmente, mas com uma respeitável colônia satélite há muito tempo
instalada nos pulmões. E está tudo bem comigo.
Depois do último da roda, o Patrick sempre perguntava se
alguém queria se abrir. E aí começava a punheta grupal de apoio mútuo: todo
mundo falando de lutar, combater, vencer, remitir e examinar. Para não ser
injusta com o Patrick, ele nos deixava falar da morte. Mas a maioria ali não
estava morrendo. A maioria viveria até a idade adulta. Como o Patrick.
(Isso significa que havia muita competição, com todo mundo querendo
vencer não só o câncer, mas também as outras pessoas da roda. Tipo, eu sei que
não faz o menor sentido, mas quando você ouve que tem, por exemplo, vinte por
cento de chance de viver cinco anos, e faz as contas e conclui que isso é uma
chance em cinco… você olha em volta e pensa, como qualquer pessoa saudável
faria: eu preciso durar mais que quatro desses desgraçados.)
A única coisa que salvava no Grupo de Apoio era um menino
chamado Isaac, um magrelo de rosto comprido, com cabelos
loiros e lisos que cobriam um de seus olhos.
E seu problema eram os olhos. Ele teve um tipo
inacreditavelmente improvável de câncer ocular. Um olho foi extraído quando ele
era pequeno, e agora o Isaac usava um par de óculos fundo de garrafa que fazia
os olhos (tanto o de verdade quanto o de vidro) parecerem sobrenaturalmente
grandes, como se a cabeça inteira fosse basicamente o globo ocular de mentira e
o de verdade olhando para você. Pelo que pude entender das raras vezes que ele
se abriu para o grupo, uma recorrência colocou o olho que resta em perigo
mortal.
O Isaac e eu nos comunicávamos quase exclusivamente por meio
de suspiros. Cada vez que alguém falava de dietas anticâncer, de cheirar
cartilagem de tubarão em pó ou sei lá, ele me olhava e suspirava de leve. Eu
balançava a cabeça em um movimento microscópico e dava um suspiro em resposta.
* * *
Então o Grupo de Apoio deu o que tinha de dar, e depois de
algumas semanas eu passei a surtar quando tocavam no assunto. Na verdade, na
quarta-feira em que conheci o Augustus Waters, tinha feito de tudo para me
livrar da ida à sessão de grupo enquanto estava sentada no sofá com a mamãe, no
meio da terceira parte da maratona de doze horas da temporada anterior de
America’s Next Top Model, que, confesso, já tinha visto, mas mesmo assim…
Eu: ‚Eu me recuso a ir ao Grupo de Apoio.‛
Mamãe: ‚Um dos sintomas da depressão é a falta de interesse
em participar de atividades.‛
Eu: ‚Por favor, mãe, deixe eu ficar vendo America’s Next Top
Model. Isso é uma atividade.‛
Mamãe: ‚Televisão é passividade.‛
Eu: ‚Pô, mãe, por favor…‛
Mamãe: ‚Hazel, você já é adolescente. Não é mais criancinha.
Precisa
fazer amigos, sair de casa, viver sua vida.‛
Eu: ‚Se você quer que eu aja como adolescente, não me mande
para o Grupo de Apoio. Compre uma carteira de identidade falsa para mim e aí eu
vou sair à noite, beber vodca e tomar baseado.‛
Mamãe: ‚Para início de conversa, não se toma baseado.‛
Eu: ‚Viu? Esse é o tipo de coisa que eu saberia se você
comprasse uma carteira de identidade falsa para mim.‛
Mamãe: ‚Você vai para o Grupo de Apoio.‛
Eu: ‚SAAAAAAACO.‛
Mamãe: ‚Hazel, você merece uma vida.‛
Aquilo me fez calar a boca, mesmo não tendo conseguido
entender o que a ida ao Grupo de Apoio tinha a ver com a definição de vida. De
qualquer jeito, concordei em ir — depois de negociar o direito de gravar o
episódio e meio do ANTM que eu ia perder. Ia ao Grupo de Apoio pelo mesmo
motivo que uma vez deixei enfermeiras com um ano e meio de faculdade me
envenenarem com substâncias químicas de nomes exóticos: queria fazer meus pais
felizes. Só tem uma coisa pior nesse mundo que bater as botas aos dezesseis
anos por causa de um câncer: ter um filho que bate as botas por causa de um
câncer.
* * *
Mamãe parou na entrada de carros circular atrás da igreja às
4h56. Fingi que estava ajeitando o cilindro de oxigênio por um segundo só para
ganhar tempo.
— Quer que eu o carregue até lá dentro?
— Não, está tudo bem — respondi.
O cilindro verde só pesava uns poucos quilos e eu tinha um
carrinho de aço para transportá-lo. Aquilo me fornecia dois litros de oxigênio
por minuto através de uma cânula, um tubo transparente que se dividia bem
embaixo do meu pescoço, passava por trás das orelhas e se juntava de novo nas
narinas. A geringonça era necessária porque meus pulmões faziam um péssimo
trabalho como pulmões.
— Eu te amo — ela disse, enquanto eu saltava do carro.
— Eu também, mãe. Vejo você às seis.
— Faça amigos! — ela gritou pela janela abaixada enquanto eu
me distanciava. Não quis usar o elevador porque isso é o tipo de coisa que você
faz nos seus ‚Últimos dias no Grupo de Apoio‛, então fui de escada. Peguei um
biscoito, coloquei um pouco de limonada num copo descartável e me virei.
Um garoto olhava fixamente para mim.
Eu tinha quase certeza de nunca ter visto aquele cara na vida.
Alto e magro, mas musculoso, ele fazia a cadeira de plástico, daquelas usadas
em sala de aula, parecer minúscula. Cabelo acaju, liso e curto. Parecia ter a
minha idade, talvez um ano mais velho, e estava sentado com o cóccix na beirada
da cadeira, uma postura péssima, com uma das mãos enfiada até a metade no bolso
da calça jeans escura.
Desviei o olhar, repentinamente consciente da quantidade
infinita de coisas erradas em mim. Eu estava com uma calça jeans velha, que
algum dia foi justa mas que agora ficava folgada nos lugares mais estranhos, e
uma camiseta de malha amarela com o nome de uma banda da qual eu nem gostava
mais. Tinha também meu cabelo: cortado tipo Príncipe Valente, e eu nem tive a
preocupação de, puxa, dar uma escovada nele. Além disso, minhas bochechas
estavam ridiculamente redondas, como as de um esquilo, efeito colateral do
tratamento. Eu era uma pessoa de proporções normais com um balão no lugar da
cabeça. Isso sem falar do inchaço nos tornozelos. Mesmo assim, dei uma espiada
rápida e os olhos dele ainda estavam grudados em mim.
Foi então que entendi o verdadeiro sentido de aquilo ser
chamado de contato visual.
Andei até a roda e me sentei ao lado do Isaac, a duas
cadeiras do garoto. Olhei de novo, rapidamente. Ele ainda me observava.
Na boa, vou logo dizendo: ele era um gato. Se um cara que
não é gato encara você sem parar, isso é, na melhor das hipóteses, esquisito, e
na pior, algum tipo de assédio. Mas se é um cara gato… na boa…
Peguei meu celular e apertei uma tecla para ver as horas. Os
lugares
na roda foram ocupados por azarados de doze a dezoito anos
e, então, o Patrick deu início aos trabalhos com a prece da serenidade: Senhor,
dê-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para
modificar as que posso, e sabedoria para reconhecer a diferença entre elas. O
garoto ainda estava me encarando. Senti meu rosto ficar vermelho.
Por fim, resolvi que a melhor estratégia seria também olhar
fixamente para ele. Afinal de contas, os garotos não detêm o monopólio da Atividade
Encaradora. Foquei nele enquanto o Patrick explicava pela milésima vez sua
ausência debolas etc., e aquilo logo virou um Jogo do Sério. Depois de um tempo
o garoto sorriu e, até que enfim, desviou os olhos azuis. Quando me olhou de
novo, arqueei as sobrancelhas como que dizendo: ganhei.
Ele deu de ombros. O Patrick prosseguiu e, enfim, a hora das
apresentações chegou.
— Isaac, talvez você queira ser o primeiro hoje. Sei que
está enfrentando um grande desafio no momento.
— É — o Isaac disse. — Meu nome é Isaac. Tenho dezessete
anos. Parece que vou precisar ser operado em duas semanas, depois vou ficar
cego. Não estou reclamando nem nada porque sei que poderia ser pior, como no
caso de alguns aqui, mas, quer dizer, ficar cego é, tipo, uma droga. Ter uma namorada
me ajuda. Além de amigos como o Augustus. — Ele balançou a cabeça na direção do
garoto, que agora tinha nome. — Pois é… — continuou. Ele estava olhando para as
mãos, os dedos cruzados parecendo o topo de uma tenda indígena. — Não há nada
que se possa fazer para mudar isso.
— Estamos do seu lado, Isaac — o Patrick falou. — Vamos lá,
pessoal, digam para o Isaac ouvir.
E então todos nós, em uníssono,
dissemos:
— Estamos do seu lado, Isaac.
O Michael foi o próximo. Ele tinha doze anos. Sofria de
leucemia. Desde que se entendia por gente. E estava bem. (Pelo menos foi o que
disse. Ele desceu de elevador.)
A Lida tinha dezesseis anos e era bonita o suficiente para
ser alvo do olhar do cara gato. Era frequentadora assídua das reuniões — estava
em
um longo período de remissão de um câncer de apêndice, que
eu nem sabia que existia. Ela disse — como em todas as outras vezes que eu fui
às sessões do grupo — que se sentia forte, o que para mim, com aquela chuvinha
de oxigênio fazendo cosquinhas no nariz, era o mesmo que tirar onda. Outros
cinco falaram antes do cara gato. Ele deu um sorrisinho quando chegou sua vez.
A voz era baixa, aveludada e supersensual.
— Meu nome é Augustus Waters — disse. — Tenho dezessete
anos. Tive uma pitada de osteossarcoma um ano e meio atrás, mas só estou aqui
hoje porque o Isaac pediu.
— E como está se sentindo? — o Patrick perguntou.
— Ah, maravilha. — Augustus Waters deu um sorrisinho. —
Estou numa montanha-russa que só vai para cima, amigão.
Quando chegou minha vez, eu disse:
— Meu nome é Hazel. Tenho dezesseis anos. Tireoide com
metástase nos pulmões. Estou bem. A hora passou rápido. Lutas foram recontadas,
batalhas ganhas em guerras que com certeza seriam perdidas; a esperança virou
tábua de salvação; famílias foram celebradas e recriminadas; foi consenso que
os amigos não entendiam nada; lágrimas foram compartilhadas, e consolo,
oferecido.
Nem eu nem o Augustus Waters tínhamos soltado uma palavra,
até que o Patrick disse:
— Augustus, talvez você queira falar de seus medos para o
grupo.
— Meus medos?
— É.
— Eu tenho medo de ser esquecido — disse ele de bate-pronto.
— Tenho medo disso como um cego tem medo de escuro.
— Calma aí… — disse Isaac, abrindo um sorriso.
— Estou sendo insensível? — perguntou o Augustus. — Eu posso
ser bem cego quando o assunto são os sentimentos das outras pessoas.
O Isaac estava rindo, mas o Patrick levantou um dedo,
repreendendo-o.
— Por favor, Augustus. Voltemos a você e às suas questões.
Disse que tem medo de ser esquecido?
— É — respondeu o Augustus.
O Patrick pareceu meio perdido.
— Alguém, ahn, alguém gostaria de fazer algum comentário?
Eu não frequentava uma escola de verdade havia três anos.
Meus melhores amigos eram meus pais. Meu terceiro melhor amigo era um escritor
que nem sabia que eu existia. Eu era relativamente tímida — de jeito nenhum o
tipo que levanta a mão para falar. E, mesmo assim, só dessa vez, resolvi abrir
o verbo. Levantei a mão, e o Patrick, a satisfação estampada na cara, disse:
— Hazel! Por fim, resolvi que a melhor estratégia seria também olhar
fixamente para ele. Afinal de contas, os garotos não detêm o monopólio da Atividade
Encaradora. Foquei nele enquanto o Patrick explicava pela milésima vez sua
ausência debolas etc., e aquilo logo virou um Jogo do Sério. Depois de um tempo
o garoto sorriu e, até que enfim, desviou os olhos azuis. Quando me olhou de
novo, arqueei as sobrancelhas como que dizendo: ganhei.
Ele deu de ombros. O Patrick prosseguiu e, enfim, a hora das
apresentações chegou.
— Isaac, talvez você queira ser o primeiro hoje. Sei que
está enfrentando um grande desafio no momento.
— É — o Isaac disse. — Meu nome é Isaac. Tenho dezessete
anos. Parece que vou precisar ser operado em duas semanas, depois vou ficar
cego. Não estou reclamando nem nada porque sei que poderia ser pior, como no
caso de alguns aqui, mas, quer dizer, ficar cego é, tipo, uma droga. Ter uma namorada
me ajuda. Além de amigos como o Augustus. — Ele balançou a cabeça na direção do
garoto, que agora tinha nome. — Pois é… — continuou. Ele estava olhando para as
mãos, os dedos cruzados parecendo o topo de uma tenda indígena. — Não há nada
que se possa fazer para mudar isso.
— Estamos do seu lado, Isaac — o Patrick falou. — Vamos lá,
pessoal, digam para o Isaac ouvir.
E então todos nós, em uníssono,
dissemos:
— Estamos do seu lado, Isaac.
O Michael foi o próximo. Ele tinha doze anos. Sofria de
leucemia. Desde que se entendia por gente. E estava bem. (Pelo menos foi o que
disse. Ele desceu de elevador.)
A Lida tinha dezesseis anos e era bonita o suficiente para
ser alvo do olhar do cara gato. Era frequentadora assídua das reuniões — estava
em
um longo período de remissão de um câncer de apêndice, que
eu nem sabia que existia. Ela disse — como em todas as outras vezes que eu fui
às sessões do grupo — que se sentia forte, o que para mim, com aquela chuvinha
de oxigênio fazendo cosquinhas no nariz, era o mesmo que tirar onda. Outros
cinco falaram antes do cara gato. Ele deu um sorrisinho quando chegou sua vez.
A voz era baixa, aveludada e supersensual.
— Meu nome é Augustus Waters — disse. — Tenho dezessete
anos. Tive uma pitada de osteossarcoma um ano e meio atrás, mas só estou aqui
hoje porque o Isaac pediu.
— E como está se sentindo? — o Patrick perguntou.
— Ah, maravilha. — Augustus Waters deu um sorrisinho. —
Estou numa montanha-russa que só vai para cima, amigão.
Quando chegou minha vez, eu disse:
— Meu nome é Hazel. Tenho dezesseis anos. Tireoide com
metástase nos pulmões. Estou bem. A hora passou rápido. Lutas foram recontadas,
batalhas ganhas em guerras que com certeza seriam perdidas; a esperança virou
tábua de salvação; famílias foram celebradas e recriminadas; foi consenso que
os amigos não entendiam nada; lágrimas foram compartilhadas, e consolo,
oferecido.
Nem eu nem o Augustus Waters tínhamos soltado uma palavra,
até que o Patrick disse:
— Augustus, talvez você queira falar de seus medos para o
grupo.
— Meus medos?
— É.
— Eu tenho medo de ser esquecido — disse ele de bate-pronto.
— Tenho medo disso como um cego tem medo de escuro.
— Calma aí… — disse Isaac, abrindo um sorriso.
— Estou sendo insensível? — perguntou o Augustus. — Eu posso
ser bem cego quando o assunto são os sentimentos das outras pessoas.
O Isaac estava rindo, mas o Patrick levantou um dedo,
repreendendo-o.
— Por favor, Augustus. Voltemos a você e às suas questões.
Disse que tem medo de ser esquecido?
— É — respondeu o Augustus.
O Patrick pareceu meio perdido.
— Alguém, ahn, alguém gostaria de fazer algum comentário?
Eu não frequentava uma escola de verdade havia três anos.
Meus melhores amigos eram meus pais. Meu terceiro melhor amigo era um escritor
que nem sabia que eu existia. Eu era relativamente tímida — de jeito nenhum o
tipo que levanta a mão para falar. E, mesmo assim, só dessa vez, resolvi abrir
o verbo. Levantei a mão, e o Patrick, a satisfação estampada na cara, disse:
— Hazel! Por fim, resolvi que a melhor estratégia seria também olhar
fixamente para ele. Afinal de contas, os garotos não detêm o monopólio da Atividade
Encaradora. Foquei nele enquanto o Patrick explicava pela milésima vez sua
ausência debolas etc., e aquilo logo virou um Jogo do Sério. Depois de um tempo
o garoto sorriu e, até que enfim, desviou os olhos azuis. Quando me olhou de
novo, arqueei as sobrancelhas como que dizendo: ganhei.
Ele deu de ombros. O Patrick prosseguiu e, enfim, a hora das
apresentações chegou.
— Isaac, talvez você queira ser o primeiro hoje. Sei que
está enfrentando um grande desafio no momento.
— É — o Isaac disse. — Meu nome é Isaac. Tenho dezessete
anos. Parece que vou precisar ser operado em duas semanas, depois vou ficar
cego. Não estou reclamando nem nada porque sei que poderia ser pior, como no
caso de alguns aqui, mas, quer dizer, ficar cego é, tipo, uma droga. Ter uma namorada
me ajuda. Além de amigos como o Augustus. — Ele balançou a cabeça na direção do
garoto, que agora tinha nome. — Pois é… — continuou. Ele estava olhando para as
mãos, os dedos cruzados parecendo o topo de uma tenda indígena. — Não há nada
que se possa fazer para mudar isso.
— Estamos do seu lado, Isaac — o Patrick falou. — Vamos lá,
pessoal, digam para o Isaac ouvir.
E então todos nós, em uníssono,
dissemos:
— Estamos do seu lado, Isaac.
O Michael foi o próximo. Ele tinha doze anos. Sofria de
leucemia. Desde que se entendia por gente. E estava bem. (Pelo menos foi o que
disse. Ele desceu de elevador.)
A Lida tinha dezesseis anos e era bonita o suficiente para
ser alvo do olhar do cara gato. Era frequentadora assídua das reuniões — estava
em
um longo período de remissão de um câncer de apêndice, que
eu nem sabia que existia. Ela disse — como em todas as outras vezes que eu fui
às sessões do grupo — que se sentia forte, o que para mim, com aquela chuvinha
de oxigênio fazendo cosquinhas no nariz, era o mesmo que tirar onda. Outros
cinco falaram antes do cara gato. Ele deu um sorrisinho quando chegou sua vez.
A voz era baixa, aveludada e supersensual.
— Meu nome é Augustus Waters — disse. — Tenho dezessete
anos. Tive uma pitada de osteossarcoma um ano e meio atrás, mas só estou aqui
hoje porque o Isaac pediu.
— E como está se sentindo? — o Patrick perguntou.
— Ah, maravilha. — Augustus Waters deu um sorrisinho. —
Estou numa montanha-russa que só vai para cima, amigão.
Quando chegou minha vez, eu disse:
— Meu nome é Hazel. Tenho dezesseis anos. Tireoide com
metástase nos pulmões. Estou bem. A hora passou rápido. Lutas foram recontadas,
batalhas ganhas em guerras que com certeza seriam perdidas; a esperança virou
tábua de salvação; famílias foram celebradas e recriminadas; foi consenso que
os amigos não entendiam nada; lágrimas foram compartilhadas, e consolo,
oferecido.
Nem eu nem o Augustus Waters tínhamos soltado uma palavra,
até que o Patrick disse:
— Augustus, talvez você queira falar de seus medos para o
grupo.
— Meus medos?
— É.
— Eu tenho medo de ser esquecido — disse ele de bate-pronto.
— Tenho medo disso como um cego tem medo de escuro.
— Calma aí… — disse Isaac, abrindo um sorriso.
— Estou sendo insensível? — perguntou o Augustus. — Eu posso
ser bem cego quando o assunto são os sentimentos das outras pessoas.
O Isaac estava rindo, mas o Patrick levantou um dedo,
repreendendo-o.
— Por favor, Augustus. Voltemos a você e às suas questões.
Disse que tem medo de ser esquecido?
— É — respondeu o Augustus.
O Patrick pareceu meio perdido.
— Alguém, ahn, alguém gostaria de fazer algum comentário?
Eu não frequentava uma escola de verdade havia três anos.
Meus melhores amigos eram meus pais. Meu terceiro melhor amigo era um escritor
que nem sabia que eu existia. Eu era relativamente tímida — de jeito nenhum o
tipo que levanta a mão para falar. E, mesmo assim, só dessa vez, resolvi abrir
o verbo. Levantei a mão, e o Patrick, a satisfação estampada na cara, disse:
— Hazel!
Eu estava, tenho certeza de que foi isso o que ele pensou,
me abrindo. ‚Me tornando parte do grupo.‛
Olhei na direção do Augustus Waters, que me encarava. Dava
quase para ver através dos olhos dele, de tão azuis.
— Vai chegar um dia — eu disse — em que todos vamos estar
mortos. Todos nós. Vai chegar um dia em que não vai sobrar nenhum ser humano
sequer para lembrar que alguém já existiu ou que nossa espécie fez qualquer
coisa nesse mundo. Não vai sobrar ninguém para se lembrar de Aristóteles ou de
Cleópatra, quanto mais de você. Tudo o que fizemos, construímos, escrevemos,
pensamos e descobrimos vai ser esquecido e tudo isso aqui — fiz um gesto
abrangente — vai ter sido inútil. Pode ser que esse dia chegue logo e pode ser
que demore milhões de anos, mas, mesmo que o mundo sobreviva a uma explosão do
Sol, não vamos viver para sempre. Houve um tempo antes do surgimento da
consciência nos organismos vivos, e vai haver outro depois. E se a
inevitabilidade do esquecimento humano preocupa você, sugiro que deixe esse
assunto para lá. Deus sabe que é isso o que todo mundo faz.
Eu tinha aprendido aquilo com meu já citado terceiro melhor
amigo, Peter Van Houten, o autor recluso de Uma aflição imperial — de todos os
meus livros, o mais próximo de uma Bíblia. Peter Van Houten era a única pessoa
que eu conhecia que parecia: (a) entender o que era estar morrendo, e (b) não
ter morrido.
Assim que terminei fez-se um longo silêncio, e eu pude ver
um sorriso
se abrindo de um canto ao outro no rosto do Augustus — não o
tipo de sorriso cafajeste do garoto tentando parecer sexy ao me encarar, mas um
sorriso sincero, quase maior que a cara dele.
— Caramba! — disse ele baixinho. — Não é que você é mesmo
demais?
Nós dois não falamos mais nada até o fim da reunião, quando
todos se deram as mãos e o Patrick nos guiou em uma prece.
— Senhor Jesus Cristo, estamos aqui reunidos em Seu coração,
literalmente em Seu coração, como sobreviventes do câncer. O Senhor e somente o
Senhor nos conhece como conhecemos a nós mesmos. Nos guie pela vida e para a
Luz em nossos períodos de provação. Oremos pelos olhos do Isaac, pelo sangue do
Michael e do Jamie, pelos ossos do Augustus, pelos pulmões da Hazel, pela
garganta do James. Oremos para que o Senhor consiga nos curar e para que
possamos sentir Seu amor e Sua paz, que excedem todo o entendimento. E nos
lembremos em nossos corações daqueles que um dia conhecemos, amamos e que foram
para a Sua casa: Maria, Kade, Joseph, Haley, Abigail, Angelina, Taylor,
Gabriel…
A lista era grande. Tem muita gente morta no mundo. E
enquanto o Patrick continuava a ladainha, lendo a relação em uma folha de papel
porque era muito comprida para ser decorada, fiquei de olhos fechados, tentando
elevar os pensamentos em oração, mas a maior parte do tempo imaginava o dia em
que meu nome ocuparia um lugarzinho ali, bem no fim da lista, quando ninguém
mais está prestando atenção.
Quando o Patrick acabou, entoamos juntos aquele mantra
idiota — VIVENDO O MELHOR DA NOSSA VIDA HOJE — e foi o fim da reunião. O
Augustus Waters empurrou o corpo para fora da cadeira e caminhou na minha
direção. O andar dele era tão cafajeste quanto o sorriso. Ele parou na minha
frente, mas manteve uma certa distância para eu poder olhá-lo nos olhos sem ter
de esticar o pescoço.
— Qual é o seu nome? — ele perguntou.
— Hazel.
— Não, o nome completo.
— Ahn, Hazel Grace Lancaster.
Ele ia dizendo alguma coisa quando o Isaac se aproximou.
— Só um instante — falou, levantando um dedo, e virou-se
para o Isaac. — Isso foi pior do que você tinha dito, na verdade.
— Eu disse que era um tédio.
— Por que você se dá o trabalho de vir aqui?
— Sei lá. Meio que ajuda…?
O Augustus inclinou o corpo achando que assim eu não
conseguiria ouvi-lo.
— Ela vem sempre? — Não deu para escutar o comentário do
Isaac, mas o Augustus respondeu:
— Quer saber? — Ele pegou o Isaac pelos ombros e deu meio
passo para trás.
— Conte à Hazel da ida ao médico.
O Isaac apoiou uma das mãos na mesa de biscoitos e virou o
olho enorme para mim.
— Tá, é que eu fui ao médico hoje de manhã e estava falando
para o meu cirurgião que preferiria ser surdo a ser cego. E ele disse: ‚Não é
assim que as coisas funcionam.‛ Aí eu falei, tipo: ‚É, eu sei que não é assim;
só estou dizendo que preferiria ser surdo a ser cego se pudesse escolher, mas
sei que não posso.‛ E ele: ‚Bem, a boa notícia é que você não vai ficar surdo.‛
Eu disse: ‚Obrigado por esclarecer que meu câncer no olho não vai me deixar
surdo. É muita sorte minha ter um gênio como você me operando.‛
— Ele é mesmo um gênio — falei. — Vou tentar arrumar um
câncer qualquer no olho para poder conhecer esse cara.
— Boa sorte. Então, tá. Já vou indo. A Monica está me
esperando. Preciso olhar bastante para ela enquanto posso.
— Counterinsurgence amanhã? — o Augustus perguntou.
— Com certeza. — O Isaac deu meia-volta e subiu as escadas
correndo, pulando os degraus de dois em dois.
Augustus Waters se virou para mim:
— Literalmente.
— Literalmente? — perguntei.
— Estamos literalmente no coração de Jesus… Achei que
estivéssemos no porão de uma igreja, mas estamos literalmente no coração de
Jesus.
— Alguém deveria contar isso para Jesus — falei. — Quer
dizer, deve ser perigoso ficar guardando crianças com câncer no coração.
— Eu mesmo poderia contar — o Augustus falou —, mas, para
minha infelicidade, estou literalmente enterrado no coração Dele, então Ele não
vai conseguir me ouvir.
Eu ri. O Augustus balançou a cabeça, me olhando.
— O que foi? — perguntei.
— Nada — ele respondeu.
— Por que você está olhando para mim desse jeito?
Ele deu um sorrisinho.
— Porque você é bonita. Eu gosto de olhar para pessoas
bonitas, e faz algum tempo que resolvi não me negar os prazeres mais simples da
existência humana. — Um silêncio constrangedor se seguiu.
Mas o Augustus quebrou o gelo.
— Quer dizer, principalmente porque, como você
deliciosamente observou, tudo isso vai acabar em total esquecimento, e tal…
Eu meio que engasguei, ou suspirei, ou soltei o ar de um
jeito que pareceu quase uma tosse, e disse:
— Eu não sou boni…
— Você é tipo uma Natalie Portman milenar. Tipo a Natalie
Portman em V de Vingança.
— Não vi esse filme — falei.
— Sério? — ele perguntou. — Garota linda, de cabelo curto,
rejeita a autoridade e não consegue resistir a um cara que ela sabe que vai ser
um problema. É sua autobiografia, pelo menos até aqui, pelo que posso ver.
Cada sílaba que saía da boca dele flertava comigo.
O.k., ele meio que me deixava excitada. Eu nem sabia que
garotos podiam me deixar excitada — pelo menos não, tipo, na vida real.
Uma menina mais nova passou por nós.
— E aí, Alisa. Tudo bem? — ele perguntou.
Ela sorriu e balbuciou:
— Oi, Augustus.
— Gente do Memorial — ele explicou.
Memorial era o grande hospital de pesquisas.
— Qual você frequenta?
— O Hospital Pediátrico — respondi, meu tom de voz mais
baixo do que eu pretendia. Ele fez que sim com a cabeça. A conversa parecia ter
chegado ao fim. — Bem — falei, mexendo a cabeça vagamente na direção dos
degraus que levavam para fora do Coração Literal de Jesus. Inclinei o carrinho
do oxigênio para apoiá-lo nas rodinhas e comecei a andar. O Augustus foi
mancando ao meu lado. — Então, a gente se vê na próxima, talvez? — perguntei.
— Você deveria assistir — ele falou. — Ao V de Vingança,
quero dizer.
— Tá. Vou ver se acho para assistir.
— Não. Comigo. Na minha casa — ele disse. — Agora.
Parei de andar.
— Eu mal conheço você, Augustus Waters. Você pode muito bem
ser o assassino do machado.
Ele concordou.
— Tem toda razão, Hazel Grace.
E passou por mim, os ombros dando forma à camisa polo verde,
as costas retas, os passos da direita um pouco mais marcantes enquanto andava
firme e confiante apoiado no que eu determinei ser uma prótese. Às vezes o
osteossarcoma leva um dos membros só para dar uma sondada em você. Depois, se
gostar, leva o restante.
Eu o segui escada acima, devagar, ficando para trás. Degraus
não são o forte dos meus pulmões.
Aí fomos do coração de Jesus até o estacionamento, o frescor
da brisa da primavera na medida certa, a luz do fim de tarde divina em sua
nocividade.
Mamãe não tinha chegado ainda, o que era estranho, porque
ela quase sempre estava lá esperando por mim. Olhei em volta e vi que uma
garota
alta, morena e boazuda imprensava o Isaac na parede de pedra
da igreja, beijando o menino de um jeito quase agressivo. Estávamos tão perto
que eu podia escutar os ruídos estranhos das duas bocas grudadas, e ouvi o
Isaac dizendo ‚sempre‛, e ela respondendo com ‚sempre‛ também. Eu estava, tenho certeza de que foi isso o que ele pensou,
me abrindo. ‚Me tornando parte do grupo.‛
Olhei na direção do Augustus Waters, que me encarava. Dava
quase para ver através dos olhos dele, de tão azuis.
— Vai chegar um dia — eu disse — em que todos vamos estar
mortos. Todos nós. Vai chegar um dia em que não vai sobrar nenhum ser humano
sequer para lembrar que alguém já existiu ou que nossa espécie fez qualquer
coisa nesse mundo. Não vai sobrar ninguém para se lembrar de Aristóteles ou de
Cleópatra, quanto mais de você. Tudo o que fizemos, construímos, escrevemos,
pensamos e descobrimos vai ser esquecido e tudo isso aqui — fiz um gesto
abrangente — vai ter sido inútil. Pode ser que esse dia chegue logo e pode ser
que demore milhões de anos, mas, mesmo que o mundo sobreviva a uma explosão do
Sol, não vamos viver para sempre. Houve um tempo antes do surgimento da
consciência nos organismos vivos, e vai haver outro depois. E se a
inevitabilidade do esquecimento humano preocupa você, sugiro que deixe esse
assunto para lá. Deus sabe que é isso o que todo mundo faz.
Eu tinha aprendido aquilo com meu já citado terceiro melhor
amigo, Peter Van Houten, o autor recluso de Uma aflição imperial — de todos os
meus livros, o mais próximo de uma Bíblia. Peter Van Houten era a única pessoa
que eu conhecia que parecia: (a) entender o que era estar morrendo, e (b) não
ter morrido.
Assim que terminei fez-se um longo silêncio, e eu pude ver
um sorriso
se abrindo de um canto ao outro no rosto do Augustus — não o
tipo de sorriso cafajeste do garoto tentando parecer sexy ao me encarar, mas um
sorriso sincero, quase maior que a cara dele.
— Caramba! — disse ele baixinho. — Não é que você é mesmo
demais?
Nós dois não falamos mais nada até o fim da reunião, quando
todos se deram as mãos e o Patrick nos guiou em uma prece.
— Senhor Jesus Cristo, estamos aqui reunidos em Seu coração,
literalmente em Seu coração, como sobreviventes do câncer. O Senhor e somente o
Senhor nos conhece como conhecemos a nós mesmos. Nos guie pela vida e para a
Luz em nossos períodos de provação. Oremos pelos olhos do Isaac, pelo sangue do
Michael e do Jamie, pelos ossos do Augustus, pelos pulmões da Hazel, pela
garganta do James. Oremos para que o Senhor consiga nos curar e para que
possamos sentir Seu amor e Sua paz, que excedem todo o entendimento. E nos
lembremos em nossos corações daqueles que um dia conhecemos, amamos e que foram
para a Sua casa: Maria, Kade, Joseph, Haley, Abigail, Angelina, Taylor,
Gabriel…
A lista era grande. Tem muita gente morta no mundo. E
enquanto o Patrick continuava a ladainha, lendo a relação em uma folha de papel
porque era muito comprida para ser decorada, fiquei de olhos fechados, tentando
elevar os pensamentos em oração, mas a maior parte do tempo imaginava o dia em
que meu nome ocuparia um lugarzinho ali, bem no fim da lista, quando ninguém
mais está prestando atenção.
Quando o Patrick acabou, entoamos juntos aquele mantra
idiota — VIVENDO O MELHOR DA NOSSA VIDA HOJE — e foi o fim da reunião. O
Augustus Waters empurrou o corpo para fora da cadeira e caminhou na minha
direção. O andar dele era tão cafajeste quanto o sorriso. Ele parou na minha
frente, mas manteve uma certa distância para eu poder olhá-lo nos olhos sem ter
de esticar o pescoço.
— Qual é o seu nome? — ele perguntou.
— Hazel.
— Não, o nome completo.
— Ahn, Hazel Grace Lancaster.
Ele ia dizendo alguma coisa quando o Isaac se aproximou.
— Só um instante — falou, levantando um dedo, e virou-se
para o Isaac. — Isso foi pior do que você tinha dito, na verdade.
— Eu disse que era um tédio.
— Por que você se dá o trabalho de vir aqui?
— Sei lá. Meio que ajuda…?
O Augustus inclinou o corpo achando que assim eu não
conseguiria ouvi-lo.
— Ela vem sempre? — Não deu para escutar o comentário do
Isaac, mas o Augustus respondeu:
— Quer saber? — Ele pegou o Isaac pelos ombros e deu meio
passo para trás.
— Conte à Hazel da ida ao médico.
O Isaac apoiou uma das mãos na mesa de biscoitos e virou o
olho enorme para mim.
— Tá, é que eu fui ao médico hoje de manhã e estava falando
para o meu cirurgião que preferiria ser surdo a ser cego. E ele disse: ‚Não é
assim que as coisas funcionam.‛ Aí eu falei, tipo: ‚É, eu sei que não é assim;
só estou dizendo que preferiria ser surdo a ser cego se pudesse escolher, mas
sei que não posso.‛ E ele: ‚Bem, a boa notícia é que você não vai ficar surdo.‛
Eu disse: ‚Obrigado por esclarecer que meu câncer no olho não vai me deixar
surdo. É muita sorte minha ter um gênio como você me operando.‛
— Ele é mesmo um gênio — falei. — Vou tentar arrumar um
câncer qualquer no olho para poder conhecer esse cara.
— Boa sorte. Então, tá. Já vou indo. A Monica está me
esperando. Preciso olhar bastante para ela enquanto posso.
— Counterinsurgence amanhã? — o Augustus perguntou.
— Com certeza. — O Isaac deu meia-volta e subiu as escadas
correndo, pulando os degraus de dois em dois.
Augustus Waters se virou para mim:
— Literalmente.
— Literalmente? — perguntei.
— Estamos literalmente no coração de Jesus… Achei que
estivéssemos no porão de uma igreja, mas estamos literalmente no coração de
Jesus.
— Alguém deveria contar isso para Jesus — falei. — Quer
dizer, deve ser perigoso ficar guardando crianças com câncer no coração.
— Eu mesmo poderia contar — o Augustus falou —, mas, para
minha infelicidade, estou literalmente enterrado no coração Dele, então Ele não
vai conseguir me ouvir.
Eu ri. O Augustus balançou a cabeça, me olhando.
— O que foi? — perguntei.
— Nada — ele respondeu.
— Por que você está olhando para mim desse jeito?
Ele deu um sorrisinho.
— Porque você é bonita. Eu gosto de olhar para pessoas
bonitas, e faz algum tempo que resolvi não me negar os prazeres mais simples da
existência humana. — Um silêncio constrangedor se seguiu.
Mas o Augustus quebrou o gelo.
— Quer dizer, principalmente porque, como você
deliciosamente observou, tudo isso vai acabar em total esquecimento, e tal…
Eu meio que engasguei, ou suspirei, ou soltei o ar de um
jeito que pareceu quase uma tosse, e disse:
— Eu não sou boni…
— Você é tipo uma Natalie Portman milenar. Tipo a Natalie
Portman em V de Vingança.
— Não vi esse filme — falei.
— Sério? — ele perguntou. — Garota linda, de cabelo curto,
rejeita a autoridade e não consegue resistir a um cara que ela sabe que vai ser
um problema. É sua autobiografia, pelo menos até aqui, pelo que posso ver.
Cada sílaba que saía da boca dele flertava comigo.
O.k., ele meio que me deixava excitada. Eu nem sabia que
garotos podiam me deixar excitada — pelo menos não, tipo, na vida real.
Uma menina mais nova passou por nós.
— E aí, Alisa. Tudo bem? — ele perguntou.
Ela sorriu e balbuciou:
— Oi, Augustus.
— Gente do Memorial — ele explicou.
Memorial era o grande hospital de pesquisas.
— Qual você frequenta?
— O Hospital Pediátrico — respondi, meu tom de voz mais
baixo do que eu pretendia. Ele fez que sim com a cabeça. A conversa parecia ter
chegado ao fim. — Bem — falei, mexendo a cabeça vagamente na direção dos
degraus que levavam para fora do Coração Literal de Jesus. Inclinei o carrinho
do oxigênio para apoiá-lo nas rodinhas e comecei a andar. O Augustus foi
mancando ao meu lado. — Então, a gente se vê na próxima, talvez? — perguntei.
— Você deveria assistir — ele falou. — Ao V de Vingança,
quero dizer.
— Tá. Vou ver se acho para assistir.
— Não. Comigo. Na minha casa — ele disse. — Agora.
Parei de andar.
— Eu mal conheço você, Augustus Waters. Você pode muito bem
ser o assassino do machado.
Ele concordou.
— Tem toda razão, Hazel Grace.
E passou por mim, os ombros dando forma à camisa polo verde,
as costas retas, os passos da direita um pouco mais marcantes enquanto andava
firme e confiante apoiado no que eu determinei ser uma prótese. Às vezes o
osteossarcoma leva um dos membros só para dar uma sondada em você. Depois, se
gostar, leva o restante.
Eu o segui escada acima, devagar, ficando para trás. Degraus
não são o forte dos meus pulmões.
Aí fomos do coração de Jesus até o estacionamento, o frescor
da brisa da primavera na medida certa, a luz do fim de tarde divina em sua
nocividade.
Mamãe não tinha chegado ainda, o que era estranho, porque
ela quase sempre estava lá esperando por mim. Olhei em volta e vi que uma
garota
alta, morena e boazuda imprensava o Isaac na parede de pedra
da igreja, beijando o menino de um jeito quase agressivo. Estávamos tão perto
que eu podia escutar os ruídos estranhos das duas bocas grudadas, e ouvi o
Isaac dizendo ‚sempre‛, e ela respondendo com ‚sempre‛ também.
O Augustus apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do ‚sempre‛?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— ‚Sempre‛ é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos
meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter trocado quatro
milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a
Alisa. Aí sobramos só o Augustus e eu, observando o Isaac e a Monica, que
continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede de um local
de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo,
a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se aquilo seria
gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Isaac levando em conta o fato de
que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem aproveitar enquanto ainda há
apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei,
baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Augustus disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Hazel Grace.
Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa estranheza. —
Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a
menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Augustus colocou a mão no bolso e tirou de lá, por
incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha e
colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu
Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente ou
pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco tolerável me encara
e chama minha atenção para utilizações incorretas da literalidade e me compara
a atrizes e me convida para ver um filme na casa dele. Mas é claro que sempre
tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE
UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa em troca da chance de ter MAIS
CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe eu só dizer para você como é não conseguir
respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante. Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da
mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando o Augustus
Waters para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais adiante na
rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo, fizesse amigos
ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim. Nem sei
direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito dele, e eu queria
dar um soco na cara do Augustus Waters e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por
outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-fio com
meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no carrinho ao meu lado
parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma corrente no tornozelo de
um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele
pegar a minha.
Puxei a mão mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando
mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma metáfora.
Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de
completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias
metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero.
— Sou um grande adepto da metáfora, Hazel Grace.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que
se abriu.
— Vou ver um filme com o Augustus Waters — falei. — Grave,
por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim.
CAPÍTULO DOIS
ugustus Waters dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na
arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de
segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço
chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa
— sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente
do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para
evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia
pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio,
ouvindo só os barulhos do carro, quando o Augustus disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese
aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que
a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem. Não é o meu
caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou
menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O
Augustus pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de
segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas,
aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o
instrutor disse: ‚Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado,
tecnicamente falando.‛ — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi
mais um caso de ‚privilégio do câncer‛.
Os ‚privilégios do câncer‛ são pequenas coisas que as
crianças com a
A
doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete
autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de
casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Augustus
meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que
não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que
esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade
de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida
aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais
tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão
esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou
atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por
um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Augustus a versão resumida do meu milagre:
diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei
que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo:
Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era
incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do
pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram
quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento,
mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente,
eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele
rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar
totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande
quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido
perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros
medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável,
principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia,
e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: ‚Você está pronta,
querida?‛ Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com
aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de
mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero,
sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que
permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões,
passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo
que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai
fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que
acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar
acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica
do câncer, Maria, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo
depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer
efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com
remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não
funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para
grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas.
Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os
tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos
dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões
que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar
funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da
chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só
resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.)
Mas, enquanto contava tudo ao Augustus Waters, pintei o quadro mais otimista
possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu
certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no
MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso
explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço,
de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e
incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento
com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à
esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de
carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no
hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o
coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo. Amigos
de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma
ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis,
prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O
Augustus me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. —
Estão espalhados por toda parte.
* * *
O pai e a mãe dele o chamavam de Gus. Estavam preparando
enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da
pia
estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango
nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito
surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Augustus me
fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial.
Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se
aproveitar dela.
— Esta é Hazel Grace — ele disse, me apresentando
formalmente.
— Só Hazel — falei.
— Como vai, Hazel? — o pai perguntou. Ele era alto, quase
tão alto quanto o Gus, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não
são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac?
— Foi inacreditável — disse o Gus.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. —
Hazel, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha
resposta deveria ser calculada para agradar ao Augustus ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial
quando estávamos no meio do tratamento do Gus — o pai dele disse. — Todo mundo
era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as
melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa
virar um Encorajamento — o Augustus disse, e o pai pareceu ficar um pouco
chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem e
falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos
Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. —
O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela
era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez.
Ah,
só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela
disse.
— Os animais são fofos demais? — o Gus perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou
responsável — falei.
O Gus abriu a boca para fazer um comentário mas pensou duas
vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as
enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Waters,
e que o toque de recolher do Gus também era às dez, e que eles desconfiavam
totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de
dez, comentando o fato de eu estar estudando — ‚ela é universitária‛, o
Augustus exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de
como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer
pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo
estranho e maravilhoso, e aí o Augustus disse:
— A Hazel e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela
possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século
vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo
alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão. O Augustus apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do ‚sempre‛?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— ‚Sempre‛ é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos
meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter trocado quatro
milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a
Alisa. Aí sobramos só o Augustus e eu, observando o Isaac e a Monica, que
continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede de um local
de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo,
a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se aquilo seria
gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Isaac levando em conta o fato de
que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem aproveitar enquanto ainda há
apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei,
baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Augustus disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Hazel Grace.
Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa estranheza. —
Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a
menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Augustus colocou a mão no bolso e tirou de lá, por
incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha e
colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu
Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente ou
pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco tolerável me encara
e chama minha atenção para utilizações incorretas da literalidade e me compara
a atrizes e me convida para ver um filme na casa dele. Mas é claro que sempre
tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE
UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa em troca da chance de ter MAIS
CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe eu só dizer para você como é não conseguir
respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante. Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da
mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando o Augustus
Waters para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais adiante na
rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo, fizesse amigos
ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim. Nem sei
direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito dele, e eu queria
dar um soco na cara do Augustus Waters e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por
outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-fio com
meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no carrinho ao meu lado
parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma corrente no tornozelo de
um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele
pegar a minha.
Puxei a mão mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando
mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma metáfora.
Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de
completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias
metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero.
— Sou um grande adepto da metáfora, Hazel Grace.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que
se abriu.
— Vou ver um filme com o Augustus Waters — falei. — Grave,
por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim.
CAPÍTULO DOIS
ugustus Waters dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na
arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de
segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço
chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa
— sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente
do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para
evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia
pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio,
ouvindo só os barulhos do carro, quando o Augustus disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese
aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que
a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem. Não é o meu
caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou
menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O
Augustus pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de
segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas,
aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o
instrutor disse: ‚Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado,
tecnicamente falando.‛ — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi
mais um caso de ‚privilégio do câncer‛.
Os ‚privilégios do câncer‛ são pequenas coisas que as
crianças com a
A
doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete
autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de
casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Augustus
meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que
não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que
esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade
de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida
aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais
tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão
esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou
atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por
um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Augustus a versão resumida do meu milagre:
diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei
que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo:
Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era
incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do
pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram
quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento,
mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente,
eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele
rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar
totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande
quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido
perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros
medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável,
principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia,
e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: ‚Você está pronta,
querida?‛ Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com
aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de
mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero,
sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que
permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões,
passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo
que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai
fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que
acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar
acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica
do câncer, Maria, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo
depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer
efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com
remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não
funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para
grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas.
Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os
tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos
dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões
que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar
funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da
chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só
resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.)
Mas, enquanto contava tudo ao Augustus Waters, pintei o quadro mais otimista
possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu
certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no
MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso
explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço,
de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e
incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento
com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à
esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de
carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no
hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o
coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo. Amigos
de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma
ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis,
prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O
Augustus me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. —
Estão espalhados por toda parte.
* * *
O pai e a mãe dele o chamavam de Gus. Estavam preparando
enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da
pia
estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango
nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito
surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Augustus me
fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial.
Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se
aproveitar dela.
— Esta é Hazel Grace — ele disse, me apresentando
formalmente.
— Só Hazel — falei.
— Como vai, Hazel? — o pai perguntou. Ele era alto, quase
tão alto quanto o Gus, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não
são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac?
— Foi inacreditável — disse o Gus.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. —
Hazel, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha
resposta deveria ser calculada para agradar ao Augustus ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial
quando estávamos no meio do tratamento do Gus — o pai dele disse. — Todo mundo
era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as
melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa
virar um Encorajamento — o Augustus disse, e o pai pareceu ficar um pouco
chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem e
falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos
Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. —
O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela
era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez.
Ah,
só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela
disse.
— Os animais são fofos demais? — o Gus perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou
responsável — falei.
O Gus abriu a boca para fazer um comentário mas pensou duas
vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as
enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Waters,
e que o toque de recolher do Gus também era às dez, e que eles desconfiavam
totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de
dez, comentando o fato de eu estar estudando — ‚ela é universitária‛, o
Augustus exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de
como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer
pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo
estranho e maravilhoso, e aí o Augustus disse:
— A Hazel e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela
possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século
vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo
alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão. O Augustus apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do ‚sempre‛?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— ‚Sempre‛ é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos
meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter trocado quatro
milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a
Alisa. Aí sobramos só o Augustus e eu, observando o Isaac e a Monica, que
continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede de um local
de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo,
a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se aquilo seria
gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Isaac levando em conta o fato de
que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem aproveitar enquanto ainda há
apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei,
baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Augustus disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Hazel Grace.
Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa estranheza. —
Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a
menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Augustus colocou a mão no bolso e tirou de lá, por
incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha e
colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu
Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente ou
pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco tolerável me encara
e chama minha atenção para utilizações incorretas da literalidade e me compara
a atrizes e me convida para ver um filme na casa dele. Mas é claro que sempre
tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE
UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa em troca da chance de ter MAIS
CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe eu só dizer para você como é não conseguir
respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante. Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da
mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando o Augustus
Waters para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais adiante na
rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo, fizesse amigos
ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim. Nem sei
direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito dele, e eu queria
dar um soco na cara do Augustus Waters e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por
outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-fio com
meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no carrinho ao meu lado
parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma corrente no tornozelo de
um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele
pegar a minha.
Puxei a mão mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando
mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma metáfora.
Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de
completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias
metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero.
— Sou um grande adepto da metáfora, Hazel Grace.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que
se abriu.
— Vou ver um filme com o Augustus Waters — falei. — Grave,
por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim.
CAPÍTULO DOIS
ugustus Waters dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na
arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de
segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço
chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa
— sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente
do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para
evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia
pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio,
ouvindo só os barulhos do carro, quando o Augustus disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese
aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que
a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem. Não é o meu
caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou
menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O
Augustus pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de
segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas,
aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o
instrutor disse: ‚Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado,
tecnicamente falando.‛ — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi
mais um caso de ‚privilégio do câncer‛.
Os ‚privilégios do câncer‛ são pequenas coisas que as
crianças com a
A
doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete
autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de
casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Augustus
meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que
não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que
esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade
de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida
aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais
tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão
esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou
atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por
um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Augustus a versão resumida do meu milagre:
diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei
que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo:
Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era
incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do
pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram
quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento,
mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente,
eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele
rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar
totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande
quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido
perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros
medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável,
principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia,
e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: ‚Você está pronta,
querida?‛ Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com
aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de
mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero,
sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que
permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões,
passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo
que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai
fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que
acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar
acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica
do câncer, Maria, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo
depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer
efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com
remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não
funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para
grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas.
Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os
tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos
dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões
que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar
funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da
chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só
resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.)
Mas, enquanto contava tudo ao Augustus Waters, pintei o quadro mais otimista
possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu
certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no
MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso
explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço,
de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e
incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento
com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à
esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de
carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no
hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o
coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo. Amigos
de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma
ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis,
prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O
Augustus me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. —
Estão espalhados por toda parte.
* * *
O pai e a mãe dele o chamavam de Gus. Estavam preparando
enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da
pia
estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango
nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito
surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Augustus me
fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial.
Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se
aproveitar dela.
— Esta é Hazel Grace — ele disse, me apresentando
formalmente.
— Só Hazel — falei.
— Como vai, Hazel? — o pai perguntou. Ele era alto, quase
tão alto quanto o Gus, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não
são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac?
— Foi inacreditável — disse o Gus.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. —
Hazel, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha
resposta deveria ser calculada para agradar ao Augustus ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial
quando estávamos no meio do tratamento do Gus — o pai dele disse. — Todo mundo
era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as
melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa
virar um Encorajamento — o Augustus disse, e o pai pareceu ficar um pouco
chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem e
falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos
Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. —
O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela
era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez.
Ah,
só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela
disse.
— Os animais são fofos demais? — o Gus perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou
responsável — falei.
O Gus abriu a boca para fazer um comentário mas pensou duas
vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as
enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Waters,
e que o toque de recolher do Gus também era às dez, e que eles desconfiavam
totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de
dez, comentando o fato de eu estar estudando — ‚ela é universitária‛, o
Augustus exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de
como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer
pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo
estranho e maravilhoso, e aí o Augustus disse:
— A Hazel e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela
possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século
vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo
alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão. O Augustus apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do ‚sempre‛?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— ‚Sempre‛ é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos
meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter trocado quatro
milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a
Alisa. Aí sobramos só o Augustus e eu, observando o Isaac e a Monica, que
continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede de um local
de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo,
a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se aquilo seria
gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Isaac levando em conta o fato de
que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem aproveitar enquanto ainda há
apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei,
baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Augustus disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Hazel Grace.
Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa estranheza. —
Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a
menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Augustus colocou a mão no bolso e tirou de lá, por
incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha e
colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu
Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente ou
pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco tolerável me encara
e chama minha atenção para utilizações incorretas da literalidade e me compara
a atrizes e me convida para ver um filme na casa dele. Mas é claro que sempre
tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE
UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa em troca da chance de ter MAIS
CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe eu só dizer para você como é não conseguir
respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante. Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da
mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando o Augustus
Waters para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais adiante na
rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo, fizesse amigos
ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim. Nem sei
direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito dele, e eu queria
dar um soco na cara do Augustus Waters e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por
outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-fio com
meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no carrinho ao meu lado
parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma corrente no tornozelo de
um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele
pegar a minha.
Puxei a mão mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando
mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma metáfora.
Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de
completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias
metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero.
— Sou um grande adepto da metáfora, Hazel Grace.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que
se abriu.
— Vou ver um filme com o Augustus Waters — falei. — Grave,
por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim.
CAPÍTULO DOIS
ugustus Waters dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na
arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de
segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço
chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa
— sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente
do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para
evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia
pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio,
ouvindo só os barulhos do carro, quando o Augustus disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese
aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que
a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem. Não é o meu
caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou
menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O
Augustus pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de
segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas,
aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o
instrutor disse: ‚Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado,
tecnicamente falando.‛ — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi
mais um caso de ‚privilégio do câncer‛.
Os ‚privilégios do câncer‛ são pequenas coisas que as
crianças com a
A
doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete
autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de
casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Augustus
meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que
não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que
esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade
de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida
aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais
tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão
esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou
atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por
um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Augustus a versão resumida do meu milagre:
diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei
que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo:
Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era
incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do
pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram
quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento,
mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente,
eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele
rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar
totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande
quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido
perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros
medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável,
principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia,
e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: ‚Você está pronta,
querida?‛ Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com
aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de
mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero,
sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que
permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões,
passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo
que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai
fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que
acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar
acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica
do câncer, Maria, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo
depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer
efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com
remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não
funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para
grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas.
Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os
tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos
dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões
que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar
funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da
chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só
resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.)
Mas, enquanto contava tudo ao Augustus Waters, pintei o quadro mais otimista
possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu
certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no
MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso
explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço,
de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e
incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento
com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à
esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de
carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no
hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o
coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo. Amigos
de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma
ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis,
prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O
Augustus me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. —
Estão espalhados por toda parte.
* * *
O pai e a mãe dele o chamavam de Gus. Estavam preparando
enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da
pia
estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango
nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito
surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Augustus me
fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial.
Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se
aproveitar dela.
— Esta é Hazel Grace — ele disse, me apresentando
formalmente.
— Só Hazel — falei.
— Como vai, Hazel? — o pai perguntou. Ele era alto, quase
tão alto quanto o Gus, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não
são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac?
— Foi inacreditável — disse o Gus.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. —
Hazel, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha
resposta deveria ser calculada para agradar ao Augustus ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial
quando estávamos no meio do tratamento do Gus — o pai dele disse. — Todo mundo
era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as
melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa
virar um Encorajamento — o Augustus disse, e o pai pareceu ficar um pouco
chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem e
falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos
Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. —
O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela
era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez.
Ah,
só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela
disse.
— Os animais são fofos demais? — o Gus perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou
responsável — falei.
O Gus abriu a boca para fazer um comentário mas pensou duas
vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as
enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Waters,
e que o toque de recolher do Gus também era às dez, e que eles desconfiavam
totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de
dez, comentando o fato de eu estar estudando — ‚ela é universitária‛, o
Augustus exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de
como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer
pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo
estranho e maravilhoso, e aí o Augustus disse:
— A Hazel e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela
possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século
vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo
alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão. O Augustus apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do ‚sempre‛?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— ‚Sempre‛ é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos
meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter trocado quatro
milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a
Alisa. Aí sobramos só o Augustus e eu, observando o Isaac e a Monica, que
continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede de um local
de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo,
a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se aquilo seria
gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Isaac levando em conta o fato de
que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem aproveitar enquanto ainda há
apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei,
baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Augustus disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Hazel Grace.
Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa estranheza. —
Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a
menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Augustus colocou a mão no bolso e tirou de lá, por
incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha e
colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu
Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente ou
pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco tolerável me encara
e chama minha atenção para utilizações incorretas da literalidade e me compara
a atrizes e me convida para ver um filme na casa dele. Mas é claro que sempre
tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE
UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa em troca da chance de ter MAIS
CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe eu só dizer para você como é não conseguir
respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante. Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da
mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando o Augustus
Waters para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais adiante na
rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo, fizesse amigos
ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim. Nem sei
direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito dele, e eu queria
dar um soco na cara do Augustus Waters e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por
outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-fio com
meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no carrinho ao meu lado
parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma corrente no tornozelo de
um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele
pegar a minha.
Puxei a mão mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando
mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma metáfora.
Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de
completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias
metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero.
— Sou um grande adepto da metáfora, Hazel Grace.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que
se abriu.
— Vou ver um filme com o Augustus Waters — falei. — Grave,
por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim.
CAPÍTULO DOIS
ugustus Waters dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na
arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de
segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço
chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa
— sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente
do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para
evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia
pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio,
ouvindo só os barulhos do carro, quando o Augustus disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese
aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que
a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem. Não é o meu
caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou
menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O
Augustus pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de
segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas,
aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o
instrutor disse: ‚Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado,
tecnicamente falando.‛ — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi
mais um caso de ‚privilégio do câncer‛.
Os ‚privilégios do câncer‛ são pequenas coisas que as
crianças com a
A
doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete
autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de
casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Augustus
meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que
não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que
esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade
de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida
aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais
tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão
esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou
atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por
um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Augustus a versão resumida do meu milagre:
diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei
que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo:
Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era
incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do
pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram
quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento,
mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente,
eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele
rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar
totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande
quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido
perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros
medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável,
principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia,
e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: ‚Você está pronta,
querida?‛ Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com
aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de
mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero,
sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que
permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões,
passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo
que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai
fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que
acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar
acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica
do câncer, Maria, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo
depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer
efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com
remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não
funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para
grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas.
Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os
tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos
dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões
que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar
funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da
chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só
resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.)
Mas, enquanto contava tudo ao Augustus Waters, pintei o quadro mais otimista
possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu
certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no
MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso
explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço,
de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e
incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento
com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à
esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de
carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no
hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o
coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo. Amigos
de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma
ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis,
prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O
Augustus me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. —
Estão espalhados por toda parte.
* * *
O pai e a mãe dele o chamavam de Gus. Estavam preparando
enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da
pia
estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango
nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito
surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Augustus me
fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial.
Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se
aproveitar dela.
— Esta é Hazel Grace — ele disse, me apresentando
formalmente.
— Só Hazel — falei.
— Como vai, Hazel? — o pai perguntou. Ele era alto, quase
tão alto quanto o Gus, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não
são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac?
— Foi inacreditável — disse o Gus.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. —
Hazel, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha
resposta deveria ser calculada para agradar ao Augustus ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial
quando estávamos no meio do tratamento do Gus — o pai dele disse. — Todo mundo
era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as
melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa
virar um Encorajamento — o Augustus disse, e o pai pareceu ficar um pouco
chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem e
falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos
Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. —
O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela
era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez.
Ah,
só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela
disse.
— Os animais são fofos demais? — o Gus perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou
responsável — falei.
O Gus abriu a boca para fazer um comentário mas pensou duas
vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as
enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Waters,
e que o toque de recolher do Gus também era às dez, e que eles desconfiavam
totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de
dez, comentando o fato de eu estar estudando — ‚ela é universitária‛, o
Augustus exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de
como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer
pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo
estranho e maravilhoso, e aí o Augustus disse:
— A Hazel e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela
possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século
vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo
alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão. O Augustus apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do ‚sempre‛?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— ‚Sempre‛ é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos
meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter trocado quatro
milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a
Alisa. Aí sobramos só o Augustus e eu, observando o Isaac e a Monica, que
continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede de um local
de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo,
a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se aquilo seria
gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Isaac levando em conta o fato de
que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem aproveitar enquanto ainda há
apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei,
baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Augustus disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Hazel Grace.
Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa estranheza. —
Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a
menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Augustus colocou a mão no bolso e tirou de lá, por
incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha e
colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu
Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente ou
pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco tolerável me encara
e chama minha atenção para utilizações incorretas da literalidade e me compara
a atrizes e me convida para ver um filme na casa dele. Mas é claro que sempre
tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE
UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa em troca da chance de ter MAIS
CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe eu só dizer para você como é não conseguir
respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante. Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da
mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando o Augustus
Waters para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais adiante na
rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo, fizesse amigos
ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim. Nem sei
direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito dele, e eu queria
dar um soco na cara do Augustus Waters e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por
outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-fio com
meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no carrinho ao meu lado
parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma corrente no tornozelo de
um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele
pegar a minha.
Puxei a mão mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando
mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma metáfora.
Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de
completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias
metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero.
— Sou um grande adepto da metáfora, Hazel Grace.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que
se abriu.
— Vou ver um filme com o Augustus Waters — falei. — Grave,
por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim.
CAPÍTULO DOIS
ugustus Waters dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na
arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de
segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço
chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa
— sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente
do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para
evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia
pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio,
ouvindo só os barulhos do carro, quando o Augustus disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese
aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que
a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem. Não é o meu
caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou
menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O
Augustus pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de
segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas,
aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o
instrutor disse: ‚Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado,
tecnicamente falando.‛ — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi
mais um caso de ‚privilégio do câncer‛.
Os ‚privilégios do câncer‛ são pequenas coisas que as
crianças com a
A
doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete
autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de
casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Augustus
meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que
não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que
esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade
de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida
aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais
tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão
esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou
atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por
um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Augustus a versão resumida do meu milagre:
diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei
que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo:
Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era
incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do
pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram
quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento,
mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente,
eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele
rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar
totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande
quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido
perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros
medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável,
principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia,
e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: ‚Você está pronta,
querida?‛ Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com
aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de
mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero,
sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que
permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões,
passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo
que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai
fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que
acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar
acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica
do câncer, Maria, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo
depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer
efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com
remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não
funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para
grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas.
Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os
tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos
dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões
que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar
funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da
chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só
resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.)
Mas, enquanto contava tudo ao Augustus Waters, pintei o quadro mais otimista
possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu
certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no
MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso
explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço,
de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e
incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento
com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à
esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de
carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no
hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o
coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo. Amigos
de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma
ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis,
prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O
Augustus me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. —
Estão espalhados por toda parte.
* * *
O pai e a mãe dele o chamavam de Gus. Estavam preparando
enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da
pia
estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango
nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito
surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Augustus me
fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial.
Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se
aproveitar dela.
— Esta é Hazel Grace — ele disse, me apresentando
formalmente.
— Só Hazel — falei.
— Como vai, Hazel? — o pai perguntou. Ele era alto, quase
tão alto quanto o Gus, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não
são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac?
— Foi inacreditável — disse o Gus.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. —
Hazel, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha
resposta deveria ser calculada para agradar ao Augustus ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial
quando estávamos no meio do tratamento do Gus — o pai dele disse. — Todo mundo
era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as
melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa
virar um Encorajamento — o Augustus disse, e o pai pareceu ficar um pouco
chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem e
falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos
Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. —
O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela
era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez.
Ah,
só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela
disse.
— Os animais são fofos demais? — o Gus perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou
responsável — falei.
O Gus abriu a boca para fazer um comentário mas pensou duas
vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as
enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Waters,
e que o toque de recolher do Gus também era às dez, e que eles desconfiavam
totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de
dez, comentando o fato de eu estar estudando — ‚ela é universitária‛, o
Augustus exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de
como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer
pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo
estranho e maravilhoso, e aí o Augustus disse:
— A Hazel e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela
possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século
vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo
alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão. O Augustus apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do ‚sempre‛?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— ‚Sempre‛ é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos
meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter trocado quatro
milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a
Alisa. Aí sobramos só o Augustus e eu, observando o Isaac e a Monica, que
continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede de um local
de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo,
a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se aquilo seria
gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Isaac levando em conta o fato de
que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem aproveitar enquanto ainda há
apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei,
baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Augustus disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Hazel Grace.
Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa estranheza. —
Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a
menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Augustus colocou a mão no bolso e tirou de lá, por
incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha e
colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu
Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente ou
pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco tolerável me encara
e chama minha atenção para utilizações incorretas da literalidade e me compara
a atrizes e me convida para ver um filme na casa dele. Mas é claro que sempre
tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE
UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa em troca da chance de ter MAIS
CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe eu só dizer para você como é não conseguir
respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante. Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da
mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando o Augustus
Waters para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais adiante na
rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo, fizesse amigos
ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim. Nem sei
direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito dele, e eu queria
dar um soco na cara do Augustus Waters e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por
outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-fio com
meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no carrinho ao meu lado
parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma corrente no tornozelo de
um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele
pegar a minha.
Puxei a mão mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando
mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma metáfora.
Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de
completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias
metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero.
— Sou um grande adepto da metáfora, Hazel Grace.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que
se abriu.
— Vou ver um filme com o Augustus Waters — falei. — Grave,
por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim.
CAPÍTULO DOIS
ugustus Waters dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na
arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de
segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço
chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa
— sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente
do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para
evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia
pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio,
ouvindo só os barulhos do carro, quando o Augustus disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese
aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que
a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem. Não é o meu
caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou
menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O
Augustus pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de
segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas,
aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o
instrutor disse: ‚Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado,
tecnicamente falando.‛ — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi
mais um caso de ‚privilégio do câncer‛.
Os ‚privilégios do câncer‛ são pequenas coisas que as
crianças com a
A
doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete
autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de
casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Augustus
meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que
não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que
esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade
de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida
aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais
tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão
esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou
atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por
um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Augustus a versão resumida do meu milagre:
diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei
que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo:
Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era
incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do
pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram
quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento,
mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente,
eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele
rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar
totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande
quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido
perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros
medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável,
principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia,
e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: ‚Você está pronta,
querida?‛ Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com
aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de
mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero,
sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que
permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões,
passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo
que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai
fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que
acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar
acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica
do câncer, Maria, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo
depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer
efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com
remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não
funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para
grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas.
Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os
tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos
dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões
que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar
funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da
chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só
resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.)
Mas, enquanto contava tudo ao Augustus Waters, pintei o quadro mais otimista
possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu
certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no
MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso
explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço,
de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e
incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento
com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à
esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de
carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no
hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o
coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo. Amigos
de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma
ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis,
prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O
Augustus me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. —
Estão espalhados por toda parte.
* * *
O pai e a mãe dele o chamavam de Gus. Estavam preparando
enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da
pia
estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango
nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito
surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Augustus me
fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial.
Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se
aproveitar dela.
— Esta é Hazel Grace — ele disse, me apresentando
formalmente.
— Só Hazel — falei.
— Como vai, Hazel? — o pai perguntou. Ele era alto, quase
tão alto quanto o Gus, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não
são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac?
— Foi inacreditável — disse o Gus.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. —
Hazel, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha
resposta deveria ser calculada para agradar ao Augustus ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial
quando estávamos no meio do tratamento do Gus — o pai dele disse. — Todo mundo
era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as
melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa
virar um Encorajamento — o Augustus disse, e o pai pareceu ficar um pouco
chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem e
falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos
Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. —
O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela
era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez.
Ah,
só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela
disse.
— Os animais são fofos demais? — o Gus perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou
responsável — falei.
O Gus abriu a boca para fazer um comentário mas pensou duas
vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as
enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Waters,
e que o toque de recolher do Gus também era às dez, e que eles desconfiavam
totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de
dez, comentando o fato de eu estar estudando — ‚ela é universitária‛, o
Augustus exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de
como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer
pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo
estranho e maravilhoso, e aí o Augustus disse:
— A Hazel e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela
possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século
vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo
alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão. O Augustus apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do ‚sempre‛?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— ‚Sempre‛ é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos
meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter trocado quatro
milhões de mensagens de texto com a palavra sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a
Alisa. Aí sobramos só o Augustus e eu, observando o Isaac e a Monica, que
continuavam frenéticos, como se não estivessem encostados na parede de um local
de oração. Ele pôs a mão no peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo,
a mão imóvel enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se aquilo seria
gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Isaac levando em conta o fato de
que ele estava para ficar cego. Os sentidos devem aproveitar enquanto ainda há
apetite, e tal.
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei,
baixinho. — A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Augustus disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Hazel Grace.
Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa estranheza. —
Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a
menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Augustus colocou a mão no bolso e tirou de lá, por
incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da caixinha e
colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu
Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente ou
pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma pouco tolerável me encara
e chama minha atenção para utilizações incorretas da literalidade e me compara
a atrizes e me convida para ver um filme na casa dele. Mas é claro que sempre
tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você TENDO TIDO UM RAIO DE
UM CÂNCER ainda dá dinheiro para uma empresa em troca da chance de ter MAIS
CÂNCER. Ai, meu Deus. Deixe eu só dizer para você como é não conseguir
respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante. Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da
mandíbula dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fio, deixando o Augustus
Waters para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida mais adiante na
rua. Era a mamãe. Ela tinha ficado ali, esperando que eu, tipo, fizesse amigos
ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim. Nem sei
direito que sentimento era aquele, sério, só que havia muito dele, e eu queria
dar um soco na cara do Augustus Waters e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por
outros que não fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-fio com
meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no carrinho ao meu lado
parecendo aquela bola de ferro que fica presa com uma corrente no tornozelo de
um prisioneiro, e na hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele
pegar a minha.
Puxei a mão mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando
mamãe parou junto ao meio-fio. — E eu nunca acendi nenhum. É uma metáfora.
Tipo: você coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de
completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias
metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero.
— Sou um grande adepto da metáfora, Hazel Grace.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que
se abriu.
— Vou ver um filme com o Augustus Waters — falei. — Grave,
por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM para mim.
CAPÍTULO DOIS
ugustus Waters dirigia muito mal. Tanto na freada quanto na
arrancada, dava sempre um TRANCO enorme. Eu voava de encontro ao cinto de
segurança da caminhonete Toyota toda vez que ele freava, e meu pescoço
chicoteava para trás quando o pé ia para o acelerador. Eu deveria estar nervosa
— sentada no carro de um estranho, indo para a casa dele, perfeitamente ciente
do fato de que meus pulmões de araque iriam dificultar quaisquer esforços para
evitar avanços indesejados —, mas ele dirigia tão mal que eu não conseguia
pensar em outra coisa.
Tínhamos percorrido quase uns dois quilômetros em silêncio,
ouvindo só os barulhos do carro, quando o Augustus disse:
— Fui reprovado três vezes no teste de direção.
— Não diga.
Ele riu e balançou a cabeça.
— É que eu não consigo sentir nada com a boa e velha prótese
aqui, e não me acostumo a dirigir com o pé esquerdo. Meus médicos disseram que
a maioria dos amputados consegue dirigir sem problemas, mas… bem. Não é o meu
caso. Aí eu cheguei para o meu quarto teste de direção e ele rolou mais ou
menos como agora. — Quase um quilômetro à frente o sinal ficou vermelho. O
Augustus pisou fundo no freio, me atirando num abraço triangular com o cinto de
segurança. — Foi mal. Juro por Deus que estou tentando fazer tudo devagar. Mas,
aí, no fim do teste, eu estava certo de que tinha sido reprovado de novo, e o
instrutor disse: ‚Seu jeito de dirigir é incômodo, mas não é arriscado,
tecnicamente falando.‛ — Não sei se concordo com ele — falei. — Acho que foi
mais um caso de ‚privilégio do câncer‛.
Os ‚privilégios do câncer‛ são pequenas coisas que as
crianças com a
A
doença recebem e as saudáveis, não: bolas de basquete
autografadas por ídolos do esporte, perdão pelo atraso na entrega do dever de
casa, carteiras de motorista não merecidas etc.
— É — ele disse.
O sinal ficou verde. Segurei firme no banco. O Augustus
meteu o pé no acelerador.
— Você sabe que existem controles manuais para pessoas que
não podem dirigir usando os pedais? — perguntei.
— Sei — ele respondeu. — Quem sabe algum dia?
E suspirou de um jeito que me fez pensar se ele achava que
esse algum dia ia chegar. Eu sabia que o osteossarcoma tinha uma probabilidade
de cura muito grande, mas, mesmo assim…
Existem várias maneiras de estabelecer a expectativa de vida
aproximada de alguém sem perguntar isso diretamente. Eu fui pela mais
tradicional.
— Então, você estuda?
Normalmente seus pais tiram você da escola quando já estão
esperando que bata as botas.
— Estudo — ele respondeu. — Na North Central. Mas estou
atrasado um ano, dei uma parada no segundo. E você?
Pensei em mentir. Afinal de contas, ninguém se interessa por
um cadáver ambulante. Mas acabei dizendo a verdade.
— Não. Meus pais me tiraram da escola há três anos.
— Três anos? — ele perguntou, boquiaberto.
Contei ao Augustus a versão resumida do meu milagre:
diagnosticada com câncer de tireoide em estágio IV aos treze anos. (Não contei
que o diagnóstico veio três meses depois da minha primeira menstruação. Tipo:
Parabéns! Você já é uma mulher. Agora morra.) E, foi o que nos disseram, era
incurável.
Passei por uma cirurgia chamada dissecação radical do
pescoço, tão desagradável quanto o nome. Depois, radioterapia. Aí tentaram
quimioterapia para os tumores no pulmão, que diminuíram num primeiro momento,
mas cresceram de novo. Nessa época eu já tinha quatorze anos.
Meus pulmões começaram a se encher de líquido. Basicamente,
eu parecia uma morta-viva — as mãos e os pés inchados como balões, a pele
rachada, os lábios sempre roxos. Existe um remédio que faz você não ficar
totalmente apavorado pelo fato de não conseguir respirar, e eu tinha uma grande
quantidade dele fluindo dentro de mim por um cateter central inserido
perifericamente— PICC, para os íntimos — e mais de uma dezena de outros
medicamentos. Mesmo assim, a sensação de afogamento é meio desagradável,
principalmente quando dura vários meses. Por fim, acabei na UTI com pneumonia,
e minha mãe se ajoelhou ao lado do meu leito e perguntou: ‚Você está pronta,
querida?‛ Eu respondi que estava, e meu pai ficava repetindo que me amava com
aquela voz embargada de sempre, e eu dizia que o amava também, e todo mundo de
mãos dadas, eu sem conseguir respirar, meus pulmões funcionando no desespero,
sem fôlego, me forçando a me ajeitar para tentar achar uma posição que
permitisse que ar entrasse, eu constrangida pelo desespero dos meus pulmões,
passada por eles não desistirem, simplesmente, e me lembro da minha mãe dizendo
que estava tudo bem, que eu estava bem, que eu ficaria bem, e do meu pai
fazendo um esforço tão grande para não chorar que, quando caía no choro, o que
acontecia com frequência, parecia um terremoto. E me lembro de não querer ficar
acordada.
Todo mundo achou que aquele fosse meu fim, mas minha médica
do câncer, Maria, conseguiu drenar um pouco do líquido dos pulmões e, logo
depois, os antibióticos que eu tomava para tratar a pneumonia começaram a fazer
efeito.
Acordei e logo entrei num daqueles testes clínicos com
remédios experimentais que são famosos na República da Cancervânia por não
funcionarem. A droga se chamava Falanxifor, uma tal de molécula projetada para
grudar nas células cancerosas e diminuir a velocidade de multiplicação delas.
Não funcionava em mais ou menos 70% das pessoas. Mas funcionou em mim. Os
tumores reduziram de tamanho.
E continuaram reduzidos. Viva o Falanxifor! Nos últimos
dezoito meses minhas metástases quase não aumentaram, deixando para mim pulmões
que são péssimos, mas que poderiam, a princípio, continuar
funcionando indefinidamente no sacrifício com o auxílio da
chuvinha de oxigênio e de doses diárias de Falanxifor.
Devo confessar que a história de milagre do meu câncer só
resultou em um pequeno ganho de tempo. (Eu só não sabia ainda quão pequeno.)
Mas, enquanto contava tudo ao Augustus Waters, pintei o quadro mais otimista
possível, ressaltando a miraculosidade do milagre.
— Então você precisa voltar a estudar — ele disse.
— Na verdade, não dá — expliquei —, porque já peguei meu
certificado de conclusão do ensino médio. Por isso tenho assistido às aulas no
MCC. — Que é a faculdade comunitária da cidade.
— Uma universitária — ele disse, balançando a cabeça. — Isso
explica a aura de sofisticação.
Ele abriu um sorriso afetado. Dei um empurrão no seu braço,
de brincadeira. E pude sentir o músculo logo abaixo da pele, todo contraído e
incrível.
Fizemos uma curva cantando pneu e entramos em um loteamento
com muro emboçado de dois metros e meio de altura. A casa dele era a primeira à
esquerda. Estilo colonial, dois andares. Paramos, com um tranco, na entrada de
carros.
Fui atrás dele até dentro da casa. Uma placa de madeira, no
hall, tinha gravadas com letras cursivas as palavras O lar é onde fica o
coração, e acabou que a casa toda era enfeitada com dizeres desse tipo. Amigos
de verdade são difíceis de encontrar e impossíveis de esquecer, afirmava uma
ilustração acima do cabideiro. O verdadeiro amor nasce em tempos difíceis,
prometia uma almofada bordada na sala de estar cheia de móveis antigos. O
Augustus me pegou lendo.
— Meus pais chamam isso de Encorajamentos — explicou. —
Estão espalhados por toda parte.
* * *
O pai e a mãe dele o chamavam de Gus. Estavam preparando
enchiladas na cozinha (escrita em letras gordinhas num vidro jateado perto da
pia
estava a frase Família é para sempre). A mãe colocava frango
nas tortillas, que o pai enrolava e botava num pirex. Eles não pareceram muito
surpresos com a minha chegada, o que fazia sentido: o fato de o Augustus me
fazer sentir especial não queria necessariamente dizer que eu era especial.
Talvez ele levasse uma garota nova todas as noites para ver um filme e se
aproveitar dela.
— Esta é Hazel Grace — ele disse, me apresentando
formalmente.
— Só Hazel — falei.
— Como vai, Hazel? — o pai perguntou. Ele era alto, quase
tão alto quanto o Gus, e magro de um jeito que pais mais velhos normalmente não
são.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi lá no Grupo de Apoio do Isaac?
— Foi inacreditável — disse o Gus.
— Você é um tremendo desmancha-prazeres — a mãe disse. —
Hazel, você gosta de lá?
Fiquei em silêncio por um segundo, tentando decidir se minha
resposta deveria ser calculada para agradar ao Augustus ou aos pais dele.
— A maioria das pessoas é bem legal — falei, por fim.
— Foi exatamente o que achamos das famílias no Memorial
quando estávamos no meio do tratamento do Gus — o pai dele disse. — Todo mundo
era muito gentil. Forte, também. Nos dias mais sombrios, o Senhor coloca as
melhores pessoas na sua vida.
— Rápido, cadê a almofada e a linha, porque isso precisa
virar um Encorajamento — o Augustus disse, e o pai pareceu ficar um pouco
chateado, mas aí ele passou o braço comprido em volta do pescoço do homem e
falou:
— Só estou brincando, pai. Eu gosto desses malditos
Encorajamentos. De verdade. Só não posso admitir isso porque sou adolescente. —
O pai dele revirou os olhos.
— Você vai ficar para o jantar? — a mãe me perguntou. Ela
era baixa, morena e tinha as feições de uma ratinha.
— Acho que sim — respondi. — Tenho de estar em casa às dez.
Ah,
só tem uma coisa… Eu não como carne…
— Não tem problema. Vamos vegetarianizar algumas delas — ela
disse.
— Os animais são fofos demais? — o Gus perguntou.
— Quero diminuir a quantidade de mortes pelas quais sou
responsável — falei.
O Gus abriu a boca para fazer um comentário mas pensou duas
vezes e continuou calado.
A mãe dele preencheu o silêncio.
— Pois eu acho isso uma coisa maravilhosa.
Eles conversaram um pouco comigo, me contando que as
enchiladas eram as Famosas e Impossíveis de Não Experimentar Enchiladas Waters,
e que o toque de recolher do Gus também era às dez, e que eles desconfiavam
totalmente de qualquer um que estabelecesse um toque de recolher diferente de
dez, comentando o fato de eu estar estudando — ‚ela é universitária‛, o
Augustus exclamou —, de o clima estar absolutamente magnífico para março, e de
como na primavera tudo era renovado, e em nenhum momento fizeram qualquer
pergunta sobre o oxigênio ou sobre meu diagnóstico, o que era ao mesmo tempo
estranho e maravilhoso, e aí o Augustus disse:
— A Hazel e eu vamos assistir ao V de Vingança para que ela
possa ver a doppelgänger cinematográfica dela, a Natalie Portman do século
vinte e um.
— A sala de estar é toda de vocês — o pai dele disse, todo
alegrinho.
— Na verdade, acho que vamos ver o filme lá no porão.
O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o
Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. —
E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril,
jogando a
prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um
enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de
memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de
troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso,
driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias
bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são
Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e
videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o
corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o
protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava
todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância.
Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na
quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente
me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro,
toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a
pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos
vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como
se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais
aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui
encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto,
mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois
anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que
praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não
queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito
tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e
aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria
desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito
‚desmaios à toa‛.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você.
Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo
naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários
colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam
pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos
livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por
coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu
último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e
o ‚dia D‛. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando
agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus
Waters. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava
falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito
lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor
titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no
Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um
apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como
chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas
elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são
casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E
você, tem irmãos? Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do
meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada
quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus
interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que
encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um
negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto.
Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse
deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que
interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu
não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de
que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa,
poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace,
você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever
poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros
maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas
eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho
fervor
religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado
só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos
o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque
o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e
improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo
era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial
— eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que
não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria
ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo
da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na
primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta
adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o
exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos
meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. —
Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse,
se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à
escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei
uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar
claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de
uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos
no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria
heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem
nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei
por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos
expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus
procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento
acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o
Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser
analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no
banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo
chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em
mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do
Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar,
tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não
queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a
mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há
muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido. O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o
Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. —
E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril,
jogando a
prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um
enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de
memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de
troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso,
driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias
bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são
Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e
videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o
corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o
protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava
todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância.
Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na
quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente
me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro,
toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a
pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos
vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como
se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais
aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui
encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto,
mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois
anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que
praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não
queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito
tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e
aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria
desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito
‚desmaios à toa‛.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você.
Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo
naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários
colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam
pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos
livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por
coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu
último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e
o ‚dia D‛. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando
agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus
Waters. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava
falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito
lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor
titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no
Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um
apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como
chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas
elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são
casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E
você, tem irmãos? Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do
meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada
quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus
interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que
encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um
negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto.
Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse
deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que
interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu
não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de
que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa,
poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace,
você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever
poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros
maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas
eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho
fervor
religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado
só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos
o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque
o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e
improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo
era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial
— eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que
não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria
ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo
da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na
primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta
adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o
exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos
meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. —
Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse,
se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à
escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei
uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar
claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de
uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos
no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria
heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem
nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei
por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos
expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus
procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento
acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o
Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser
analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no
banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo
chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em
mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do
Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar,
tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não
queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a
mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há
muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido. O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o
Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. —
E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril,
jogando a
prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um
enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de
memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de
troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso,
driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias
bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são
Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e
videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o
corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o
protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava
todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância.
Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na
quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente
me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro,
toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a
pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos
vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como
se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais
aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui
encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto,
mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois
anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que
praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não
queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito
tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e
aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria
desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito
‚desmaios à toa‛.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você.
Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo
naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários
colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam
pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos
livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por
coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu
último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e
o ‚dia D‛. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando
agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus
Waters. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava
falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito
lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor
titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no
Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um
apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como
chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas
elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são
casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E
você, tem irmãos? Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do
meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada
quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus
interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que
encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um
negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto.
Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse
deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que
interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu
não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de
que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa,
poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace,
você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever
poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros
maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas
eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho
fervor
religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado
só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos
o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque
o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e
improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo
era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial
— eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que
não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria
ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo
da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na
primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta
adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o
exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos
meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. —
Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse,
se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à
escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei
uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar
claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de
uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos
no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria
heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem
nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei
por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos
expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus
procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento
acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o
Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser
analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no
banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo
chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em
mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do
Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar,
tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não
queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a
mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há
muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido. O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o
Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. —
E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril,
jogando a
prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um
enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de
memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de
troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso,
driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias
bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são
Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e
videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o
corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o
protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava
todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância.
Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na
quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente
me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro,
toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a
pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos
vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como
se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais
aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui
encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto,
mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois
anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que
praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não
queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito
tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e
aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria
desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito
‚desmaios à toa‛.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você.
Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo
naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários
colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam
pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos
livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por
coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu
último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e
o ‚dia D‛. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando
agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus
Waters. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava
falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito
lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor
titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no
Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um
apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como
chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas
elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são
casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E
você, tem irmãos? Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do
meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada
quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus
interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que
encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um
negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto.
Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse
deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que
interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu
não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de
que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa,
poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace,
você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever
poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros
maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas
eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho
fervor
religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado
só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos
o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque
o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e
improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo
era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial
— eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que
não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria
ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo
da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na
primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta
adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o
exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos
meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. —
Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse,
se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à
escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei
uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar
claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de
uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos
no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria
heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem
nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei
por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos
expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus
procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento
acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o
Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser
analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no
banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo
chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em
mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do
Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar,
tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não
queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a
mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há
muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido. O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o
Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. —
E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril,
jogando a
prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um
enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de
memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de
troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso,
driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias
bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são
Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e
videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o
corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o
protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava
todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância.
Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na
quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente
me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro,
toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a
pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos
vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como
se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais
aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui
encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto,
mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois
anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que
praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não
queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito
tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e
aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria
desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito
‚desmaios à toa‛.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você.
Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo
naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários
colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam
pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos
livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por
coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu
último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e
o ‚dia D‛. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando
agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus
Waters. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava
falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito
lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor
titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no
Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um
apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como
chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas
elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são
casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E
você, tem irmãos? Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do
meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada
quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus
interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que
encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um
negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto.
Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse
deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que
interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu
não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de
que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa,
poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace,
você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever
poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros
maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas
eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho
fervor
religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado
só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos
o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque
o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e
improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo
era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial
— eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que
não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria
ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo
da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na
primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta
adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o
exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos
meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. —
Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse,
se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à
escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei
uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar
claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de
uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos
no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria
heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem
nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei
por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos
expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus
procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento
acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o
Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser
analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no
banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo
chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em
mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do
Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar,
tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não
queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a
mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há
muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido. O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o
Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. —
E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril,
jogando a
prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um
enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de
memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de
troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso,
driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias
bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são
Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e
videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o
corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o
protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava
todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância.
Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na
quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente
me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro,
toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a
pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos
vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como
se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais
aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui
encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto,
mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois
anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que
praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não
queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito
tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e
aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria
desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito
‚desmaios à toa‛.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você.
Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo
naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários
colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam
pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos
livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por
coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu
último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e
o ‚dia D‛. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando
agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus
Waters. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava
falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito
lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor
titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no
Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um
apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como
chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas
elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são
casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E
você, tem irmãos? Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do
meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada
quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus
interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que
encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um
negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto.
Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse
deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que
interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu
não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de
que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa,
poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace,
você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever
poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros
maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas
eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho
fervor
religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado
só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos
o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque
o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e
improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo
era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial
— eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que
não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria
ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo
da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na
primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta
adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o
exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos
meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. —
Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse,
se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à
escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei
uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar
claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de
uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos
no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria
heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem
nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei
por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos
expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus
procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento
acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o
Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser
analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no
banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo
chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em
mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do
Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar,
tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não
queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a
mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há
muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido. O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o
Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. —
E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril,
jogando a
prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um
enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de
memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de
troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso,
driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias
bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são
Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e
videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o
corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o
protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava
todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância.
Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na
quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente
me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro,
toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a
pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos
vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como
se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais
aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui
encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto,
mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois
anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que
praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não
queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito
tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e
aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria
desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito
‚desmaios à toa‛.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você.
Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo
naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários
colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam
pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos
livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por
coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu
último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e
o ‚dia D‛. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando
agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus
Waters. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava
falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito
lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor
titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no
Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um
apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como
chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas
elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são
casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E
você, tem irmãos? Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do
meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada
quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus
interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que
encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um
negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto.
Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse
deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que
interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu
não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de
que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa,
poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace,
você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever
poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros
maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas
eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho
fervor
religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado
só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos
o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque
o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e
improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo
era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial
— eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que
não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria
ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo
da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na
primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta
adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o
exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos
meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. —
Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse,
se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à
escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei
uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar
claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de
uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos
no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria
heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem
nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei
por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos
expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus
procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento
acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o
Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser
analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no
banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo
chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em
mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do
Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar,
tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não
queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a
mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há
muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido. O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o
Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. —
E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril,
jogando a
prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um
enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de
memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de
troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso,
driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias
bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são
Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e
videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o
corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o
protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava
todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância.
Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na
quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente
me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro,
toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a
pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos
vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como
se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais
aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui
encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto,
mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois
anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que
praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não
queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito
tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e
aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria
desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito
‚desmaios à toa‛.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você.
Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo
naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários
colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam
pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos
livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por
coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu
último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e
o ‚dia D‛. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando
agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus
Waters. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava
falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito
lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor
titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no
Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um
apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como
chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas
elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são
casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E
você, tem irmãos? Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do
meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada
quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus
interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que
encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um
negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto.
Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse
deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que
interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu
não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de
que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa,
poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace,
você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever
poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros
maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas
eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho
fervor
religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado
só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos
o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque
o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e
improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo
era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial
— eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que
não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria
ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo
da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na
primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta
adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o
exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos
meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. —
Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse,
se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à
escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei
uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar
claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de
uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos
no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria
heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem
nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei
por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos
expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus
procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento
acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o
Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser
analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no
banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo
chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em
mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do
Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar,
tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não
queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a
mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há
muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido. O pai dele riu.
— Boa tentativa. Sala de estar.
— Mas eu quero mostrar o porão para a Hazel Grace — o
Augustus disse.
— Só Hazel — falei.
— Então mostre o porão para a Só Hazel — o pai dele disse. —
E depois volte aqui para cima e assista ao seu filme na sala de estar.
O Augustus bufou, se equilibrou na perna e girou o quadril,
jogando a
prótese para a frente.
— Tá bem — resmungou.
Desci as escadas acarpetadas atrás dele até chegarmos a um
enorme quarto-porão. No nível dos meus olhos, uma prateleira lotada de
memorabilia de basquete se estendia pelas paredes de todo o cômodo: dezenas de
troféus com homenzinhos de plástico dourado no meio de saltos com arremesso,
driblando ou voando em enterradas em cestas invisíveis. Também havia várias
bolas e tênis autografados.
— Eu jogava basquete — ele explicou.
— Você devia ser muito bom.
— Não era de todo ruim, mas esses tênis e essas bolas são
Privilégios do Câncer. — Ele andou até a TV, onde uma pilha enorme de DVDs e
videogames estava arrumada num formato que lembrava uma pirâmide. Dobrou o
corpo na linha da cintura e puxou de lá o V de Vingança. — Eu era, tipo, o
protótipo do jogador de basquete estudantil de Indiana — ele disse. — Estava
todo empenhado em ressuscitar a arte esquecida do arremesso de meia distância.
Mas, um dia, enquanto praticava arremessos livres da cabeça do garrafão na
quadra do ginásio da North Central, pegando as bolas de um carrinho, de repente
me perguntei por que estava jogando um objeto esférico através de outro,
toroidal. Parecia ser, de todas, a coisa mais idiota do mundo. Aí comecei a
pensar nas crianças pequenas que tentam encaixar blocos cilíndricos em círculos
vazados e em como tentam isso várias vezes durante meses até descobrirem como
se faz, e em como o basquete era basicamente uma versão só um pouquinho mais
aeróbica desse mesmo exercício. Bem, de qualquer forma, por um tempão segui
encestando os lances livres. Acertei oito bolas seguidas, meu recorde absoluto,
mas, enquanto continuava, me sentia cada vez mais como uma criança de dois
anos. E aí, por algum motivo que não sei qual, comecei a pensar em atletas que
praticam corridas com obstáculos. Está tudo bem?
Eu tinha me sentado na beira da cama desarrumada dele. Não
queria me insinuar, nem nada; é que me canso um pouco toda vez que fico muito
tempo de pé. Já tinha ficado em pé na sala de estar, depois desci a escada, e
aí fiquei de pé de novo, o que era demais para mim, e não queria
desmaiar. Eu era tipo uma donzela vitoriana, no quesito
‚desmaios à toa‛.
— Tudo bem — falei. — Só estou prestando atenção em você.
Atletas que praticam corridas de obstáculos?
— Pois é. Não sei por quê. Comecei a pensar neles correndo
naquelas pistas de atletismo, saltando aqueles objetos totalmente arbitrários
colocados no meio do caminho. E aí me perguntei se esses corredores já teriam
pensado em algo como: Essa corrida seria mais rápida se nós simplesmente nos
livrássemos dos obstáculos.
— E isso foi antes do diagnóstico? — perguntei.
— É, bem, tem isso também. — Ele deu um sorrisinho. — Por
coincidência, o dia dos lances livres carregados de existencialismo foi meu
último como bípede. Só tive um fim de semana entre o agendamento da amputação e
o ‚dia D‛. Meu vislumbre particular do momento pelo qual o Isaac está passando
agora.
Balancei a cabeça, concordando. Eu gostava do Augustus
Waters. Gostava muito mesmo dele. Gostava de como a história dele terminava
falando de outra pessoa. Gostava da voz dele. Gostava do fato de ele ter feito
lances livres carregados de existencialismo. Gostava de ele ser professor
titular no Departamento de Sorrisos Ligeiramente Tortos com duas cátedras no
Departamento da Voz Que Me Deixa à Flor da Pele. E gostava de ele ter um
apelido. Sempre gostei de pessoas com apelidos porque você pode escolher como
chamá-las: Gus ou Augustus? Eu era sempre só Hazel, uma Hazel univalente.
— Você tem irmãos? — perguntei.
— Hein? — ele murmurou, parecendo um pouco distraído.
— Aquilo que você disse sobre ver crianças brincando.
— Ah, não. Eu tenho sobrinhos, das minhas meias-irmãs. Mas
elas são mais velhas. Elas têm… PAI, QUANTOS ANOS A MARTHA E A JULIE TÊM?
— Vinte e oito!
— Elas têm vinte e oito anos. Moram em Chicago. As duas são
casadas com advogados muito importantes. Ou banqueiros. Não lembro direito. E
você, tem irmãos? Fiz que não com a cabeça.
— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do
meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada
quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus
interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que
encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um
negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto.
Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.
Passou pela minha cabeça a ideia de que talvez eu tivesse
deixado, sim. Demorei a decidir como me vender para o Augustus Waters, que
interesses selecionar, mas no silêncio que se seguiu só consegui pensar que eu
não era muito interessante.
— Não tenho nada de extraordinário.
— Eu me recuso a acreditar nisso. Pense em alguma coisa de
que você goste. A primeira coisa que vier à cabeça.
— Humm. Ler?
— O que você gosta de ler?
— Tudo. De, tipo, romances hediondos a ficção pretensiosa,
poesia. De tudo um pouco.
— Você também escreve poesia?
— Não. Eu não escrevo.
— Taí! — O Augustus falou quase gritando. — Hazel Grace,
você é a única adolescente nos Estados Unidos que prefere ler poesia a escrever
poesia. Só isso já diz muito sobre a sua pessoa. Você lê um monte de livros
maneiros com M maiúsculo, não lê?
— Acho que sim.
— Qual é o seu livro favorito?
— Humm — murmurei.
Meu livro favorito era, de longe, Uma aflição imperial, mas
eu não gostava de falar dele. Às vezes, um livro enche você de um estranho
fervor
religioso, e você se convence de que esse mundo despedaçado
só vai se tornar inteiro de novo a menos que, e até que, todos os seres humanos
o leiam. E aí tem livros como Uma aflição imperial, do qual você não consegue
falar — livros tão especiais e raros e seus que fazer propaganda da sua
adoração por eles parece traição.
Não era nem pelo fato de o livro ser bom nem nada; era só porque
o autor, Peter Van Houten, parecia me entender dos modos mais estranhos e
improváveis. Uma aflição imperial era o meu livro, do mesmo jeito que meu corpo
era meu corpo e meus pensamentos eram meus pensamentos.
Mesmo assim, falei dele para o Augustus.
— Meu livro favorito é, provavelmente, Uma aflição imperial
— eu disse.
— Tem zumbis? — ele perguntou.
— Não — respondi.
— Stormtroopers?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não é esse tipo de livro.
Ele sorriu.
— Vou ler esse livro horrível com um título sem graça que
não contém stormtroopers — ele prometeu, e imediatamente senti que não deveria
ter lhe contado. O Augustus se virou para uma pilha de livros na parte de baixo
da mesa de cabeceira. Pegou um deles e uma caneta. Enquanto escrevia algo na
primeira página, falou: — Tudo o que peço em troca é que você leia esta
adaptação brilhante e memorável do meu videogame favorito. — Ele me estendeu o
exemplar, cujo título era O preço do alvorecer. Ri e peguei-o. Nossos dedos
meio que se embaralharam no processo e no fim ele acabou segurando minha mão. —
Fria — ele disse, o dedo apertando meu pulso pálido.
— Mais desoxigenada que fria — falei.
— Adoro quando você usa termos médicos comigo — ele disse,
se levantando e me puxando junto. E não soltou minha mão até chegarmos à
escada.
* * *
Vimos o filme com vários centímetros de sofá entre nós. Dei
uma de pré-adolescente colocando a mão no sofá na metade do caminho para deixar
claro que ele podia me dar a mão se quisesse, mas ele não fez nada. Depois de
uma hora de filme, seus pais entraram e nos serviram as enchiladas, que comemos
no sofá, e estavam uma delícia.
O filme era sobre um tipo heroico e mascarado que morria
heroicamente por Natalie Portman, uma garota durona e muito sexy que não tem
nada a ver com a minha cara estufada de esteroides.
Enquanto rolavam os créditos, ele disse:
— Muito maneiro, né?
— Muito maneiro — concordei, mesmo não sendo.
Sério. Era um filme do tipo que só agrada garotos. Não sei
por que os meninos esperam que gostemos desses filmes. Nós, meninas, não temos
expectativa nenhuma de que eles gostem dos nossos tipos de filme.
— Preciso ir para casa. Tenho aula de manhã — falei.
Fiquei sentada no sofá por um tempo enquanto o Augustus
procurava as chaves. A mãe dele se sentou ao meu lado e disse:
— Adoro esse aí. E você?
Acho que eu estava olhando fixamente para o Encorajamento
acima da TV, a ilustração de um anjo com a legenda: Sem dor, como poderíamos
reconhecer o prazer?
(Essa é uma discussão antiga no campo das Reflexões Sobre o
Sofrimento, e a ignorância e a ausência de sofisticação da frase poderiam ser
analisadas por vários séculos, mas é suficiente dizer que a existência do
brócolis não afeta de forma alguma o gosto do chocolate.)
— É — falei. — Um pensamento agradável.
Fui dirigindo o carro do Augustus até a minha casa, ele no
banco do carona. Ele tocou para mim algumas músicas de que gostava, de um grupo
chamado The Hectic Glow, e eram boas, mas como eu não conhecia, não causaram em
mim o mesmo efeito que nele. De vez em quando eu dava uma olhada na perna do
Augustus, ou no lugar onde ela costumava ficar,
tentando imaginar como seria a aparência da perna falsa. Não
queria dar muita bola para aquilo, mas dava um pouco. E ele devia sentir a
mesma coisa em relação ao meu oxigênio. A doença gera repulsa. Aprendi isso há
muito tempo, e achava que o Augustus também tinha aprendido.
Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.Quando encostei o carro em frente à minha casa, o Augustus
desligou o rádio. O clima ficou tenso. Ele devia estar pensando em me beijar, e
eu com certeza estava considerando essa possibilidade. Fiquei me perguntando se
era o que eu queria. Já tinha beijado alguns garotos, mas fazia algum tempo. Na
era pré-milagre.
Coloquei a marcha do carro em ponto morto e olhei para ele.
Como era belo. Sei que este não é o adjetivo mais usado para elogiar a beleza
de um garoto, mas ele era.
— Hazel Grace. — Meu nome soando inédito e muito mais bonito
na voz dele. — Foi um prazer inenarrável conhecê-la.
— Igualmente, Sr. Waters — falei.
E fiquei envergonhada ao olhar para ele. Não era páreo para
a intensidade daqueles olhos azul-piscina.
— Podemos nos ver de novo? — perguntou, e havia um
nervosismo fofo na voz dele.
Sorri.
— Claro.
— Amanhã?
— Paciência, Gafanhoto — aconselhei. — Assim vai parecer que
você está ansioso demais.
— Exatamente. Foi por isso que falei ‚amanhã‛. Quero ver
você de novo hoje à noite. Mas estou disposto a esperar a noite toda e boa
parte do dia de amanhã.
Revirei os olhos.
— Estou falando sério — ele disse.
— Você nem me conhece direito. — Peguei o livro de dentro do
console. — Que tal se eu ligar para você assim que acabar de ler isto?
— Mas você não sabe qual é o número do meu telefone — ele
disse.
— Tenho motivos para acreditar que você anotou o número no
livro.
Ele abriu aquele sorriso meio bobo.
— E você ainda diz que a gente não se conhece direito.
CAPÍTULO TRÊS
iquei acordada até bem tarde lendo O preço do alvorecer.
(Para acabar com o suspense: o preço do alvorecer é o sangue.) Não era nenhum
Uma aflição imperial, mas o protagonista, o Sargento Max Mayhem, era
ligeiramente simpático, apesar de ter matado, pelas minhas contas, nada menos
que cento e dezoito indivíduos em duzentas e oitenta quatro páginas.
Por isso acordei tarde na manhã seguinte, uma quinta-feira.
Minha mãe seguia a seguinte política: nunca me acordar, pois um dos
pré-requisitos do Doente Profissional é dormir muito. O que me deixou meio
confusa, num primeiro momento, quando fui despertada pelas mãos dela em meus
ombros.
— São quase dez horas da manhã — ela disse.
— O sono combate o câncer. Fiquei acordada até tarde lendo.
— Deve ser um livro e tanto — ela disse ao se ajoelhar ao
lado da cama e me desconectar do enorme concentrador de oxigênio retangular,
que eu chamava de Felipe, porque simplesmente tinha cara de Felipe. Mamãe me
conectou a um cilindro portátil e me lembrou que eu tinha aula. — Foi aquele
menino que deu isso para você? — ela perguntou.
— Com isso você quer dizer herpes?
— Você é impossível — mamãe comentou. — O livro, Hazel. Estou
falando do livro.
— Sim, ele me deu o livro.
— Está na cara que você gosta dele — ela falou, as
sobrancelhas arqueadas, como se uma observação dessas dependesse exclusivamente
de um instinto maternal.
Dei de ombros.
— Eu disse que o Grupo de Apoio acabaria valendo a pena —
F
continuou ela.
— Você ficou esperando lá fora o tempo todo?
— Fiquei. Levei coisas para ler. Mas isso não vem ao caso.
Hora de sair para aproveitar o dia, minha jovem.
— Mãe. Dormir. Combate. Câncer.
— Eu sei, querida, mas você tem aula agora. Além disso, hoje
é… — A alegria na voz da mamãe era evidente.
— Quinta-feira?
— Você esqueceu, de verdade?
— Talvez?
— Hoje é quinta-feira, vinte e nove de março — ela disse
aquilo quase gritando, o sorriso estampado no rosto.
— Você parece estar muito feliz só de saber que dia é hoje —
gritei também.
— HAZEL! HOJE É SEU TRIGÉSIMO TERCEIRO MEIO ANIVERSÁRIO!
— Ahhhhh! — falei. Minha mãe era totalmente adepta da
prática de maximizar as celebrações de datas comemorativas. HOJE É O DIA DA
ÁRVORE! VAMOS ABRAÇAR ÁRVORES E COMER BOLO! COLOMBO TROUXE VARÍOLA PARA OS
NATIVOS DA AMÉRICA; PRECISAMOS FESTEJAR A DATA COM UM PIQUENIQUE! etc. — Já que
é assim, feliz trigésimo terceiro meio aniversário para mim — completei.
— O que você quer fazer neste dia tão especial?
— Voltar para casa depois da aula e assistir ao maior número
possível de episódios de Top Chef de uma vez só para bater o recorde mundial
nessa categoria?
Mamãe esticou o braço e pegou, da prateleira acima da minha
cama, o Azulzinho, o urso de pelúcia azul que eu tinha desde, tipo, um ano de
idade — quando ainda era socialmente aceitável dar para os bichos de pelúcia
nomes inspirados na cor deles.
— Você não quer ir ao cinema com a Kaitlyn ou com o Matt? —
Esses eram meus amigos.
Era uma ideia.
— Pode ser — respondi. — Vou mandar uma mensagem de texto
para a Kaitlyn e ver se ela quer ir ao shopping ou fazer alguma coisa depois da
aula.
Mamãe sorriu, abraçada ao urso.
— Ir ao shopping ainda é considerado um programa legal? —
ela perguntou.
— Eu me orgulho muito de não saber o que é ou não é um
programa legal — respondi.
* * *
Mandei um torpedo para a Kaitlyn, tomei banho, vesti uma
roupa e mamãe me deu uma carona até a escola. A matéria do dia era Literatura
Norte-americana, uma aula sobre Frederick Douglass dada numa sala tipo
anfiteatro praticamente vazia. Foi muito difícil manter os olhos abertos.
Quarenta minutos depois de iniciada a aula de noventa minutos, a Kaitlyn
respondeu.
Legal. Feliz Meio Aniversário. Castleton às 3h32?
A Kaitlyn possuía uma vida social concorrida, organizada
visando o melhor aproveitamento do tempo dela. Respondi:
Boa ideia. Te vejo na praça de alimentação.
Mamãe me levou de carro direto da escola para a livraria ao
lado do shopping, onde comprei tanto o Alvoradas à meia-noite quanto o Réquiem
para Mayhem, os volumes seguintes da série ‚O preço do alvorecer‛. Depois fui
andando até a ampla praça de alimentação e comprei uma Coca Zero. Eram 3h21.
Enquanto lia, dei uma espiada nas crianças que brincavam num
navio pirata na área de recreação do shopping. Duas atravessavam um túnel
repetidas vezes, engatinhando, e não se cansavam daquilo, o
que me fez lembrar do Augustus Waters e de seus lances livres carregados de
existencialismo.
Mamãe também estava na praça de alimentação, sozinha,
sentada em um canto, achando que eu não conseguia vê-la, comendo um sanduíche
de filé com queijo e lendo alguns papéis. Artigos médicos, provavelmente.
Aquelas leituras pareciam não ter fim.
Às 3h32 em ponto, avistei Kaitlyn passando, confiante e
decidida, em frente ao restaurante Wok House. Ela me viu quando levantei o
braço, abriu um sorriso de dentes branquinhos e recém-alinhados, e veio andando
na minha direção.
Ela estava com um casaco cinza-escuro que ia até o joelho,
perfeitamente ajustado ao corpo, e óculos escuros que cobriam boa parte do
rosto. Ela empurrou os óculos para o alto da cabeça quando se abaixou para me
abraçar.
— Amada — disse de um jeito levemente afetado. — Como vai?
Ninguém achava aquele modo de falar estranho nem se
incomodava. Acontece que a Kaitlyn era uma socialite britânica de vinte e cinco
anos presa no corpo de uma adolescente de dezesseis e morando em Indianápolis.
Todo mundo aceitava aquilo.
— Estou bem. E você?
— Nem sei mais. Isso é Coca Zero? — Fiz que sim com a cabeça
e entreguei o copo para ela, que tomou um gole pelo canudo. — Eu adoraria que
você estivesse indo à escola nos últimos tempos. Alguns dos meninos ficaram
totalmente apetitosos.
— É mesmo? Tipo quem? — perguntei. Ela listou cinco garotos
que foram da nossa turma na educação infantil e no ensino fundamental, mas não
consegui me lembrar de nenhum deles.
— Estou saindo com o Derek Wellington já faz algum tempo —
ela disse —, mas não acho que vá durar. Ele é tão infantil... Mas chega de
falar de mim. Quais são as novidades no universo Hazel?
— Nenhuma, na verdade — respondi.
— A saúde está boa?
— Na mesma, acho.
— Falanxifor! — ela disse, entusiasmada, sorrindo. — Então
você pode acabar vivendo para sempre?
— Talvez não para sempre — ponderei.
— Mas, praticamente — ela falou. — Nenhuma outra novidade?
Pensei em contar para ela que estava saindo com um garoto
também, ou pelo menos que tinha assistido a um filme com ele, só porque sabia
que o fato de alguém como eu, tão descuidada da aparência, dos bons modos e
baixinha, poder, mesmo que por um breve momento, despertar o interesse de um
garoto causaria surpresa e espanto na Kaitlyn. Mas não tinha muito do que me
gabar, na verdade, então só dei de ombros.
— Céus, o que é isso? — ela perguntou, apontando para o
livro.
— Ah, é ficção científica. Estou meio que curtindo sci-fi
agora. É uma série.
— Estou chocada. Vamos fazer compras?
* * *
Fomos à sapataria. Enquanto escolhíamos os modelos, a
Kaitlyn ia me mostrando sapatilhas abertas na frente e dizendo: ‚Essas ficariam
lindas em você‛, o que me fez lembrar do fato de que ela nunca usava sandálias
porque odiava os próprios pés. Achava que os dedos ao lado dos dedões eram
compridos demais, como se fossem uma janela para a alma, ou coisa assim. Então,
quando apontei para um par de sandálias que combinavam com seu tom de pele, a
Kaitlyn reagiu com:
— É, mas… — O mas querendo dizer mas eles vão deixar meus
dedos medonhos à mostra.
— Kaitlyn, você é a única pessoa que eu conheço que tem
dismorfofobia do dedo do pé — falei, e ela perguntou:
— O que é isso?
— Sabe quando você olha no espelho e o que vê não é
exatamente o que é de verdade?
— Ah. Ah — ela disse. — O que acha desses aqui? — Segurou um
par de sapatos estilo boneca bonitinhos, mas nada de mais,
eu fiz que sim com a cabeça, ela achou um par do tamanho dela, calçou e andou
de um lado para outro pelo corredor da loja, olhando os pés refletidos num
espelho que ia até a altura do joelho. Depois pegou um par de sapatos
altíssimos, com várias tiras, à la prostituta, e perguntou: — Será humanamente
possível andar com isso aqui? Quer dizer, eu simplesmente morreria… — E então
parou no meio da frase e olhou para mim como que pedindo desculpas, como se
mencionar a morte para quem está morrendo fosse algum tipo de crime. — Você
deveria experimentá-los — continuou, tentando abafar o caso.
— Eu morreria mais rápido — garanti.
Acabei escolhendo um par de chinelos só para ter o que
comprar, sentei num dos bancos em frente a uma prateleira cheia de sapatos e
fiquei observando a Kaitlyn serpenteando pelos corredores da loja, escolhendo
calçados com a intensidade e a concentração normalmente associadas ao xadrez
profissional. Eu meio que queria tirar o Alvoradas à meia-noite da bolsa e ler
um pouco, mas sabia que isso não seria muito educado de minha parte, então
fiquei só olhando a Kaitlyn. De vez em quando ela ia até onde eu estava,
carregando algum sapato fechado, e perguntava: ‚Esse?‛, e eu tentava fazer
algum comentário inteligente sobre ele, até que, por fim, ela comprou três
pares e eu, meus chinelos.
Enquanto saíamos da loja, ela perguntou:
— Vamos à Anthropologie agora?
— Está na hora de ir para casa, na verdade — falei. — Estou
meio cansada.
— Claro, sem problemas — ela disse. — Preciso vê-la mais
vezes, amada. — Colocou as mãos nos meus ombros, beijou minhas bochechas e
bateu em retirada, rebolando os quadris.
Só que não fui para casa. Pedi para a mamãe me buscar às
seis, e mesmo sabendo que ela deveria estar ou dentro do shopping ou no
estacionamento, ainda queria as duas horas seguintes só para mim.
Eu gostava da minha mãe, mas a proximidade perpétua dela às
vezes me deixava estranhamente nervosa. Também gostava da Kaitlyn. De
verdade. Mas, depois de três anos afastada da convivência em
tempo integral com meus colegas de turma, era como se uma distância
intransponível tivesse se estabelecido entre nós. Acho que meus amigos da
escola queriam me ajudar a superar essa fase do câncer, mas acabaram percebendo
que não era possível. Pelo simples fato de não ser uma fase.
Então me safei usando a velha desculpa da dor e do cansaço,
como fiz várias vezes nos últimos anos quando saía com a Kaitlyn ou com algum
dos outros. Na verdade, sempre doía. Sempre doía não respirar como uma pessoa
normal, tendo a toda hora de lembrar a seus pulmões que eles devem agir como
pulmões, fazendo força para aceitar como insolúvel a dor lancinante que vem lá
de dentro por causa da falta de oxigenação. Eu não estava mentindo de todo.
Estava só escolhendo uma das verdades.
Achei um banco entre uma loja de suvenires irlandeses,
chamada Fountain Pen Emporium, e uma loja de bonés de beisebol — um canto do
shopping que nem mesmo a Kaitlyn frequentaria, e comecei a ler o Alvoradas à
meia-noite.
O livro tinha uma taxa de condenação-a-cadáver de quase 1:1,
e eu o devorei sem tirar os olhos da página uma vez sequer. Gostava do Sargento
Max Mayhem, mesmo a conduta dele não sendo muito ‚técnica‛, mas o que eu
gostava, principalmente, era das suas aventuras, que não paravam de acontecer.
Sempre havia mais caras do mal para matar e mais caras do bem para salvar.
Novas guerras começavam antes mesmo de as antigas serem ganhas. Eu não lia uma
série de verdade assim desde pequena, e estava animada por viver de novo numa
ficção infinita.
A vinte páginas do fim do Alvoradas à meia-noite as coisas
começaram a ficar um tanto ruins para o lado do Mayhem, quando ele foi atingido
dezessete vezes na tentativa de resgatar uma refém (loira, norte-americana) que
estava nas mãos do inimigo. Mas, no papel de leitora, não me desesperei. O
esforço de guerra continuaria sem ele. Poderiam ser — e seriam — feitas
continuações da história estrelando seus companheiros de grupo: o recruta Manny
Loco, o soldado Jasper Jacks e os outros.
Eu estava para terminar o livro quando uma menininha de
tranças surgiu na minha frente e perguntou:
— O que é isso no seu nariz?
— Humm. O nome disso é cânula. Esses tubos me dão oxigênio e
me ajudam a respirar — respondi.
A mãe dela tomou a frente e disse:
— Jackie — demonstrando total desaprovação.
Mas eu falei:
— Não, não, está tudo bem. — Porque estava tudo bem mesmo.
E quando a Jackie perguntou:
— Eles me ajudariam a respirar também?
Respondi:
— Não sei. Vamos tentar.
Tirei a cânula e deixei a Jackie enfiá-la no nariz e
respirar.
— Faz cosquinha — ela disse.
— Faz, não faz?
— Acho que estou respirando melhor — ela comentou.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Bom — falei. — Eu gostaria de poder dar minha cânula para
você, mas eu meio que preciso muito mesmo da ajuda dela.
Já começava a sentir falta de ar. Concentrei toda a atenção
na minha respiração enquanto Jackie me devolvia os tubos. Dei uma limpadinha
básica neles com a minha camiseta, encaixei-os atrás das orelhas e enfiei o
cateter nas narinas.
— Obrigada por me deixar experimentar — ela disse.
— De nada.
— Jackie — a mãe falou de novo, e dessa vez eu a deixei ir.
Voltei para o livro, onde o Sargento Max Mayhem se lamentava
por ter apenas uma vida para dar por seu país, mas continuei pensando na
menininha e no quanto tinha gostado dela.
A outra coisa estranha em relação à Kaitlyn, acho, era que
conversar com ela não parecia mais uma coisa natural. Quaisquer tentativas de
simular interações sociais normais eram deprimentes porque ficava óbvio que
todo mundo com quem eu falava em qualquer momento da minha
vida se sentia constrangido e desconfortável comigo, exceto
talvez crianças como a Jackie, que simplesmente não sabem nada da vida como ela
é.
De qualquer forma, eu gostava mesmo de ficar sozinha. Gostei
de ficar sozinha com o pobre Sargento Max Mayhem, que — ai, peraí, ele não vai
sobreviver a dezessete ferimentos a bala, vai?
(Para acabar com o suspense: ele sobrevive.)
CAPÍTULO QUATRO
eitei cedo aquela noite, depois de trocar de roupa, colocar
um short, uma camiseta e me enfiar debaixo das cobertas na minha cama de casal
enorme, cheia de travesseiros — de todos os lugares no mundo, o meu preferido.
Então comecei a ler Uma aflição imperial pela milionésima vez.
UAI é sobre uma menina chamada Anna e sua mãe de um olho só
— uma paisagista obcecada por tulipas. As duas levam uma vida típica de classe
média baixa numa cidadezinha da Califórnia, até que um dia a Anna é
diagnosticada com um tipo raro de leucemia.
Mas esta não é uma história de câncer, porque livros assim
são um horror. Tipo, em livros com histórias de câncer, a pessoa que tem o
câncer abre uma instituição de caridade para arrecadar dinheiro e ajudar na
pesquisa da cura da doença, certo? E o comprometimento com a caridade faz com
que essa pessoa seja relembrada da bondade inerente ao ser humano, e se sinta
amada e encorajada porque deixará um legado para a erradicação do câncer. Mas,
no UAI, a Anna resolve que ser uma pessoa com câncer que abre uma instituição
de caridade para ajudar nas pesquisas da própria doença é um tanto narcisista,
então monta uma instituição chamada Fundação Anna para Pessoas com Câncer que
Querem Curar o Cólera.
Além disso, a Anna é honesta em todos os aspectos, de um
jeito que ninguém mais é de verdade: durante todo o livro ela se refere a si
mesma como um efeito colateral, o que está absolutamente certo. Crianças com
câncer são, no fundo, efeitos colaterais da mutação incessante que tornou a
diversidade da vida na face da Terra possível. Aí, no decorrer da história, ela
adoece ainda mais, a doença e os tratamentos competindo para ver quem a mata
primeiro, e a mãe se apaixona por um vendedor de tulipas
D
holandês que a Anna chama de o Homem das Tulipas Holandês. O
Homem das Tulipas Holandês tem muito dinheiro e ideias bastante excêntricas a
respeito de como tratar o câncer, mas a Anna acha que esse cara pode ser um
vigarista e que talvez não seja nem mesmo holandês, e aí, no momento em que o
provável holandês e a mãe dela estão prestes a se casar, e Anna está à beira de
iniciar um novo tratamento doido envolvendo grama de trigo e pequenas doses de
arsênico, o livro termina bem no meio de uma.
Sei que essa é uma decisão bastante literária, e tal, e
muito provavelmente parte do motivo pelo qual eu amo tanto esse livro, mas há
um certo atrativo nas histórias que terminam. E se não dá para terem um fim,
então pelo menos deveriam continuar indefinidamente, como as aventuras do
pelotão do Sargento Max Mayhem.
Entendi que a história acabou porque a Anna
morreu ou ficou tão mal que não conseguiu mais escrever, e que essa coisa de
interromper a frase no meio pretendia refletir o modo como a vida acaba de
verdade, e sei lá o quê, mas havia outros personagens além da Anna, e parecia
injusto eu não poder saber o que aconteceu com eles. Escrevi, por intermédio do
editor dele, várias cartas para o Peter Van Houten, cada uma pedindo respostas
para perguntas relativas ao que acontece após o término do livro: se o Homem
das Tulipas Holandês é um vigarista, se a mãe da Anna acaba se casando com ele,
o que acontece com o hamster da Anna (que a mãe odeia), se os amigos da Anna
concluem o ensino médio… essas coisas. Mas ele nunca respondeu a nenhuma das
minhas cartas.
UAI foi o único livro escrito por Peter Van Houten, e tudo o
que as pessoas pareciam saber a respeito do autor era que depois do lançamento
do livro ele se mudou dos Estados Unidos para a Holanda e passou a viver
recluso. Imaginei que ele estaria trabalhando numa continuação da história,
ambientada na Holanda — talvez a mãe da Anna e o Homem das Tulipas Holandês
tivessem se mudado para lá e estivessem tentando começar uma vida nova. Mas já
fazia dez anos que Uma aflição imperial tinha sido lançado, e depois disso o
Van Houten não publicou nenhum post num blog sequer. Eu não poderia esperar
para sempre.
Enquanto lia o livro aquela noite, de vez em quando me
distraía ao imaginar o Augustus Waters lendo as mesmas palavras que eu. Será
que estava gostando, ou tinha parado no meio por achar o livro pretensioso? Aí
me lembrei da promessa que fiz de ligar para ele assim que terminasse O preço
do alvorecer, então peguei o número do telefone na primeira página do livro e
mandei um torpedo para ele.
Opinião sobre O preço do alvorecer: muitos corpos.
Quantidade insuficiente de adjetivos. Como vai o UAI?
Ele respondeu um minuto
depois:
Se lembro bem, você prometeu me LIGAR quando terminasse de
ler o livro, e não me mandar um SMS.
Aí eu liguei.
— Hazel Grace — ele disse ao atender.
— Você leu tudo?
— Não acabei ainda. O livro tem seiscentas e cinquenta e uma
páginas e eu só tive vinte e quatro horas.
— Até onde chegou?
— Página quatrocentos e cinquenta e três.
— E?
— Nada de opiniões antes do fim. Mas tenho de admitir que
estou meio envergonhado de ter dado O preço do alvorecer para você ler.
— Não fique. Já estou no Réquiem para Mayhem.
— Um acréscimo brilhante à série. Então tá, me diga, o cara
das tulipas é um vigarista ou não é? Estou tendo um mau pressentimento com
relação a ele. — Nada de estragar o suspense — eu disse.
— Se ele for qualquer coisa diferente de um completo
cavalheiro, vou arrancar os olhos dele fora.
— Então você está gostando do livro.
— Nada de opiniões antes do fim! Quando posso ver você?
— Com certeza, não até terminar Uma aflição imperial. — Eu
adorava fazer jogo duro.
— Então é melhor eu desligar e começar a ler.
— Melhor mesmo — falei, e o telefonema acabou ali.
Paquerar era uma coisa nova para mim, mas eu estava
gostando.
* * *
Na manhã seguinte eu tinha aula de Poesia Norte-americana do
Século XX no MCC. Uma professora bem mais velha conseguiu falar noventa minutos
da Sylvia Plath sem citar uma palavra da Sylvia Plath.
Quando saí da aula, mamãe estava parada no meio-fio na
frente do prédio.
— Você ficou esperando aqui o tempo todo? — perguntei quando
ela se apressou em me ajudar a puxar o carrinho e o cilindro para dentro do
carro.
— Não. Peguei algumas roupas na lavanderia e fui à agência
dos correios.
— E depois?
— Trouxe um livro para ler — ela disse.
— E sou eu quem precisa viver a minha vida. — Sorri, e ela
tentou sorrir também, mas havia algo estranho em seu sorriso. Depois de alguns
segundos, falei: — Que tal um cineminha?
— Boa ideia. Tem alguma coisa que você queira ver?
— Vamos fazer o de sempre: ir até lá e assistir ao filme que
estiver para começar.
Ela fechou a porta do carro para mim e andou até o lado do
motorista. Fomos ao cinema Castleton e assistimos a um filme 3-D sobre roedores
falantes. No fim das contas, o filme até que era engraçado.
* * *
Quando saímos do cinema, vi que tinha recebido quatro
torpedos do
Augustus.
Diga que meu exemplar veio com as últimas vinte páginas
faltando ou algo assim.
Hazel Grace, diga que eu não cheguei ao fim deste livro.
AI MEU DEUS ELES SE CASAM OU NÃO AI MEU DEUS O QUE É ISSO
A Anna morreu e a história acabou, é isso? CRUEL.
Ligue para mim quando puder. Espero que esteja tudo bem.
Então, quando cheguei à minha casa, fui direto para o
quintal, me sentei numa cadeira de vime trançado meio velhinha que havia na
varanda, e liguei para ele. O dia estava nublado, como sempre está em Indiana:
o tipo de clima que deixa qualquer um deprimido. Ocupando quase toda a área do
quintal ficava o balanço que eu usava na infância, e que agora tinha uma
aparência toda alagada e patética.
O Augustus atendeu no terceiro toque.
— Hazel Grace — falou.
— Seja bem-vindo à doce tortura que é ler Uma aflição… —
Parei ao ouvir um choro convulsivo do outro lado da linha. — Você está bem? —
perguntei.
— Ah, maravilha — o Augustus respondeu. — Mas estou aqui com
o Isaac, que está meio descompensado. — Mais choro. Como o grito de morte de
algum animal ferido. O Gus deu atenção para o Isaac. — Cara. Cara. A Hazel do
Grupo de Apoio ajuda ou atrapalha? Isaac. Preste. Atenção. Em. Mim. — Um minuto
depois o Gus me perguntou: — Você pode vir até a minha casa em mais ou menos
vinte minutos?
— Claro — respondi, e desliguei.
* * *
Se desse para ir em linha reta, eu levaria só uns cinco
minutos da minha casa até a do Augustus de carro, mas não dá porque o Holliday
Park está entre nós.
Mesmo sendo uma inconveniência geográfica, eu gostava muito
do Holliday Park. Quando era pequena, costumava brincar no rio White com o
papai, e sempre havia um momento fantástico em que ele me lançava no alto, me
jogando para longe, eu esticava os braços durante o voo e papai, os dele, e
então ambos víamos que nossos braços não iriam se tocar e que ninguém iria me
pegar, o que nos assustava da melhor maneira possível, e aí eu, as pernas
agitadas no ar, mergulhava na água e depois subia para respirar, ilesa, a
corrente me levando de volta para ele enquanto eu dizia de novo, papai, de
novo.
Estacionei na entrada de carros ao lado de um Toyota preto
meio antigo modelo sedã. Imaginei que fosse o carro do Isaac. Levando o
cilindro no carrinho atrás de mim, andei até a porta de entrada. Bati. O pai do
Gus atendeu.
— Só Hazel — exclamou. — Que bom ver você.
— O Augustus disse que eu poderia vir aqui.
— É. Ele e o Isaac estão no porão. — Naquele momento ouvi um
choro vindo lá de baixo.
— E esse é o Isaac — disse o pai do Gus, balançando a cabeça
devagar. — Cindy precisou sair para dar uma volta de carro. O barulho… — ele
falou, divagando. — Bem, de qualquer maneira, acho que você está sendo
requisitada lá embaixo. Posso carregar seu cilindro? — ele perguntou.
— Não precisa, estou bem. Obrigada mesmo assim, Sr. Waters.
— Mark — ele disse.
Eu estava meio com medo de descer. Ouvir gente chorando
convulsivamente não é um dos meus passatempos favoritos. Mas fui mesmo assim.
— Hazel Grace — disse o Augustus ao ouvir o ruído dos meus
passos.
— Isaac, a Hazel do Grupo de Apoio está descendo. Hazel, só
para lembrar: o Isaac está no meio de um surto psicótico.
O Augustus e o Isaac estavam sentados em poltronas em
formato de L, daquelas próprias para se jogar videogame, olhando para cima,
para uma televisão gigantesca. A tela estava dividida entre o ponto de vista do
Isaac, à esquerda, e o do Augustus, à direita. Eles eram soldados em guerra
numa cidade contemporânea toda bombardeada. Reconheci o cenário como sendo o de
O preço do alvorecer. Ao me aproximar, o que vi não tinha nada de anormal: só
dois caras sentados, banhados pela luz de uma televisão enorme, fingindo matar
pessoas.
Só quando fiquei bem ao lado deles pude ver o rosto do
Isaac. Lágrimas corriam num fluxo contínuo por suas bochechas vermelhas, a cara
dele uma máscara de dor. Ele olhava vidrado para a tela, sem virar nem um
instantinho na minha direção, aos prantos, o tempo todo apertando os botões do
controle.
— Está tudo bem, Hazel? — perguntou o Augustus.
— Estou bem — respondi. — Isaac?
Nenhuma resposta. Nem mesmo uma pista que determinasse se
ele estava ou não consciente da minha presença ali. Só lágrimas descendo pelo
rosto e encharcando a camiseta preta.
O Augustus tirou os olhos da tela só por um instante.
— Você está bonita — ele disse. Eu usava um vestido que ia
até um pouquinho abaixo dos joelhos e que eu tinha há séculos. — As garotas
pensam que só podem usar vestidos em ocasiões formais, mas eu gosto da mulher
que diz, tipo: Estou indo ver um cara em meio a um colapso nervoso, um cara
cuja ligação com o sentido da visão é tênue, e, que se dane, vou usar esse
vestido para ele.
— E mesmo assim — falei — o Isaac não é nem capaz de dar uma
olhada rápida em mim. Apaixonado demais pela Monica, só pode ser. — Comentário
esse que resultou num choro catastrófico.
— Este é um assunto delicado — o Augustus explicou. — Isaac,
não sei por você, mas tenho a vaga impressão de que estamos sendo flanqueados.
— E voltou a falar comigo: — O Isaac e a Monica não são
mais um casal, mas ele não quer falar sobre isso. Só quer
chorar e jogar Counterinsurgence 2: O preço do alvorecer.
— É justo — falei.
— Isaac, estou começando a ficar preocupado com a nossa
localização. Caso concorde com isso, vá até aquela usina termoelétrica, e eu
cubro você.
O Isaac correu para uma construção indistinta enquanto o
Augustus atirava enlouquecidamente com uma metralhadora, numa série de rajadas
rápidas, e corria atrás dele.
— De qualquer forma — o Augustus se dirigiu a mim —, não vai
fazer nenhum mal falar com ele. Se tiver alguma palavra sábia, algum conselho
feminino.
— Para falar a verdade, acho que a reação dele é,
provavelmente, a mais apropriada — comentei, enquanto uma rajada da
metralhadora do Isaac matou um inimigo que havia colocado a cabeça para fora da
carcaça incendiada de um caminhão.
O Augustus fez que sim com a cabeça, ainda olhando para a
tela.
— A dor precisa ser sentida — ele disse, e esta era uma
frase do Uma aflição imperial. — Você tem certeza de que não há ninguém atrás
de nós? — ele perguntou ao Isaac. Momentos depois, balas traçantes começaram a
zumbir acima da cabeça deles. — Ai, que droga, Isaac — o Augustus disse. — Não
quero criticar você num momento tão sensível como esse, mas deixou que fôssemos
flanqueados, e agora não há nada entre os terroristas e a escola.
O personagem do Isaac partiu correndo na direção do fogo
cruzado, ziguezagueando por uma passagem estreita.
— Vocês poderiam atravessar a ponte e dar a volta por trás —
palpitei, uma tática que conhecia graças à minha leitura de O preço do
alvorecer.
O Augustus suspirou.
— Infelizmente, a ponte já está sob o controle dos rebeldes
devido à estratégia questionável do meu parceiro desconsolado aqui.
— Eu? — o Isaac disse, ofegante. — Eu?! Foi você quem
sugeriu que nos metêssemos no raio da usina termoelétrica.
Gus desviou o olhar da tela por um segundo e deu seu sorriso
torto para o Isaac.
— Eu sabia que você conseguia falar, meu chapa — ele disse.
— Agora vamos salvar alguns estudantes mirins ficcionais.
Juntos, eles correram pela passagem estreita, atirando e se
escondendo nos momentos certos, até chegarem a uma escola de um andar só e com
apenas uma sala. Eles se agacharam atrás de uma parede do outro lado da rua e
acertaram os inimigos, um a um.
— Por que eles querem entrar na escola? — perguntei.
— Pretendem fazer as crianças de reféns — o Augustus
respondeu.
Os ombros dele estavam curvados e ele apertava os botões do
controle, os antebraços rijos, as veias visíveis. O Isaac se inclinou para a
frente, para a tela, o controle dançando na mão fina de dedos finos.
— Vai vai vai — o Augustus disse.
Ondas de terroristas continuaram surgindo, e eles dizimaram
todos, os tiros surpreendentemente precisos, como tinham de ser, para que não
acabassem atirando na escola.
— Granada! Granada! — o Augustus gritou quando alguma coisa
passou desenhando um arco pela tela, quicou no caminho que levava à entrada da
escola e então rolou, parando encostada na porta.
O Isaac largou o controle, de tão frustrado.
— Se esses desgraçados não conseguirem fazer reféns, vão
matar todos eles e colocar a culpa em nós.
— Isaac, me cubra! — o Augustus falou ao pular de trás da
parede e correr na direção da escola.
O Isaac pegou de volta o controle, sem jeito, e começou a
atirar enquanto choviam balas em cima do Augustus, que foi atingido uma vez e
depois duas, mas continuou a correr, gritando: ‚VOCÊS NÃO PODEM MATAR MAX
MAYHEM!‛, e com uma combinação final e afobada de apertos nos botões ele
mergulhou em cima da granada, que detonou. Seu corpo desmembrado explodiu como um
gêiser e a tela ficou toda vermelha. Uma voz gutural disse: ‚MISSÃO
FRACASSADA‛, mas o Augustus não parecia concordar com isso enquanto sorria,
vendo seus restos mortais na
tela. Ele enfiou a mão no bolso, pegou um cigarro e
colocou-o entre os dentes.
— Salvamos as crianças — ele disse.
— Por enquanto — observei.
— Todo salvamento é temporário — o Augustus retrucou. — Eu
proporcionei a elas mais um minuto. Talvez esse seja o minuto que vai
proporcionar a elas mais uma hora, que é a hora que vai proporcionar a elas
mais um ano. Ninguém vai dar a elas uma quantidade infinita de tempo, Hazel
Grace, mas a minha vida deu a elas mais um minuto. E isso não é pouco.
— Opa, peraí — eu disse. — Estamos falando de pixels aqui.
Ele deu de ombros, como se acreditasse que o jogo pudesse
ser realmente de verdade. O Isaac estava chorando de novo. O Augustus se virou
para ele:
— Vamos tentar completar a missão mais uma vez, cabo?
O Isaac fez que não. Ele se inclinou pela frente do Augustus
para olhar para mim e disse, as cordas vocais exigidas ao extremo:
— Ela não quis deixar para depois.
— Ela não quis terminar o namoro com um cara cego — falei.
Ele concordou, as lágrimas caindo na cadência de um
metrônomo silencioso: constante, interminável.
— Ela disse que não conseguiria lidar com isso — o Isaac
falou. — Estou prestes a perder a visão e ela não consegue lidar com isso.
Eu fiquei pensando no verbo lidar, e em todas as coisas não
lidáveis com que se tem de lidar.
— Sinto muito — falei.
Ele enxugou o rosto todo molhado na manga da camisa. Por
trás dos óculos, os olhos do Isaac pareciam tão grandes que tudo mais no rosto
dele meio que desaparecia, e ficavam só aqueles dois olhos flutuantes e
incorpóreos olhando para mim: um de verdade, um de vidro.
— Isso é inaceitável — ele me disse. — Isso é totalmente
inaceitável.
— Bem, para ser honesta — falei —, quer dizer, ela não deve
mesmo conseguir lidar com isso. Você também não, mas ela não precisa. E você,
sim.
— Eu ficava dizendo ‚sempre‛ para ela hoje, ‚sempre, sempre,
sempre‛, e ela só continuava falando ao mesmo tempo que eu, sem me escutar, e
não disse ‚sempre‛ para mim. Era como se eu não estivesse mais ali, sabe?
‚Sempre‛ era uma promessa! Como é que você pode não cumprir uma promessa desse
jeito?
— Às vezes as pessoas não têm noção das promessas que estão
fazendo no momento em que as fazem — falei.
O Isaac me lançou um olhar ferino.
— Tá, tem razão. Mas você cumpre a promessa mesmo assim.
Amar é isso. Amar é cumprir a promessa mesmo assim. Você não acredita em amor
verdadeiro?
Não respondi. Não tinha uma resposta para aquela pergunta.
Mas tive a sensação de que se o amor verdadeiro existisse, aquela seria uma
definição bastante boa para ele.
— Eu acredito em amor verdadeiro — o Isaac disse. — Eu amo a
Monica. E ela fez uma promessa. Ela me prometeu para sempre.
Ele ficou de pé e deu um passo na minha direção. Eu me
levantei, achando que ele queria um abraço ou coisa assim, mas aí ele
simplesmente deu meia-volta, como se não conseguisse se lembrar de por que
tinha ficado em pé, e então o Augustus e eu vimos uma expressão de ódio tomar
conta do rosto dele.
— Isaac — o Gus disse.
— O quê?
— Você parece um pouco… Não leve a mal o duplo sentido,
amigo, mas há algo preocupante no seu olhar.
De repente, o Isaac começou a chutar enlouquecidamente a
poltrona do videogame, que deu uma cambalhota para trás e foi parar perto da
cama do Gus.
— E lá vamos nós — disse o Augustus. O Isaac seguiu a
poltrona e chutou a coitada mais uma vez. — Isso aí — falou o Augustus. — Atrás
dela. Chute a poltrona até não poder mais!
O Isaac chutou a poltrona de novo, até que ela bateu na cama
do Gus,
e aí ele pegou um dos travesseiros e começou a bater com ele
na parede entre a cama e a prateleira de troféus. O Augustus olhou para mim, o
cigarro ainda na boca, e deu aquele sorrisinho típico dele.
— Eu não consigo parar de pensar naquele livro.
— Nem me fale!
— Ele nunca disse o que acontece com os outros personagens?
— Não — respondi. O Isaac ainda estava batendo na parede com
o travesseiro. — Ele se mudou para Amsterdã, o que me fez imaginar que talvez
estivesse escrevendo a continuação da história, com o Homem das Tulipas
Holandês como personagem principal, mas ele não publicou nada. Ele nunca é
entrevistado. E não parece estar on-line. Já escrevi várias cartas perguntando
o que acontece com todo mundo, mas ele nunca responde. Então… é isso.
Parei de falar porque o Augustus não parecia mais estar
prestando atenção. Em vez disso, olhava para o Isaac com os olhos semicerrados. UAI foi o único livro escrito por Peter Van Houten, e tudo o
que as pessoas pareciam saber a respeito do autor era que depois do lançamento
do livro ele se mudou dos Estados Unidos para a Holanda e passou a viver
recluso. Imaginei que ele estaria trabalhando numa continuação da história,
ambientada na Holanda — talvez a mãe da Anna e o Homem das Tulipas Holandês
tivessem se mudado para lá e estivessem tentando começar uma vida nova. Mas já
fazia dez anos que Uma aflição imperial tinha sido lançado, e depois disso o
Van Houten não publicou nenhum post num blog sequer. Eu não poderia esperar
para sempre.
Enquanto lia o livro aquela noite, de vez em quando me
distraía ao imaginar o Augustus Waters lendo as mesmas palavras que eu. Será
que estava gostando, ou tinha parado no meio por achar o livro pretensioso? Aí
me lembrei da promessa que fiz de ligar para ele assim que terminasse O preço
do alvorecer, então peguei o número do telefone na primeira página do livro e
mandei um torpedo para ele.
Opinião sobre O preço do alvorecer: muitos corpos.
Quantidade insuficiente de adjetivos. Como vai o UAI?
Ele respondeu um minuto
depois:
Se lembro bem, você prometeu me LIGAR quando terminasse de
ler o livro, e não me mandar um SMS.
Aí eu liguei.
— Hazel Grace — ele disse ao atender.
— Você leu tudo?
— Não acabei ainda. O livro tem seiscentas e cinquenta e uma
páginas e eu só tive vinte e quatro horas.
— Até onde chegou?
— Página quatrocentos e cinquenta e três.
— E?
— Nada de opiniões antes do fim. Mas tenho de admitir que
estou meio envergonhado de ter dado O preço do alvorecer para você ler.
— Não fique. Já estou no Réquiem para Mayhem.
— Um acréscimo brilhante à série. Então tá, me diga, o cara
das tulipas é um vigarista ou não é? Estou tendo um mau pressentimento com
relação a ele. — Nada de estragar o suspense — eu disse.
— Se ele for qualquer coisa diferente de um completo
cavalheiro, vou arrancar os olhos dele fora.
— Então você está gostando do livro.
— Nada de opiniões antes do fim! Quando posso ver você?
— Com certeza, não até terminar Uma aflição imperial. — Eu
adorava fazer jogo duro.
— Então é melhor eu desligar e começar a ler.
— Melhor mesmo — falei, e o telefonema acabou ali.
Paquerar era uma coisa nova para mim, mas eu estava
gostando.
* * *
Na manhã seguinte eu tinha aula de Poesia Norte-americana do
Século XX no MCC. Uma professora bem mais velha conseguiu falar noventa minutos
da Sylvia Plath sem citar uma palavra da Sylvia Plath.
Quando saí da aula, mamãe estava parada no meio-fio na
frente do prédio.
— Você ficou esperando aqui o tempo todo? — perguntei quando
ela se apressou em me ajudar a puxar o carrinho e o cilindro para dentro do
carro.
— Não. Peguei algumas roupas na lavanderia e fui à agência
dos correios.
— E depois?
— Trouxe um livro para ler — ela disse.
— E sou eu quem precisa viver a minha vida. — Sorri, e ela
tentou sorrir também, mas havia algo estranho em seu sorriso. Depois de alguns
segundos, falei: — Que tal um cineminha?
— Boa ideia. Tem alguma coisa que você queira ver?
— Vamos fazer o de sempre: ir até lá e assistir ao filme que
estiver para começar.
Ela fechou a porta do carro para mim e andou até o lado do
motorista. Fomos ao cinema Castleton e assistimos a um filme 3-D sobre roedores
falantes. No fim das contas, o filme até que era engraçado.
* * *
Quando saímos do cinema, vi que tinha recebido quatro
torpedos do
Augustus.
Diga que meu exemplar veio com as últimas vinte páginas
faltando ou algo assim.
Hazel Grace, diga que eu não cheguei ao fim deste livro.
AI MEU DEUS ELES SE CASAM OU NÃO AI MEU DEUS O QUE É ISSO
A Anna morreu e a história acabou, é isso? CRUEL.
Ligue para mim quando puder. Espero que esteja tudo bem.
Então, quando cheguei à minha casa, fui direto para o
quintal, me sentei numa cadeira de vime trançado meio velhinha que havia na
varanda, e liguei para ele. O dia estava nublado, como sempre está em Indiana:
o tipo de clima que deixa qualquer um deprimido. Ocupando quase toda a área do
quintal ficava o balanço que eu usava na infância, e que agora tinha uma
aparência toda alagada e patética.
O Augustus atendeu no terceiro toque.
— Hazel Grace — falou.
— Seja bem-vindo à doce tortura que é ler Uma aflição… —
Parei ao ouvir um choro convulsivo do outro lado da linha. — Você está bem? —
perguntei.
— Ah, maravilha — o Augustus respondeu. — Mas estou aqui com
o Isaac, que está meio descompensado. — Mais choro. Como o grito de morte de
algum animal ferido. O Gus deu atenção para o Isaac. — Cara. Cara. A Hazel do
Grupo de Apoio ajuda ou atrapalha? Isaac. Preste. Atenção. Em. Mim. — Um minuto
depois o Gus me perguntou: — Você pode vir até a minha casa em mais ou menos
vinte minutos?
— Claro — respondi, e desliguei.
* * *
Se desse para ir em linha reta, eu levaria só uns cinco
minutos da minha casa até a do Augustus de carro, mas não dá porque o Holliday
Park está entre nós.
Mesmo sendo uma inconveniência geográfica, eu gostava muito
do Holliday Park. Quando era pequena, costumava brincar no rio White com o
papai, e sempre havia um momento fantástico em que ele me lançava no alto, me
jogando para longe, eu esticava os braços durante o voo e papai, os dele, e
então ambos víamos que nossos braços não iriam se tocar e que ninguém iria me
pegar, o que nos assustava da melhor maneira possível, e aí eu, as pernas
agitadas no ar, mergulhava na água e depois subia para respirar, ilesa, a
corrente me levando de volta para ele enquanto eu dizia de novo, papai, de
novo.
Estacionei na entrada de carros ao lado de um Toyota preto
meio antigo modelo sedã. Imaginei que fosse o carro do Isaac. Levando o
cilindro no carrinho atrás de mim, andei até a porta de entrada. Bati. O pai do
Gus atendeu.
— Só Hazel — exclamou. — Que bom ver você.
— O Augustus disse que eu poderia vir aqui.
— É. Ele e o Isaac estão no porão. — Naquele momento ouvi um
choro vindo lá de baixo.
— E esse é o Isaac — disse o pai do Gus, balançando a cabeça
devagar. — Cindy precisou sair para dar uma volta de carro. O barulho… — ele
falou, divagando. — Bem, de qualquer maneira, acho que você está sendo
requisitada lá embaixo. Posso carregar seu cilindro? — ele perguntou.
— Não precisa, estou bem. Obrigada mesmo assim, Sr. Waters.
— Mark — ele disse.
Eu estava meio com medo de descer. Ouvir gente chorando
convulsivamente não é um dos meus passatempos favoritos. Mas fui mesmo assim.
— Hazel Grace — disse o Augustus ao ouvir o ruído dos meus
passos.
— Isaac, a Hazel do Grupo de Apoio está descendo. Hazel, só
para lembrar: o Isaac está no meio de um surto psicótico.
O Augustus e o Isaac estavam sentados em poltronas em
formato de L, daquelas próprias para se jogar videogame, olhando para cima,
para uma televisão gigantesca. A tela estava dividida entre o ponto de vista do
Isaac, à esquerda, e o do Augustus, à direita. Eles eram soldados em guerra
numa cidade contemporânea toda bombardeada. Reconheci o cenário como sendo o de
O preço do alvorecer. Ao me aproximar, o que vi não tinha nada de anormal: só
dois caras sentados, banhados pela luz de uma televisão enorme, fingindo matar
pessoas.
Só quando fiquei bem ao lado deles pude ver o rosto do
Isaac. Lágrimas corriam num fluxo contínuo por suas bochechas vermelhas, a cara
dele uma máscara de dor. Ele olhava vidrado para a tela, sem virar nem um
instantinho na minha direção, aos prantos, o tempo todo apertando os botões do
controle.
— Está tudo bem, Hazel? — perguntou o Augustus.
— Estou bem — respondi. — Isaac?
Nenhuma resposta. Nem mesmo uma pista que determinasse se
ele estava ou não consciente da minha presença ali. Só lágrimas descendo pelo
rosto e encharcando a camiseta preta.
O Augustus tirou os olhos da tela só por um instante.
— Você está bonita — ele disse. Eu usava um vestido que ia
até um pouquinho abaixo dos joelhos e que eu tinha há séculos. — As garotas
pensam que só podem usar vestidos em ocasiões formais, mas eu gosto da mulher
que diz, tipo: Estou indo ver um cara em meio a um colapso nervoso, um cara
cuja ligação com o sentido da visão é tênue, e, que se dane, vou usar esse
vestido para ele.
— E mesmo assim — falei — o Isaac não é nem capaz de dar uma
olhada rápida em mim. Apaixonado demais pela Monica, só pode ser. — Comentário
esse que resultou num choro catastrófico.
— Este é um assunto delicado — o Augustus explicou. — Isaac,
não sei por você, mas tenho a vaga impressão de que estamos sendo flanqueados.
— E voltou a falar comigo: — O Isaac e a Monica não são
mais um casal, mas ele não quer falar sobre isso. Só quer
chorar e jogar Counterinsurgence 2: O preço do alvorecer.
— É justo — falei.
— Isaac, estou começando a ficar preocupado com a nossa
localização. Caso concorde com isso, vá até aquela usina termoelétrica, e eu
cubro você.
O Isaac correu para uma construção indistinta enquanto o
Augustus atirava enlouquecidamente com uma metralhadora, numa série de rajadas
rápidas, e corria atrás dele.
— De qualquer forma — o Augustus se dirigiu a mim —, não vai
fazer nenhum mal falar com ele. Se tiver alguma palavra sábia, algum conselho
feminino.
— Para falar a verdade, acho que a reação dele é,
provavelmente, a mais apropriada — comentei, enquanto uma rajada da
metralhadora do Isaac matou um inimigo que havia colocado a cabeça para fora da
carcaça incendiada de um caminhão.
O Augustus fez que sim com a cabeça, ainda olhando para a
tela.
— A dor precisa ser sentida — ele disse, e esta era uma
frase do Uma aflição imperial. — Você tem certeza de que não há ninguém atrás
de nós? — ele perguntou ao Isaac. Momentos depois, balas traçantes começaram a
zumbir acima da cabeça deles. — Ai, que droga, Isaac — o Augustus disse. — Não
quero criticar você num momento tão sensível como esse, mas deixou que fôssemos
flanqueados, e agora não há nada entre os terroristas e a escola.
O personagem do Isaac partiu correndo na direção do fogo
cruzado, ziguezagueando por uma passagem estreita.
— Vocês poderiam atravessar a ponte e dar a volta por trás —
palpitei, uma tática que conhecia graças à minha leitura de O preço do
alvorecer.
O Augustus suspirou.
— Infelizmente, a ponte já está sob o controle dos rebeldes
devido à estratégia questionável do meu parceiro desconsolado aqui.
— Eu? — o Isaac disse, ofegante. — Eu?! Foi você quem
sugeriu que nos metêssemos no raio da usina termoelétrica.
Gus desviou o olhar da tela por um segundo e deu seu sorriso
torto para o Isaac.
— Eu sabia que você conseguia falar, meu chapa — ele disse.
— Agora vamos salvar alguns estudantes mirins ficcionais.
Juntos, eles correram pela passagem estreita, atirando e se
escondendo nos momentos certos, até chegarem a uma escola de um andar só e com
apenas uma sala. Eles se agacharam atrás de uma parede do outro lado da rua e
acertaram os inimigos, um a um.
— Por que eles querem entrar na escola? — perguntei.
— Pretendem fazer as crianças de reféns — o Augustus
respondeu.
Os ombros dele estavam curvados e ele apertava os botões do
controle, os antebraços rijos, as veias visíveis. O Isaac se inclinou para a
frente, para a tela, o controle dançando na mão fina de dedos finos.
— Vai vai vai — o Augustus disse.
Ondas de terroristas continuaram surgindo, e eles dizimaram
todos, os tiros surpreendentemente precisos, como tinham de ser, para que não
acabassem atirando na escola.
— Granada! Granada! — o Augustus gritou quando alguma coisa
passou desenhando um arco pela tela, quicou no caminho que levava à entrada da
escola e então rolou, parando encostada na porta.
O Isaac largou o controle, de tão frustrado.
— Se esses desgraçados não conseguirem fazer reféns, vão
matar todos eles e colocar a culpa em nós.
— Isaac, me cubra! — o Augustus falou ao pular de trás da
parede e correr na direção da escola.
O Isaac pegou de volta o controle, sem jeito, e começou a
atirar enquanto choviam balas em cima do Augustus, que foi atingido uma vez e
depois duas, mas continuou a correr, gritando: ‚VOCÊS NÃO PODEM MATAR MAX
MAYHEM!‛, e com uma combinação final e afobada de apertos nos botões ele
mergulhou em cima da granada, que detonou. Seu corpo desmembrado explodiu como um
gêiser e a tela ficou toda vermelha. Uma voz gutural disse: ‚MISSÃO
FRACASSADA‛, mas o Augustus não parecia concordar com isso enquanto sorria,
vendo seus restos mortais na
tela. Ele enfiou a mão no bolso, pegou um cigarro e
colocou-o entre os dentes.
— Salvamos as crianças — ele disse.
— Por enquanto — observei.
— Todo salvamento é temporário — o Augustus retrucou. — Eu
proporcionei a elas mais um minuto. Talvez esse seja o minuto que vai
proporcionar a elas mais uma hora, que é a hora que vai proporcionar a elas
mais um ano. Ninguém vai dar a elas uma quantidade infinita de tempo, Hazel
Grace, mas a minha vida deu a elas mais um minuto. E isso não é pouco.
— Opa, peraí — eu disse. — Estamos falando de pixels aqui.
Ele deu de ombros, como se acreditasse que o jogo pudesse
ser realmente de verdade. O Isaac estava chorando de novo. O Augustus se virou
para ele:
— Vamos tentar completar a missão mais uma vez, cabo?
O Isaac fez que não. Ele se inclinou pela frente do Augustus
para olhar para mim e disse, as cordas vocais exigidas ao extremo:
— Ela não quis deixar para depois.
— Ela não quis terminar o namoro com um cara cego — falei.
Ele concordou, as lágrimas caindo na cadência de um
metrônomo silencioso: constante, interminável.
— Ela disse que não conseguiria lidar com isso — o Isaac
falou. — Estou prestes a perder a visão e ela não consegue lidar com isso.
Eu fiquei pensando no verbo lidar, e em todas as coisas não
lidáveis com que se tem de lidar.
— Sinto muito — falei.
Ele enxugou o rosto todo molhado na manga da camisa. Por
trás dos óculos, os olhos do Isaac pareciam tão grandes que tudo mais no rosto
dele meio que desaparecia, e ficavam só aqueles dois olhos flutuantes e
incorpóreos olhando para mim: um de verdade, um de vidro.
— Isso é inaceitável — ele me disse. — Isso é totalmente
inaceitável.
— Bem, para ser honesta — falei —, quer dizer, ela não deve
mesmo conseguir lidar com isso. Você também não, mas ela não precisa. E você,
sim.
— Eu ficava dizendo ‚sempre‛ para ela hoje, ‚sempre, sempre,
sempre‛, e ela só continuava falando ao mesmo tempo que eu, sem me escutar, e
não disse ‚sempre‛ para mim. Era como se eu não estivesse mais ali, sabe?
‚Sempre‛ era uma promessa! Como é que você pode não cumprir uma promessa desse
jeito?
— Às vezes as pessoas não têm noção das promessas que estão
fazendo no momento em que as fazem — falei.
O Isaac me lançou um olhar ferino.
— Tá, tem razão. Mas você cumpre a promessa mesmo assim.
Amar é isso. Amar é cumprir a promessa mesmo assim. Você não acredita em amor
verdadeiro?
Não respondi. Não tinha uma resposta para aquela pergunta.
Mas tive a sensação de que se o amor verdadeiro existisse, aquela seria uma
definição bastante boa para ele.
— Eu acredito em amor verdadeiro — o Isaac disse. — Eu amo a
Monica. E ela fez uma promessa. Ela me prometeu para sempre.
Ele ficou de pé e deu um passo na minha direção. Eu me
levantei, achando que ele queria um abraço ou coisa assim, mas aí ele
simplesmente deu meia-volta, como se não conseguisse se lembrar de por que
tinha ficado em pé, e então o Augustus e eu vimos uma expressão de ódio tomar
conta do rosto dele.
— Isaac — o Gus disse.
— O quê?
— Você parece um pouco… Não leve a mal o duplo sentido,
amigo, mas há algo preocupante no seu olhar.
De repente, o Isaac começou a chutar enlouquecidamente a
poltrona do videogame, que deu uma cambalhota para trás e foi parar perto da
cama do Gus.
— E lá vamos nós — disse o Augustus. O Isaac seguiu a
poltrona e chutou a coitada mais uma vez. — Isso aí — falou o Augustus. — Atrás
dela. Chute a poltrona até não poder mais!
O Isaac chutou a poltrona de novo, até que ela bateu na cama
do Gus,
e aí ele pegou um dos travesseiros e começou a bater com ele
na parede entre a cama e a prateleira de troféus. O Augustus olhou para mim, o
cigarro ainda na boca, e deu aquele sorrisinho típico dele.
— Eu não consigo parar de pensar naquele livro.
— Nem me fale!
— Ele nunca disse o que acontece com os outros personagens?
— Não — respondi. O Isaac ainda estava batendo na parede com
o travesseiro. — Ele se mudou para Amsterdã, o que me fez imaginar que talvez
estivesse escrevendo a continuação da história, com o Homem das Tulipas
Holandês como personagem principal, mas ele não publicou nada. Ele nunca é
entrevistado. E não parece estar on-line. Já escrevi várias cartas perguntando
o que acontece com todo mundo, mas ele nunca responde. Então… é isso.
Parei de falar porque o Augustus não parecia mais estar
prestando atenção. Em vez disso, olhava para o Isaac com os olhos semicerrados. UAI foi o único livro escrito por Peter Van Houten, e tudo o
que as pessoas pareciam saber a respeito do autor era que depois do lançamento
do livro ele se mudou dos Estados Unidos para a Holanda e passou a viver
recluso. Imaginei que ele estaria trabalhando numa continuação da história,
ambientada na Holanda — talvez a mãe da Anna e o Homem das Tulipas Holandês
tivessem se mudado para lá e estivessem tentando começar uma vida nova. Mas já
fazia dez anos que Uma aflição imperial tinha sido lançado, e depois disso o
Van Houten não publicou nenhum post num blog sequer. Eu não poderia esperar
para sempre.
Enquanto lia o livro aquela noite, de vez em quando me
distraía ao imaginar o Augustus Waters lendo as mesmas palavras que eu. Será
que estava gostando, ou tinha parado no meio por achar o livro pretensioso? Aí
me lembrei da promessa que fiz de ligar para ele assim que terminasse O preço
do alvorecer, então peguei o número do telefone na primeira página do livro e
mandei um torpedo para ele.
Opinião sobre O preço do alvorecer: muitos corpos.
Quantidade insuficiente de adjetivos. Como vai o UAI?
Ele respondeu um minuto
depois:
Se lembro bem, você prometeu me LIGAR quando terminasse de
ler o livro, e não me mandar um SMS.
Aí eu liguei.
— Hazel Grace — ele disse ao atender.
— Você leu tudo?
— Não acabei ainda. O livro tem seiscentas e cinquenta e uma
páginas e eu só tive vinte e quatro horas.
— Até onde chegou?
— Página quatrocentos e cinquenta e três.
— E?
— Nada de opiniões antes do fim. Mas tenho de admitir que
estou meio envergonhado de ter dado O preço do alvorecer para você ler.
— Não fique. Já estou no Réquiem para Mayhem.
— Um acréscimo brilhante à série. Então tá, me diga, o cara
das tulipas é um vigarista ou não é? Estou tendo um mau pressentimento com
relação a ele. — Nada de estragar o suspense — eu disse.
— Se ele for qualquer coisa diferente de um completo
cavalheiro, vou arrancar os olhos dele fora.
— Então você está gostando do livro.
— Nada de opiniões antes do fim! Quando posso ver você?
— Com certeza, não até terminar Uma aflição imperial. — Eu
adorava fazer jogo duro.
— Então é melhor eu desligar e começar a ler.
— Melhor mesmo — falei, e o telefonema acabou ali.
Paquerar era uma coisa nova para mim, mas eu estava
gostando.
* * *
Na manhã seguinte eu tinha aula de Poesia Norte-americana do
Século XX no MCC. Uma professora bem mais velha conseguiu falar noventa minutos
da Sylvia Plath sem citar uma palavra da Sylvia Plath.
Quando saí da aula, mamãe estava parada no meio-fio na
frente do prédio.
— Você ficou esperando aqui o tempo todo? — perguntei quando
ela se apressou em me ajudar a puxar o carrinho e o cilindro para dentro do
carro.
— Não. Peguei algumas roupas na lavanderia e fui à agência
dos correios.
— E depois?
— Trouxe um livro para ler — ela disse.
— E sou eu quem precisa viver a minha vida. — Sorri, e ela
tentou sorrir também, mas havia algo estranho em seu sorriso. Depois de alguns
segundos, falei: — Que tal um cineminha?
— Boa ideia. Tem alguma coisa que você queira ver?
— Vamos fazer o de sempre: ir até lá e assistir ao filme que
estiver para começar.
Ela fechou a porta do carro para mim e andou até o lado do
motorista. Fomos ao cinema Castleton e assistimos a um filme 3-D sobre roedores
falantes. No fim das contas, o filme até que era engraçado.
* * *
Quando saímos do cinema, vi que tinha recebido quatro
torpedos do
Augustus.
Diga que meu exemplar veio com as últimas vinte páginas
faltando ou algo assim.
Hazel Grace, diga que eu não cheguei ao fim deste livro.
AI MEU DEUS ELES SE CASAM OU NÃO AI MEU DEUS O QUE É ISSO
A Anna morreu e a história acabou, é isso? CRUEL.
Ligue para mim quando puder. Espero que esteja tudo bem.
Então, quando cheguei à minha casa, fui direto para o
quintal, me sentei numa cadeira de vime trançado meio velhinha que havia na
varanda, e liguei para ele. O dia estava nublado, como sempre está em Indiana:
o tipo de clima que deixa qualquer um deprimido. Ocupando quase toda a área do
quintal ficava o balanço que eu usava na infância, e que agora tinha uma
aparência toda alagada e patética.
O Augustus atendeu no terceiro toque.
— Hazel Grace — falou.
— Seja bem-vindo à doce tortura que é ler Uma aflição… —
Parei ao ouvir um choro convulsivo do outro lado da linha. — Você está bem? —
perguntei.
— Ah, maravilha — o Augustus respondeu. — Mas estou aqui com
o Isaac, que está meio descompensado. — Mais choro. Como o grito de morte de
algum animal ferido. O Gus deu atenção para o Isaac. — Cara. Cara. A Hazel do
Grupo de Apoio ajuda ou atrapalha? Isaac. Preste. Atenção. Em. Mim. — Um minuto
depois o Gus me perguntou: — Você pode vir até a minha casa em mais ou menos
vinte minutos?
— Claro — respondi, e desliguei.
* * *
Se desse para ir em linha reta, eu levaria só uns cinco
minutos da minha casa até a do Augustus de carro, mas não dá porque o Holliday
Park está entre nós.
Mesmo sendo uma inconveniência geográfica, eu gostava muito
do Holliday Park. Quando era pequena, costumava brincar no rio White com o
papai, e sempre havia um momento fantástico em que ele me lançava no alto, me
jogando para longe, eu esticava os braços durante o voo e papai, os dele, e
então ambos víamos que nossos braços não iriam se tocar e que ninguém iria me
pegar, o que nos assustava da melhor maneira possível, e aí eu, as pernas
agitadas no ar, mergulhava na água e depois subia para respirar, ilesa, a
corrente me levando de volta para ele enquanto eu dizia de novo, papai, de
novo.
Estacionei na entrada de carros ao lado de um Toyota preto
meio antigo modelo sedã. Imaginei que fosse o carro do Isaac. Levando o
cilindro no carrinho atrás de mim, andei até a porta de entrada. Bati. O pai do
Gus atendeu.
— Só Hazel — exclamou. — Que bom ver você.
— O Augustus disse que eu poderia vir aqui.
— É. Ele e o Isaac estão no porão. — Naquele momento ouvi um
choro vindo lá de baixo.
— E esse é o Isaac — disse o pai do Gus, balançando a cabeça
devagar. — Cindy precisou sair para dar uma volta de carro. O barulho… — ele
falou, divagando. — Bem, de qualquer maneira, acho que você está sendo
requisitada lá embaixo. Posso carregar seu cilindro? — ele perguntou.
— Não precisa, estou bem. Obrigada mesmo assim, Sr. Waters.
— Mark — ele disse.
Eu estava meio com medo de descer. Ouvir gente chorando
convulsivamente não é um dos meus passatempos favoritos. Mas fui mesmo assim.
— Hazel Grace — disse o Augustus ao ouvir o ruído dos meus
passos.
— Isaac, a Hazel do Grupo de Apoio está descendo. Hazel, só
para lembrar: o Isaac está no meio de um surto psicótico.
O Augustus e o Isaac estavam sentados em poltronas em
formato de L, daquelas próprias para se jogar videogame, olhando para cima,
para uma televisão gigantesca. A tela estava dividida entre o ponto de vista do
Isaac, à esquerda, e o do Augustus, à direita. Eles eram soldados em guerra
numa cidade contemporânea toda bombardeada. Reconheci o cenário como sendo o de
O preço do alvorecer. Ao me aproximar, o que vi não tinha nada de anormal: só
dois caras sentados, banhados pela luz de uma televisão enorme, fingindo matar
pessoas.
Só quando fiquei bem ao lado deles pude ver o rosto do
Isaac. Lágrimas corriam num fluxo contínuo por suas bochechas vermelhas, a cara
dele uma máscara de dor. Ele olhava vidrado para a tela, sem virar nem um
instantinho na minha direção, aos prantos, o tempo todo apertando os botões do
controle.
— Está tudo bem, Hazel? — perguntou o Augustus.
— Estou bem — respondi. — Isaac?
Nenhuma resposta. Nem mesmo uma pista que determinasse se
ele estava ou não consciente da minha presença ali. Só lágrimas descendo pelo
rosto e encharcando a camiseta preta.
O Augustus tirou os olhos da tela só por um instante.
— Você está bonita — ele disse. Eu usava um vestido que ia
até um pouquinho abaixo dos joelhos e que eu tinha há séculos. — As garotas
pensam que só podem usar vestidos em ocasiões formais, mas eu gosto da mulher
que diz, tipo: Estou indo ver um cara em meio a um colapso nervoso, um cara
cuja ligação com o sentido da visão é tênue, e, que se dane, vou usar esse
vestido para ele.
— E mesmo assim — falei — o Isaac não é nem capaz de dar uma
olhada rápida em mim. Apaixonado demais pela Monica, só pode ser. — Comentário
esse que resultou num choro catastrófico.
— Este é um assunto delicado — o Augustus explicou. — Isaac,
não sei por você, mas tenho a vaga impressão de que estamos sendo flanqueados.
— E voltou a falar comigo: — O Isaac e a Monica não são
mais um casal, mas ele não quer falar sobre isso. Só quer
chorar e jogar Counterinsurgence 2: O preço do alvorecer.
— É justo — falei.
— Isaac, estou começando a ficar preocupado com a nossa
localização. Caso concorde com isso, vá até aquela usina termoelétrica, e eu
cubro você.
O Isaac correu para uma construção indistinta enquanto o
Augustus atirava enlouquecidamente com uma metralhadora, numa série de rajadas
rápidas, e corria atrás dele.
— De qualquer forma — o Augustus se dirigiu a mim —, não vai
fazer nenhum mal falar com ele. Se tiver alguma palavra sábia, algum conselho
feminino.
— Para falar a verdade, acho que a reação dele é,
provavelmente, a mais apropriada — comentei, enquanto uma rajada da
metralhadora do Isaac matou um inimigo que havia colocado a cabeça para fora da
carcaça incendiada de um caminhão.
O Augustus fez que sim com a cabeça, ainda olhando para a
tela.
— A dor precisa ser sentida — ele disse, e esta era uma
frase do Uma aflição imperial. — Você tem certeza de que não há ninguém atrás
de nós? — ele perguntou ao Isaac. Momentos depois, balas traçantes começaram a
zumbir acima da cabeça deles. — Ai, que droga, Isaac — o Augustus disse. — Não
quero criticar você num momento tão sensível como esse, mas deixou que fôssemos
flanqueados, e agora não há nada entre os terroristas e a escola.
O personagem do Isaac partiu correndo na direção do fogo
cruzado, ziguezagueando por uma passagem estreita.
— Vocês poderiam atravessar a ponte e dar a volta por trás —
palpitei, uma tática que conhecia graças à minha leitura de O preço do
alvorecer.
O Augustus suspirou.
— Infelizmente, a ponte já está sob o controle dos rebeldes
devido à estratégia questionável do meu parceiro desconsolado aqui.
— Eu? — o Isaac disse, ofegante. — Eu?! Foi você quem
sugeriu que nos metêssemos no raio da usina termoelétrica.
Gus desviou o olhar da tela por um segundo e deu seu sorriso
torto para o Isaac.
— Eu sabia que você conseguia falar, meu chapa — ele disse.
— Agora vamos salvar alguns estudantes mirins ficcionais.
Juntos, eles correram pela passagem estreita, atirando e se
escondendo nos momentos certos, até chegarem a uma escola de um andar só e com
apenas uma sala. Eles se agacharam atrás de uma parede do outro lado da rua e
acertaram os inimigos, um a um.
— Por que eles querem entrar na escola? — perguntei.
— Pretendem fazer as crianças de reféns — o Augustus
respondeu.
Os ombros dele estavam curvados e ele apertava os botões do
controle, os antebraços rijos, as veias visíveis. O Isaac se inclinou para a
frente, para a tela, o controle dançando na mão fina de dedos finos.
— Vai vai vai — o Augustus disse.
Ondas de terroristas continuaram surgindo, e eles dizimaram
todos, os tiros surpreendentemente precisos, como tinham de ser, para que não
acabassem atirando na escola.
— Granada! Granada! — o Augustus gritou quando alguma coisa
passou desenhando um arco pela tela, quicou no caminho que levava à entrada da
escola e então rolou, parando encostada na porta.
O Isaac largou o controle, de tão frustrado.
— Se esses desgraçados não conseguirem fazer reféns, vão
matar todos eles e colocar a culpa em nós.
— Isaac, me cubra! — o Augustus falou ao pular de trás da
parede e correr na direção da escola.
O Isaac pegou de volta o controle, sem jeito, e começou a
atirar enquanto choviam balas em cima do Augustus, que foi atingido uma vez e
depois duas, mas continuou a correr, gritando: ‚VOCÊS NÃO PODEM MATAR MAX
MAYHEM!‛, e com uma combinação final e afobada de apertos nos botões ele
mergulhou em cima da granada, que detonou. Seu corpo desmembrado explodiu como um
gêiser e a tela ficou toda vermelha. Uma voz gutural disse: ‚MISSÃO
FRACASSADA‛, mas o Augustus não parecia concordar com isso enquanto sorria,
vendo seus restos mortais na
tela. Ele enfiou a mão no bolso, pegou um cigarro e
colocou-o entre os dentes.
— Salvamos as crianças — ele disse.
— Por enquanto — observei.
— Todo salvamento é temporário — o Augustus retrucou. — Eu
proporcionei a elas mais um minuto. Talvez esse seja o minuto que vai
proporcionar a elas mais uma hora, que é a hora que vai proporcionar a elas
mais um ano. Ninguém vai dar a elas uma quantidade infinita de tempo, Hazel
Grace, mas a minha vida deu a elas mais um minuto. E isso não é pouco.
— Opa, peraí — eu disse. — Estamos falando de pixels aqui.
Ele deu de ombros, como se acreditasse que o jogo pudesse
ser realmente de verdade. O Isaac estava chorando de novo. O Augustus se virou
para ele:
— Vamos tentar completar a missão mais uma vez, cabo?
O Isaac fez que não. Ele se inclinou pela frente do Augustus
para olhar para mim e disse, as cordas vocais exigidas ao extremo:
— Ela não quis deixar para depois.
— Ela não quis terminar o namoro com um cara cego — falei.
Ele concordou, as lágrimas caindo na cadência de um
metrônomo silencioso: constante, interminável.
— Ela disse que não conseguiria lidar com isso — o Isaac
falou. — Estou prestes a perder a visão e ela não consegue lidar com isso.
Eu fiquei pensando no verbo lidar, e em todas as coisas não
lidáveis com que se tem de lidar.
— Sinto muito — falei.
Ele enxugou o rosto todo molhado na manga da camisa. Por
trás dos óculos, os olhos do Isaac pareciam tão grandes que tudo mais no rosto
dele meio que desaparecia, e ficavam só aqueles dois olhos flutuantes e
incorpóreos olhando para mim: um de verdade, um de vidro.
— Isso é inaceitável — ele me disse. — Isso é totalmente
inaceitável.
— Bem, para ser honesta — falei —, quer dizer, ela não deve
mesmo conseguir lidar com isso. Você também não, mas ela não precisa. E você,
sim.
— Eu ficava dizendo ‚sempre‛ para ela hoje, ‚sempre, sempre,
sempre‛, e ela só continuava falando ao mesmo tempo que eu, sem me escutar, e
não disse ‚sempre‛ para mim. Era como se eu não estivesse mais ali, sabe?
‚Sempre‛ era uma promessa! Como é que você pode não cumprir uma promessa desse
jeito?
— Às vezes as pessoas não têm noção das promessas que estão
fazendo no momento em que as fazem — falei.
O Isaac me lançou um olhar ferino.
— Tá, tem razão. Mas você cumpre a promessa mesmo assim.
Amar é isso. Amar é cumprir a promessa mesmo assim. Você não acredita em amor
verdadeiro?
Não respondi. Não tinha uma resposta para aquela pergunta.
Mas tive a sensação de que se o amor verdadeiro existisse, aquela seria uma
definição bastante boa para ele.
— Eu acredito em amor verdadeiro — o Isaac disse. — Eu amo a
Monica. E ela fez uma promessa. Ela me prometeu para sempre.
Ele ficou de pé e deu um passo na minha direção. Eu me
levantei, achando que ele queria um abraço ou coisa assim, mas aí ele
simplesmente deu meia-volta, como se não conseguisse se lembrar de por que
tinha ficado em pé, e então o Augustus e eu vimos uma expressão de ódio tomar
conta do rosto dele.
— Isaac — o Gus disse.
— O quê?
— Você parece um pouco… Não leve a mal o duplo sentido,
amigo, mas há algo preocupante no seu olhar.
De repente, o Isaac começou a chutar enlouquecidamente a
poltrona do videogame, que deu uma cambalhota para trás e foi parar perto da
cama do Gus.
— E lá vamos nós — disse o Augustus. O Isaac seguiu a
poltrona e chutou a coitada mais uma vez. — Isso aí — falou o Augustus. — Atrás
dela. Chute a poltrona até não poder mais!
O Isaac chutou a poltrona de novo, até que ela bateu na cama
do Gus,
e aí ele pegou um dos travesseiros e começou a bater com ele
na parede entre a cama e a prateleira de troféus. O Augustus olhou para mim, o
cigarro ainda na boca, e deu aquele sorrisinho típico dele.
— Eu não consigo parar de pensar naquele livro.
— Nem me fale!
— Ele nunca disse o que acontece com os outros personagens?
— Não — respondi. O Isaac ainda estava batendo na parede com
o travesseiro. — Ele se mudou para Amsterdã, o que me fez imaginar que talvez
estivesse escrevendo a continuação da história, com o Homem das Tulipas
Holandês como personagem principal, mas ele não publicou nada. Ele nunca é
entrevistado. E não parece estar on-line. Já escrevi várias cartas perguntando
o que acontece com todo mundo, mas ele nunca responde. Então… é isso.
Parei de falar porque o Augustus não parecia mais estar
prestando atenção. Em vez disso, olhava para o Isaac com os olhos semicerrados. UAI foi o único livro escrito por Peter Van Houten, e tudo o
que as pessoas pareciam saber a respeito do autor era que depois do lançamento
do livro ele se mudou dos Estados Unidos para a Holanda e passou a viver
recluso. Imaginei que ele estaria trabalhando numa continuação da história,
ambientada na Holanda — talvez a mãe da Anna e o Homem das Tulipas Holandês
tivessem se mudado para lá e estivessem tentando começar uma vida nova. Mas já
fazia dez anos que Uma aflição imperial tinha sido lançado, e depois disso o
Van Houten não publicou nenhum post num blog sequer. Eu não poderia esperar
para sempre.
Enquanto lia o livro aquela noite, de vez em quando me
distraía ao imaginar o Augustus Waters lendo as mesmas palavras que eu. Será
que estava gostando, ou tinha parado no meio por achar o livro pretensioso? Aí
me lembrei da promessa que fiz de ligar para ele assim que terminasse O preço
do alvorecer, então peguei o número do telefone na primeira página do livro e
mandei um torpedo para ele.
Opinião sobre O preço do alvorecer: muitos corpos.
Quantidade insuficiente de adjetivos. Como vai o UAI?
Ele respondeu um minuto
depois:
Se lembro bem, você prometeu me LIGAR quando terminasse de
ler o livro, e não me mandar um SMS.
Aí eu liguei.
— Hazel Grace — ele disse ao atender.
— Você leu tudo?
— Não acabei ainda. O livro tem seiscentas e cinquenta e uma
páginas e eu só tive vinte e quatro horas.
— Até onde chegou?
— Página quatrocentos e cinquenta e três.
— E?
— Nada de opiniões antes do fim. Mas tenho de admitir que
estou meio envergonhado de ter dado O preço do alvorecer para você ler.
— Não fique. Já estou no Réquiem para Mayhem.
— Um acréscimo brilhante à série. Então tá, me diga, o cara
das tulipas é um vigarista ou não é? Estou tendo um mau pressentimento com
relação a ele. — Nada de estragar o suspense — eu disse.
— Se ele for qualquer coisa diferente de um completo
cavalheiro, vou arrancar os olhos dele fora.
— Então você está gostando do livro.
— Nada de opiniões antes do fim! Quando posso ver você?
— Com certeza, não até terminar Uma aflição imperial. — Eu
adorava fazer jogo duro.
— Então é melhor eu desligar e começar a ler.
— Melhor mesmo — falei, e o telefonema acabou ali.
Paquerar era uma coisa nova para mim, mas eu estava
gostando.
* * *
Na manhã seguinte eu tinha aula de Poesia Norte-americana do
Século XX no MCC. Uma professora bem mais velha conseguiu falar noventa minutos
da Sylvia Plath sem citar uma palavra da Sylvia Plath.
Quando saí da aula, mamãe estava parada no meio-fio na
frente do prédio.
— Você ficou esperando aqui o tempo todo? — perguntei quando
ela se apressou em me ajudar a puxar o carrinho e o cilindro para dentro do
carro.
— Não. Peguei algumas roupas na lavanderia e fui à agência
dos correios.
— E depois?
— Trouxe um livro para ler — ela disse.
— E sou eu quem precisa viver a minha vida. — Sorri, e ela
tentou sorrir também, mas havia algo estranho em seu sorriso. Depois de alguns
segundos, falei: — Que tal um cineminha?
— Boa ideia. Tem alguma coisa que você queira ver?
— Vamos fazer o de sempre: ir até lá e assistir ao filme que
estiver para começar.
Ela fechou a porta do carro para mim e andou até o lado do
motorista. Fomos ao cinema Castleton e assistimos a um filme 3-D sobre roedores
falantes. No fim das contas, o filme até que era engraçado.
* * *
Quando saímos do cinema, vi que tinha recebido quatro
torpedos do
Augustus.
Diga que meu exemplar veio com as últimas vinte páginas
faltando ou algo assim.
Hazel Grace, diga que eu não cheguei ao fim deste livro.
AI MEU DEUS ELES SE CASAM OU NÃO AI MEU DEUS O QUE É ISSO
A Anna morreu e a história acabou, é isso? CRUEL.
Ligue para mim quando puder. Espero que esteja tudo bem.
Então, quando cheguei à minha casa, fui direto para o
quintal, me sentei numa cadeira de vime trançado meio velhinha que havia na
varanda, e liguei para ele. O dia estava nublado, como sempre está em Indiana:
o tipo de clima que deixa qualquer um deprimido. Ocupando quase toda a área do
quintal ficava o balanço que eu usava na infância, e que agora tinha uma
aparência toda alagada e patética.
O Augustus atendeu no terceiro toque.
— Hazel Grace — falou.
— Seja bem-vindo à doce tortura que é ler Uma aflição… —
Parei ao ouvir um choro convulsivo do outro lado da linha. — Você está bem? —
perguntei.
— Ah, maravilha — o Augustus respondeu. — Mas estou aqui com
o Isaac, que está meio descompensado. — Mais choro. Como o grito de morte de
algum animal ferido. O Gus deu atenção para o Isaac. — Cara. Cara. A Hazel do
Grupo de Apoio ajuda ou atrapalha? Isaac. Preste. Atenção. Em. Mim. — Um minuto
depois o Gus me perguntou: — Você pode vir até a minha casa em mais ou menos
vinte minutos?
— Claro — respondi, e desliguei.
* * *
Se desse para ir em linha reta, eu levaria só uns cinco
minutos da minha casa até a do Augustus de carro, mas não dá porque o Holliday
Park está entre nós.
Mesmo sendo uma inconveniência geográfica, eu gostava muito
do Holliday Park. Quando era pequena, costumava brincar no rio White com o
papai, e sempre havia um momento fantástico em que ele me lançava no alto, me
jogando para longe, eu esticava os braços durante o voo e papai, os dele, e
então ambos víamos que nossos braços não iriam se tocar e que ninguém iria me
pegar, o que nos assustava da melhor maneira possível, e aí eu, as pernas
agitadas no ar, mergulhava na água e depois subia para respirar, ilesa, a
corrente me levando de volta para ele enquanto eu dizia de novo, papai, de
novo.
Estacionei na entrada de carros ao lado de um Toyota preto
meio antigo modelo sedã. Imaginei que fosse o carro do Isaac. Levando o
cilindro no carrinho atrás de mim, andei até a porta de entrada. Bati. O pai do
Gus atendeu.
— Só Hazel — exclamou. — Que bom ver você.
— O Augustus disse que eu poderia vir aqui.
— É. Ele e o Isaac estão no porão. — Naquele momento ouvi um
choro vindo lá de baixo.
— E esse é o Isaac — disse o pai do Gus, balançando a cabeça
devagar. — Cindy precisou sair para dar uma volta de carro. O barulho… — ele
falou, divagando. — Bem, de qualquer maneira, acho que você está sendo
requisitada lá embaixo. Posso carregar seu cilindro? — ele perguntou.
— Não precisa, estou bem. Obrigada mesmo assim, Sr. Waters.
— Mark — ele disse.
Eu estava meio com medo de descer. Ouvir gente chorando
convulsivamente não é um dos meus passatempos favoritos. Mas fui mesmo assim.
— Hazel Grace — disse o Augustus ao ouvir o ruído dos meus
passos.
— Isaac, a Hazel do Grupo de Apoio está descendo. Hazel, só
para lembrar: o Isaac está no meio de um surto psicótico.
O Augustus e o Isaac estavam sentados em poltronas em
formato de L, daquelas próprias para se jogar videogame, olhando para cima,
para uma televisão gigantesca. A tela estava dividida entre o ponto de vista do
Isaac, à esquerda, e o do Augustus, à direita. Eles eram soldados em guerra
numa cidade contemporânea toda bombardeada. Reconheci o cenário como sendo o de
O preço do alvorecer. Ao me aproximar, o que vi não tinha nada de anormal: só
dois caras sentados, banhados pela luz de uma televisão enorme, fingindo matar
pessoas.
Só quando fiquei bem ao lado deles pude ver o rosto do
Isaac. Lágrimas corriam num fluxo contínuo por suas bochechas vermelhas, a cara
dele uma máscara de dor. Ele olhava vidrado para a tela, sem virar nem um
instantinho na minha direção, aos prantos, o tempo todo apertando os botões do
controle.
— Está tudo bem, Hazel? — perguntou o Augustus.
— Estou bem — respondi. — Isaac?
Nenhuma resposta. Nem mesmo uma pista que determinasse se
ele estava ou não consciente da minha presença ali. Só lágrimas descendo pelo
rosto e encharcando a camiseta preta.
O Augustus tirou os olhos da tela só por um instante.
— Você está bonita — ele disse. Eu usava um vestido que ia
até um pouquinho abaixo dos joelhos e que eu tinha há séculos. — As garotas
pensam que só podem usar vestidos em ocasiões formais, mas eu gosto da mulher
que diz, tipo: Estou indo ver um cara em meio a um colapso nervoso, um cara
cuja ligação com o sentido da visão é tênue, e, que se dane, vou usar esse
vestido para ele.
— E mesmo assim — falei — o Isaac não é nem capaz de dar uma
olhada rápida em mim. Apaixonado demais pela Monica, só pode ser. — Comentário
esse que resultou num choro catastrófico.
— Este é um assunto delicado — o Augustus explicou. — Isaac,
não sei por você, mas tenho a vaga impressão de que estamos sendo flanqueados.
— E voltou a falar comigo: — O Isaac e a Monica não são
mais um casal, mas ele não quer falar sobre isso. Só quer
chorar e jogar Counterinsurgence 2: O preço do alvorecer.
— É justo — falei.
— Isaac, estou começando a ficar preocupado com a nossa
localização. Caso concorde com isso, vá até aquela usina termoelétrica, e eu
cubro você.
O Isaac correu para uma construção indistinta enquanto o
Augustus atirava enlouquecidamente com uma metralhadora, numa série de rajadas
rápidas, e corria atrás dele.
— De qualquer forma — o Augustus se dirigiu a mim —, não vai
fazer nenhum mal falar com ele. Se tiver alguma palavra sábia, algum conselho
feminino.
— Para falar a verdade, acho que a reação dele é,
provavelmente, a mais apropriada — comentei, enquanto uma rajada da
metralhadora do Isaac matou um inimigo que havia colocado a cabeça para fora da
carcaça incendiada de um caminhão.
O Augustus fez que sim com a cabeça, ainda olhando para a
tela.
— A dor precisa ser sentida — ele disse, e esta era uma
frase do Uma aflição imperial. — Você tem certeza de que não há ninguém atrás
de nós? — ele perguntou ao Isaac. Momentos depois, balas traçantes começaram a
zumbir acima da cabeça deles. — Ai, que droga, Isaac — o Augustus disse. — Não
quero criticar você num momento tão sensível como esse, mas deixou que fôssemos
flanqueados, e agora não há nada entre os terroristas e a escola.
O personagem do Isaac partiu correndo na direção do fogo
cruzado, ziguezagueando por uma passagem estreita.
— Vocês poderiam atravessar a ponte e dar a volta por trás —
palpitei, uma tática que conhecia graças à minha leitura de O preço do
alvorecer.
O Augustus suspirou.
— Infelizmente, a ponte já está sob o controle dos rebeldes
devido à estratégia questionável do meu parceiro desconsolado aqui.
— Eu? — o Isaac disse, ofegante. — Eu?! Foi você quem
sugeriu que nos metêssemos no raio da usina termoelétrica.
Gus desviou o olhar da tela por um segundo e deu seu sorriso
torto para o Isaac.
— Eu sabia que você conseguia falar, meu chapa — ele disse.
— Agora vamos salvar alguns estudantes mirins ficcionais.
Juntos, eles correram pela passagem estreita, atirando e se
escondendo nos momentos certos, até chegarem a uma escola de um andar só e com
apenas uma sala. Eles se agacharam atrás de uma parede do outro lado da rua e
acertaram os inimigos, um a um.
— Por que eles querem entrar na escola? — perguntei.
— Pretendem fazer as crianças de reféns — o Augustus
respondeu.
Os ombros dele estavam curvados e ele apertava os botões do
controle, os antebraços rijos, as veias visíveis. O Isaac se inclinou para a
frente, para a tela, o controle dançando na mão fina de dedos finos.
— Vai vai vai — o Augustus disse.
Ondas de terroristas continuaram surgindo, e eles dizimaram
todos, os tiros surpreendentemente precisos, como tinham de ser, para que não
acabassem atirando na escola.
— Granada! Granada! — o Augustus gritou quando alguma coisa
passou desenhando um arco pela tela, quicou no caminho que levava à entrada da
escola e então rolou, parando encostada na porta.
O Isaac largou o controle, de tão frustrado.
— Se esses desgraçados não conseguirem fazer reféns, vão
matar todos eles e colocar a culpa em nós.
— Isaac, me cubra! — o Augustus falou ao pular de trás da
parede e correr na direção da escola.
O Isaac pegou de volta o controle, sem jeito, e começou a
atirar enquanto choviam balas em cima do Augustus, que foi atingido uma vez e
depois duas, mas continuou a correr, gritando: ‚VOCÊS NÃO PODEM MATAR MAX
MAYHEM!‛, e com uma combinação final e afobada de apertos nos botões ele
mergulhou em cima da granada, que detonou. Seu corpo desmembrado explodiu como um
gêiser e a tela ficou toda vermelha. Uma voz gutural disse: ‚MISSÃO
FRACASSADA‛, mas o Augustus não parecia concordar com isso enquanto sorria,
vendo seus restos mortais na
tela. Ele enfiou a mão no bolso, pegou um cigarro e
colocou-o entre os dentes.
— Salvamos as crianças — ele disse.
— Por enquanto — observei.
— Todo salvamento é temporário — o Augustus retrucou. — Eu
proporcionei a elas mais um minuto. Talvez esse seja o minuto que vai
proporcionar a elas mais uma hora, que é a hora que vai proporcionar a elas
mais um ano. Ninguém vai dar a elas uma quantidade infinita de tempo, Hazel
Grace, mas a minha vida deu a elas mais um minuto. E isso não é pouco.
— Opa, peraí — eu disse. — Estamos falando de pixels aqui.
Ele deu de ombros, como se acreditasse que o jogo pudesse
ser realmente de verdade. O Isaac estava chorando de novo. O Augustus se virou
para ele:
— Vamos tentar completar a missão mais uma vez, cabo?
O Isaac fez que não. Ele se inclinou pela frente do Augustus
para olhar para mim e disse, as cordas vocais exigidas ao extremo:
— Ela não quis deixar para depois.
— Ela não quis terminar o namoro com um cara cego — falei.
Ele concordou, as lágrimas caindo na cadência de um
metrônomo silencioso: constante, interminável.
— Ela disse que não conseguiria lidar com isso — o Isaac
falou. — Estou prestes a perder a visão e ela não consegue lidar com isso.
Eu fiquei pensando no verbo lidar, e em todas as coisas não
lidáveis com que se tem de lidar.
— Sinto muito — falei.
Ele enxugou o rosto todo molhado na manga da camisa. Por
trás dos óculos, os olhos do Isaac pareciam tão grandes que tudo mais no rosto
dele meio que desaparecia, e ficavam só aqueles dois olhos flutuantes e
incorpóreos olhando para mim: um de verdade, um de vidro.
— Isso é inaceitável — ele me disse. — Isso é totalmente
inaceitável.
— Bem, para ser honesta — falei —, quer dizer, ela não deve
mesmo conseguir lidar com isso. Você também não, mas ela não precisa. E você,
sim.
— Eu ficava dizendo ‚sempre‛ para ela hoje, ‚sempre, sempre,
sempre‛, e ela só continuava falando ao mesmo tempo que eu, sem me escutar, e
não disse ‚sempre‛ para mim. Era como se eu não estivesse mais ali, sabe?
‚Sempre‛ era uma promessa! Como é que você pode não cumprir uma promessa desse
jeito?
— Às vezes as pessoas não têm noção das promessas que estão
fazendo no momento em que as fazem — falei.
O Isaac me lançou um olhar ferino.
— Tá, tem razão. Mas você cumpre a promessa mesmo assim.
Amar é isso. Amar é cumprir a promessa mesmo assim. Você não acredita em amor
verdadeiro?
Não respondi. Não tinha uma resposta para aquela pergunta.
Mas tive a sensação de que se o amor verdadeiro existisse, aquela seria uma
definição bastante boa para ele.
— Eu acredito em amor verdadeiro — o Isaac disse. — Eu amo a
Monica. E ela fez uma promessa. Ela me prometeu para sempre.
Ele ficou de pé e deu um passo na minha direção. Eu me
levantei, achando que ele queria um abraço ou coisa assim, mas aí ele
simplesmente deu meia-volta, como se não conseguisse se lembrar de por que
tinha ficado em pé, e então o Augustus e eu vimos uma expressão de ódio tomar
conta do rosto dele.
— Isaac — o Gus disse.
— O quê?
— Você parece um pouco… Não leve a mal o duplo sentido,
amigo, mas há algo preocupante no seu olhar.
De repente, o Isaac começou a chutar enlouquecidamente a
poltrona do videogame, que deu uma cambalhota para trás e foi parar perto da
cama do Gus.
— E lá vamos nós — disse o Augustus. O Isaac seguiu a
poltrona e chutou a coitada mais uma vez. — Isso aí — falou o Augustus. — Atrás
dela. Chute a poltrona até não poder mais!
O Isaac chutou a poltrona de novo, até que ela bateu na cama
do Gus,
e aí ele pegou um dos travesseiros e começou a bater com ele
na parede entre a cama e a prateleira de troféus. O Augustus olhou para mim, o
cigarro ainda na boca, e deu aquele sorrisinho típico dele.
— Eu não consigo parar de pensar naquele livro.
— Nem me fale!
— Ele nunca disse o que acontece com os outros personagens?
— Não — respondi. O Isaac ainda estava batendo na parede com
o travesseiro. — Ele se mudou para Amsterdã, o que me fez imaginar que talvez
estivesse escrevendo a continuação da história, com o Homem das Tulipas
Holandês como personagem principal, mas ele não publicou nada. Ele nunca é
entrevistado. E não parece estar on-line. Já escrevi várias cartas perguntando
o que acontece com todo mundo, mas ele nunca responde. Então… é isso.
Parei de falar porque o Augustus não parecia mais estar
prestando atenção. Em vez disso, olhava para o Isaac com os olhos semicerrados. UAI foi o único livro escrito por Peter Van Houten, e tudo o
que as pessoas pareciam saber a respeito do autor era que depois do lançamento
do livro ele se mudou dos Estados Unidos para a Holanda e passou a viver
recluso. Imaginei que ele estaria trabalhando numa continuação da história,
ambientada na Holanda — talvez a mãe da Anna e o Homem das Tulipas Holandês
tivessem se mudado para lá e estivessem tentando começar uma vida nova. Mas já
fazia dez anos que Uma aflição imperial tinha sido lançado, e depois disso o
Van Houten não publicou nenhum post num blog sequer. Eu não poderia esperar
para sempre.
Enquanto lia o livro aquela noite, de vez em quando me
distraía ao imaginar o Augustus Waters lendo as mesmas palavras que eu. Será
que estava gostando, ou tinha parado no meio por achar o livro pretensioso? Aí
me lembrei da promessa que fiz de ligar para ele assim que terminasse O preço
do alvorecer, então peguei o número do telefone na primeira página do livro e
mandei um torpedo para ele.
Opinião sobre O preço do alvorecer: muitos corpos.
Quantidade insuficiente de adjetivos. Como vai o UAI?
Ele respondeu um minuto
depois:
Se lembro bem, você prometeu me LIGAR quando terminasse de
ler o livro, e não me mandar um SMS.
Aí eu liguei.
— Hazel Grace — ele disse ao atender.
— Você leu tudo?
— Não acabei ainda. O livro tem seiscentas e cinquenta e uma
páginas e eu só tive vinte e quatro horas.
— Até onde chegou?
— Página quatrocentos e cinquenta e três.
— E?
— Nada de opiniões antes do fim. Mas tenho de admitir que
estou meio envergonhado de ter dado O preço do alvorecer para você ler.
— Não fique. Já estou no Réquiem para Mayhem.
— Um acréscimo brilhante à série. Então tá, me diga, o cara
das tulipas é um vigarista ou não é? Estou tendo um mau pressentimento com
relação a ele. — Nada de estragar o suspense — eu disse.
— Se ele for qualquer coisa diferente de um completo
cavalheiro, vou arrancar os olhos dele fora.
— Então você está gostando do livro.
— Nada de opiniões antes do fim! Quando posso ver você?
— Com certeza, não até terminar Uma aflição imperial. — Eu
adorava fazer jogo duro.
— Então é melhor eu desligar e começar a ler.
— Melhor mesmo — falei, e o telefonema acabou ali.
Paquerar era uma coisa nova para mim, mas eu estava
gostando.
* * *
Na manhã seguinte eu tinha aula de Poesia Norte-americana do
Século XX no MCC. Uma professora bem mais velha conseguiu falar noventa minutos
da Sylvia Plath sem citar uma palavra da Sylvia Plath.
Quando saí da aula, mamãe estava parada no meio-fio na
frente do prédio.
— Você ficou esperando aqui o tempo todo? — perguntei quando
ela se apressou em me ajudar a puxar o carrinho e o cilindro para dentro do
carro.
— Não. Peguei algumas roupas na lavanderia e fui à agência
dos correios.
— E depois?
— Trouxe um livro para ler — ela disse.
— E sou eu quem precisa viver a minha vida. — Sorri, e ela
tentou sorrir também, mas havia algo estranho em seu sorriso. Depois de alguns
segundos, falei: — Que tal um cineminha?
— Boa ideia. Tem alguma coisa que você queira ver?
— Vamos fazer o de sempre: ir até lá e assistir ao filme que
estiver para começar.
Ela fechou a porta do carro para mim e andou até o lado do
motorista. Fomos ao cinema Castleton e assistimos a um filme 3-D sobre roedores
falantes. No fim das contas, o filme até que era engraçado.
* * *
Quando saímos do cinema, vi que tinha recebido quatro
torpedos do
Augustus.
Diga que meu exemplar veio com as últimas vinte páginas
faltando ou algo assim.
Hazel Grace, diga que eu não cheguei ao fim deste livro.
AI MEU DEUS ELES SE CASAM OU NÃO AI MEU DEUS O QUE É ISSO
A Anna morreu e a história acabou, é isso? CRUEL.
Ligue para mim quando puder. Espero que esteja tudo bem.
Então, quando cheguei à minha casa, fui direto para o
quintal, me sentei numa cadeira de vime trançado meio velhinha que havia na
varanda, e liguei para ele. O dia estava nublado, como sempre está em Indiana:
o tipo de clima que deixa qualquer um deprimido. Ocupando quase toda a área do
quintal ficava o balanço que eu usava na infância, e que agora tinha uma
aparência toda alagada e patética.
O Augustus atendeu no terceiro toque.
— Hazel Grace — falou.
— Seja bem-vindo à doce tortura que é ler Uma aflição… —
Parei ao ouvir um choro convulsivo do outro lado da linha. — Você está bem? —
perguntei.
— Ah, maravilha — o Augustus respondeu. — Mas estou aqui com
o Isaac, que está meio descompensado. — Mais choro. Como o grito de morte de
algum animal ferido. O Gus deu atenção para o Isaac. — Cara. Cara. A Hazel do
Grupo de Apoio ajuda ou atrapalha? Isaac. Preste. Atenção. Em. Mim. — Um minuto
depois o Gus me perguntou: — Você pode vir até a minha casa em mais ou menos
vinte minutos?
— Claro — respondi, e desliguei.
* * *
Se desse para ir em linha reta, eu levaria só uns cinco
minutos da minha casa até a do Augustus de carro, mas não dá porque o Holliday
Park está entre nós.
Mesmo sendo uma inconveniência geográfica, eu gostava muito
do Holliday Park. Quando era pequena, costumava brincar no rio White com o
papai, e sempre havia um momento fantástico em que ele me lançava no alto, me
jogando para longe, eu esticava os braços durante o voo e papai, os dele, e
então ambos víamos que nossos braços não iriam se tocar e que ninguém iria me
pegar, o que nos assustava da melhor maneira possível, e aí eu, as pernas
agitadas no ar, mergulhava na água e depois subia para respirar, ilesa, a
corrente me levando de volta para ele enquanto eu dizia de novo, papai, de
novo.
Estacionei na entrada de carros ao lado de um Toyota preto
meio antigo modelo sedã. Imaginei que fosse o carro do Isaac. Levando o
cilindro no carrinho atrás de mim, andei até a porta de entrada. Bati. O pai do
Gus atendeu.
— Só Hazel — exclamou. — Que bom ver você.
— O Augustus disse que eu poderia vir aqui.
— É. Ele e o Isaac estão no porão. — Naquele momento ouvi um
choro vindo lá de baixo.
— E esse é o Isaac — disse o pai do Gus, balançando a cabeça
devagar. — Cindy precisou sair para dar uma volta de carro. O barulho… — ele
falou, divagando. — Bem, de qualquer maneira, acho que você está sendo
requisitada lá embaixo. Posso carregar seu cilindro? — ele perguntou.
— Não precisa, estou bem. Obrigada mesmo assim, Sr. Waters.
— Mark — ele disse.
Eu estava meio com medo de descer. Ouvir gente chorando
convulsivamente não é um dos meus passatempos favoritos. Mas fui mesmo assim.
— Hazel Grace — disse o Augustus ao ouvir o ruído dos meus
passos.
— Isaac, a Hazel do Grupo de Apoio está descendo. Hazel, só
para lembrar: o Isaac está no meio de um surto psicótico.
O Augustus e o Isaac estavam sentados em poltronas em
formato de L, daquelas próprias para se jogar videogame, olhando para cima,
para uma televisão gigantesca. A tela estava dividida entre o ponto de vista do
Isaac, à esquerda, e o do Augustus, à direita. Eles eram soldados em guerra
numa cidade contemporânea toda bombardeada. Reconheci o cenário como sendo o de
O preço do alvorecer. Ao me aproximar, o que vi não tinha nada de anormal: só
dois caras sentados, banhados pela luz de uma televisão enorme, fingindo matar
pessoas.
Só quando fiquei bem ao lado deles pude ver o rosto do
Isaac. Lágrimas corriam num fluxo contínuo por suas bochechas vermelhas, a cara
dele uma máscara de dor. Ele olhava vidrado para a tela, sem virar nem um
instantinho na minha direção, aos prantos, o tempo todo apertando os botões do
controle.
— Está tudo bem, Hazel? — perguntou o Augustus.
— Estou bem — respondi. — Isaac?
Nenhuma resposta. Nem mesmo uma pista que determinasse se
ele estava ou não consciente da minha presença ali. Só lágrimas descendo pelo
rosto e encharcando a camiseta preta.
O Augustus tirou os olhos da tela só por um instante.
— Você está bonita — ele disse. Eu usava um vestido que ia
até um pouquinho abaixo dos joelhos e que eu tinha há séculos. — As garotas
pensam que só podem usar vestidos em ocasiões formais, mas eu gosto da mulher
que diz, tipo: Estou indo ver um cara em meio a um colapso nervoso, um cara
cuja ligação com o sentido da visão é tênue, e, que se dane, vou usar esse
vestido para ele.
— E mesmo assim — falei — o Isaac não é nem capaz de dar uma
olhada rápida em mim. Apaixonado demais pela Monica, só pode ser. — Comentário
esse que resultou num choro catastrófico.
— Este é um assunto delicado — o Augustus explicou. — Isaac,
não sei por você, mas tenho a vaga impressão de que estamos sendo flanqueados.
— E voltou a falar comigo: — O Isaac e a Monica não são
mais um casal, mas ele não quer falar sobre isso. Só quer
chorar e jogar Counterinsurgence 2: O preço do alvorecer.
— É justo — falei.
— Isaac, estou começando a ficar preocupado com a nossa
localização. Caso concorde com isso, vá até aquela usina termoelétrica, e eu
cubro você.
O Isaac correu para uma construção indistinta enquanto o
Augustus atirava enlouquecidamente com uma metralhadora, numa série de rajadas
rápidas, e corria atrás dele.
— De qualquer forma — o Augustus se dirigiu a mim —, não vai
fazer nenhum mal falar com ele. Se tiver alguma palavra sábia, algum conselho
feminino.
— Para falar a verdade, acho que a reação dele é,
provavelmente, a mais apropriada — comentei, enquanto uma rajada da
metralhadora do Isaac matou um inimigo que havia colocado a cabeça para fora da
carcaça incendiada de um caminhão.
O Augustus fez que sim com a cabeça, ainda olhando para a
tela.
— A dor precisa ser sentida — ele disse, e esta era uma
frase do Uma aflição imperial. — Você tem certeza de que não há ninguém atrás
de nós? — ele perguntou ao Isaac. Momentos depois, balas traçantes começaram a
zumbir acima da cabeça deles. — Ai, que droga, Isaac — o Augustus disse. — Não
quero criticar você num momento tão sensível como esse, mas deixou que fôssemos
flanqueados, e agora não há nada entre os terroristas e a escola.
O personagem do Isaac partiu correndo na direção do fogo
cruzado, ziguezagueando por uma passagem estreita.
— Vocês poderiam atravessar a ponte e dar a volta por trás —
palpitei, uma tática que conhecia graças à minha leitura de O preço do
alvorecer.
O Augustus suspirou.
— Infelizmente, a ponte já está sob o controle dos rebeldes
devido à estratégia questionável do meu parceiro desconsolado aqui.
— Eu? — o Isaac disse, ofegante. — Eu?! Foi você quem
sugeriu que nos metêssemos no raio da usina termoelétrica.
Gus desviou o olhar da tela por um segundo e deu seu sorriso
torto para o Isaac.
— Eu sabia que você conseguia falar, meu chapa — ele disse.
— Agora vamos salvar alguns estudantes mirins ficcionais.
Juntos, eles correram pela passagem estreita, atirando e se
escondendo nos momentos certos, até chegarem a uma escola de um andar só e com
apenas uma sala. Eles se agacharam atrás de uma parede do outro lado da rua e
acertaram os inimigos, um a um.
— Por que eles querem entrar na escola? — perguntei.
— Pretendem fazer as crianças de reféns — o Augustus
respondeu.
Os ombros dele estavam curvados e ele apertava os botões do
controle, os antebraços rijos, as veias visíveis. O Isaac se inclinou para a
frente, para a tela, o controle dançando na mão fina de dedos finos.
— Vai vai vai — o Augustus disse.
Ondas de terroristas continuaram surgindo, e eles dizimaram
todos, os tiros surpreendentemente precisos, como tinham de ser, para que não
acabassem atirando na escola.
— Granada! Granada! — o Augustus gritou quando alguma coisa
passou desenhando um arco pela tela, quicou no caminho que levava à entrada da
escola e então rolou, parando encostada na porta.
O Isaac largou o controle, de tão frustrado.
— Se esses desgraçados não conseguirem fazer reféns, vão
matar todos eles e colocar a culpa em nós.
— Isaac, me cubra! — o Augustus falou ao pular de trás da
parede e correr na direção da escola.
O Isaac pegou de volta o controle, sem jeito, e começou a
atirar enquanto choviam balas em cima do Augustus, que foi atingido uma vez e
depois duas, mas continuou a correr, gritando: ‚VOCÊS NÃO PODEM MATAR MAX
MAYHEM!‛, e com uma combinação final e afobada de apertos nos botões ele
mergulhou em cima da granada, que detonou. Seu corpo desmembrado explodiu como um
gêiser e a tela ficou toda vermelha. Uma voz gutural disse: ‚MISSÃO
FRACASSADA‛, mas o Augustus não parecia concordar com isso enquanto sorria,
vendo seus restos mortais na
tela. Ele enfiou a mão no bolso, pegou um cigarro e
colocou-o entre os dentes.
— Salvamos as crianças — ele disse.
— Por enquanto — observei.
— Todo salvamento é temporário — o Augustus retrucou. — Eu
proporcionei a elas mais um minuto. Talvez esse seja o minuto que vai
proporcionar a elas mais uma hora, que é a hora que vai proporcionar a elas
mais um ano. Ninguém vai dar a elas uma quantidade infinita de tempo, Hazel
Grace, mas a minha vida deu a elas mais um minuto. E isso não é pouco.
— Opa, peraí — eu disse. — Estamos falando de pixels aqui.
Ele deu de ombros, como se acreditasse que o jogo pudesse
ser realmente de verdade. O Isaac estava chorando de novo. O Augustus se virou
para ele:
— Vamos tentar completar a missão mais uma vez, cabo?
O Isaac fez que não. Ele se inclinou pela frente do Augustus
para olhar para mim e disse, as cordas vocais exigidas ao extremo:
— Ela não quis deixar para depois.
— Ela não quis terminar o namoro com um cara cego — falei.
Ele concordou, as lágrimas caindo na cadência de um
metrônomo silencioso: constante, interminável.
— Ela disse que não conseguiria lidar com isso — o Isaac
falou. — Estou prestes a perder a visão e ela não consegue lidar com isso.
Eu fiquei pensando no verbo lidar, e em todas as coisas não
lidáveis com que se tem de lidar.
— Sinto muito — falei.
Ele enxugou o rosto todo molhado na manga da camisa. Por
trás dos óculos, os olhos do Isaac pareciam tão grandes que tudo mais no rosto
dele meio que desaparecia, e ficavam só aqueles dois olhos flutuantes e
incorpóreos olhando para mim: um de verdade, um de vidro.
— Isso é inaceitável — ele me disse. — Isso é totalmente
inaceitável.
— Bem, para ser honesta — falei —, quer dizer, ela não deve
mesmo conseguir lidar com isso. Você também não, mas ela não precisa. E você,
sim.
— Eu ficava dizendo ‚sempre‛ para ela hoje, ‚sempre, sempre,
sempre‛, e ela só continuava falando ao mesmo tempo que eu, sem me escutar, e
não disse ‚sempre‛ para mim. Era como se eu não estivesse mais ali, sabe?
‚Sempre‛ era uma promessa! Como é que você pode não cumprir uma promessa desse
jeito?
— Às vezes as pessoas não têm noção das promessas que estão
fazendo no momento em que as fazem — falei.
O Isaac me lançou um olhar ferino.
— Tá, tem razão. Mas você cumpre a promessa mesmo assim.
Amar é isso. Amar é cumprir a promessa mesmo assim. Você não acredita em amor
verdadeiro?
Não respondi. Não tinha uma resposta para aquela pergunta.
Mas tive a sensação de que se o amor verdadeiro existisse, aquela seria uma
definição bastante boa para ele.
— Eu acredito em amor verdadeiro — o Isaac disse. — Eu amo a
Monica. E ela fez uma promessa. Ela me prometeu para sempre.
Ele ficou de pé e deu um passo na minha direção. Eu me
levantei, achando que ele queria um abraço ou coisa assim, mas aí ele
simplesmente deu meia-volta, como se não conseguisse se lembrar de por que
tinha ficado em pé, e então o Augustus e eu vimos uma expressão de ódio tomar
conta do rosto dele.
— Isaac — o Gus disse.
— O quê?
— Você parece um pouco… Não leve a mal o duplo sentido,
amigo, mas há algo preocupante no seu olhar.
De repente, o Isaac começou a chutar enlouquecidamente a
poltrona do videogame, que deu uma cambalhota para trás e foi parar perto da
cama do Gus.
— E lá vamos nós — disse o Augustus. O Isaac seguiu a
poltrona e chutou a coitada mais uma vez. — Isso aí — falou o Augustus. — Atrás
dela. Chute a poltrona até não poder mais!
O Isaac chutou a poltrona de novo, até que ela bateu na cama
do Gus,
e aí ele pegou um dos travesseiros e começou a bater com ele
na parede entre a cama e a prateleira de troféus. O Augustus olhou para mim, o
cigarro ainda na boca, e deu aquele sorrisinho típico dele.
— Eu não consigo parar de pensar naquele livro.
— Nem me fale!
— Ele nunca disse o que acontece com os outros personagens?
— Não — respondi. O Isaac ainda estava batendo na parede com
o travesseiro. — Ele se mudou para Amsterdã, o que me fez imaginar que talvez
estivesse escrevendo a continuação da história, com o Homem das Tulipas
Holandês como personagem principal, mas ele não publicou nada. Ele nunca é
entrevistado. E não parece estar on-line. Já escrevi várias cartas perguntando
o que acontece com todo mundo, mas ele nunca responde. Então… é isso.
Parei de falar porque o Augustus não parecia mais estar
prestando atenção. Em vez disso, olhava para o Isaac com os olhos semicerrados.
SITE DA PARTE 2: http://megamanxserie.blogspot.com.br/2013/06/a-culpa-e-das-estrelas-john-green-parte.html
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