CAPÍTULO DOZE
bri os olhos às quatro horas da manhã holandesa,
completamente acordada. Todas as tentativas de voltar a dormir foram em vão,
então fiquei deitada ali com o BiPAP bombeando o ar para dentro e puxando o ar
para fora, viajando nos ruídos de dragão mas desejando ser capaz de escolher de
que jeito respirar.
Reli o Uma aflição imperial até a mamãe acordar e rolar para
o meu lado, lá pelas seis horas. Ela aconchegou a cabeça no meu ombro, o que
foi um pouco desconfortável e ligeiramente augustiniano.
O hotel serviu o café da manhã no nosso quarto e, para minha
total satisfação, continha frios e muitas outras transgressões à composição do
café da manhã norte-americano. O vestido que eu tinha planejado usar no
encontro com o Peter Van Houten passou à frente dos outros na fila quando do
jantar no Oranjee; por isso, assim que saí do banho e consegui deixar o cabelo
mais ou menos liso, passei uma meia hora debatendo com a mamãe sobre as
diversas vantagens e desvantagens dos figurinos disponíveis, até que resolvi me
vestir o mais parecida com a Anna em UAI possível: Chuck Taylors, calça jeans
escura do jeito que ela sempre usava e uma camiseta de malha azul-claro.
A estampa da camiseta era a reprodução de um famoso quadro
surrealista de René Magritte, no qual ele pintou um cachimbo e escreveu
embaixo, em letras cursivas: Ceci n’est pas une pipe. (‚Isto não é um
cachimbo.‛)
— Eu não consigo entender essa camiseta — mamãe falou.
— O Peter Van Houten vai entender, acredite. Em Uma aflição
imperial há, tipo, umas sete mil referências ao Magritte.
— Mas isto é um cachimbo.
— Não, não é — falei. — É uma ilustração de um cachimbo.
A
Entendeu agora? Todas as representações de um objeto são
inerentemente abstratas. É muito inteligente.
— Como foi que você amadureceu tanto que consegue entender
coisas que confundem sua velha mãe? — ela perguntou. — Parece que foi ontem que
eu estava explicando para uma Hazel de sete anos por que o céu é azul. Você me
achou um gênio naquela época.
— Por que o céu é azul? — perguntei.
— Porque sim — ela respondeu, e eu ri.
Quanto mais perto das dez horas ia chegando, mais ansiosa eu
ficava: ansiosa para ver o Augustus; ansiosa para conhecer o Peter Van Houten;
ansiosa ao imaginar que minha roupa talvez pudesse não ter sido uma boa
escolha; ansiosa e com medo de não conseguirmos achar a casa certa, já que
todas as casas em Amsterdã se parecem; ansiosa e temerosa de nos perdermos e
não encontrarmos o caminho de volta para o Filosoof; ansiosa ansiosa ansiosa.
Mamãe ficava tentando bater papo comigo, mas eu não conseguia prestar atenção
nela direito. Eu já estava para pedir a ela que fosse até o andar de cima ver
se o Augustus estava acordado, quando ele chegou.
Abri a porta. Ele olhou minha camiseta e sorriu.
— Muito engraçado — ele disse.
— Não chame meu peito de engraçado — retruquei.
— Eu estou bem aqui — mamãe disse lá de trás.
Mas eu tinha feito o Augustus enrubescer e ficar tão sem
ação que finalmente pude sustentar o olhar dele.
— Tem certeza de que não quer ir também? — perguntei à
mamãe.
— Vou visitar o Rijksmuseum e o Vondelpark hoje — ela
respondeu. — Além do mais, não consigo gostar do livro dele. Sem querer
ofender. Agradeça a ele e à Lidewij por nós, tá?
— Tá — respondi. Abracei a mamãe e ela beijou a minha cabeça
bem acima da orelha.
* * *
A casa branca e geminada de Peter Van Houten ficava, saindo
do hotel, logo depois da curva, na Vondelstraat, de frente para a área do
parque. Número 158. O Augustus me deu a mão, carregou o carrinho do oxigênio
com a outra, e nós subimos os três degraus que levavam até a porta pintada de
verniz azul e preto da casa. Meu coração batia acelerado. Uma porta fechada era
a distância entre mim e as respostas com as quais vinha sonhando desde a
primeira vez que li a última página incompleta.
Dava para ouvir as batidas do som de um baixo, alto o
suficiente para fazer tremer os parapeitos das janelas. Fiquei me perguntando
se o Peter Van Houten teria um filho fã de rap.
Segurei a aldraba em formato de cabeça de leão e bati à
porta, hesitante. O som do baixo continuou.
— Talvez ele não consiga ouvir por causa da música? — o
Augustus comentou.
Ele pegou a cabeça do leão e bateu bem mais forte.
A música parou de tocar e foi substituída pelo som de passos
trôpegos. Uma das trancas foi destravada. E mais outra. A porta se abriu com um
rangido. Um homem barrigudo, de cabelo ralo, bochechas caídas e a barba de uma
semana por fazer estreitou os olhos por causa da luz do sol. Ele usava um
pijama azul-bebê, como um personagem de filme antigo. O rosto e a barriga eram
tão redondos e os braços, tão magros, que ele parecia uma bola de massa de pão
com quatro varetas enfiadas.
— Sr. Van Houten? — o Augustus perguntou, a voz esganiçando
um tiquinho.
A porta se fechou com um estrondo. De trás dela, ouvi uma
voz aguda e gaguejante gritar: ‚LIII-DEE-VI-GUE!‛ (Até aquele momento, eu vinha
pronunciando o nome da assistente dele como li-de-vi-ge.) Nós conseguíamos escutar
tudo através da porta.
— Eles estão aqui, Peter? — uma mulher perguntou.
— Estão… Lidewij, há duas aparições adolescentes atrás da
porta.
— Aparições? — ela perguntou, com uma melodia cadenciada
tipicamente holandesa.
O Van
Houten respondeu rápido.
— Fantasmas espectros demônios visitantes pós-terrestres
aparições, Lidewij. Como pode uma pessoa que almeja obter um diploma de
pós-graduação em literatura norte-americana demonstrar um conhecimento tão
abominável da língua inglesa?
— Peter, aqueles não são visitantes pós-terrestres. Eles são
o Augustus e a Hazel, os jovens fãs com os quais você vem se correspondendo.
— Eles são quem?! Eles… eu pensei que estivessem nos Estados
Unidos da América!
— Sim, mas você os convidou para vir até aqui, se bem se lembra.
— Você sabe por que eu me mudei dos Estados Unidos, Lidewij?
Para que nunca mais precisasse me encontrar com nenhum norte-americano.
— Mas você é norte-americano.
— Algo aparentemente incurável, imagino. Mas, quanto a esses
norte-americanos aí, você deve pedir-lhes que vão embora imediatamente, que
houve um terrível engano, que o bendito Van Houten fez um convite retórico, não
a sério, que esse tipo de convite deve ser considerado algo simbólico.
Achei que fosse vomitar. Virei para o Augustus, que olhava
vidrado para a porta, e vi os ombros dele se encurvando.
— Não farei isso, Peter — a Lidewij respondeu. — Você deve
recebê-los. Você deve. Você precisa vê-los. Precisa ver como seu trabalho é
importante.
— Lidewij, você me manipulou, de caso pensado, para provocar
este encontro?
Um silêncio demorado se seguiu e, por fim, a porta se abriu
de novo. Ele virou a cabeça metronomicamente do Augustus para mim, ainda com os
olhos estreitados.
— Qual de vocês é o Augustus Waters? — perguntou.
O Augustus levantou a mão devagar. O Van Houten assentiu com
a cabeça e disse:
— Você já resolveu a questão com aquela franguinha?
E foi quando vi, pela primeira e única vez, um Augustus
Waters
totalmente sem palavras.
— Eu — ele começou —, humm, eu, Hazel, humm. Bem.
— Este garoto parece ter algum tipo de retardamento — o
Peter Van Houten disse para a Lidewij.
— Peter — ela o censurou.
— Bem — disse o Peter Van Houten, estendendo a mão para mim.
— É um prazer sem igual conhecer criaturas tão
ontologicamente improváveis.
Apertei a mão inchada dele e, em seguida, ele e o Augustus
se cumprimentaram. Fiquei me perguntando o que a palavra ontologicamente
significaria. Mesmo sem saber o que era, gostei dela. O Augustus e eu estávamos
juntos no Time das Criaturas Improváveis: nós e os ornitorrincos.
É claro que eu tinha esperado que o Peter Van Houten fosse
mentalmente são, mas o mundo não é uma fábrica de realização de desejos. A
coisa mais importante era que a porta fora aberta e eu estava entrando ali para
descobrir o que acontece depois do término do Uma aflição imperial. E isso era
o suficiente. Seguimos ele e a Lidewij para dentro da casa, passamos por uma
enorme mesa de jantar de madeira de carvalho com apenas duas cadeiras e
chegamos a uma sala de estar estranhamente estéril. Parecia um museu, só que
não havia quadro algum nas paredes brancas e vazias. Tirando um sofá e uma
poltrona reclinável, ambos feitos de uma combinação de aço e couro preto, a
sala parecia deserta. De repente, reparei em duas sacolas de lixo pretas
grandes, cheias e lacradas com aqueles arames retorcidos, atrás do sofá.
— Lixo? — balbuciei para o Augustus, baixinho, achando que
ninguém mais ouviria.
— Cartas de fãs — o Van Houten respondeu ao se sentar na
poltrona reclinável. — Dezoito anos delas. Não posso abri-las. É aterrorizante.
As de vocês foram as primeiras missivas às quais respondi, e vejam aonde isso
me levou. Para ser sincero, acho a realidade dos leitores totalmente insossa.
Aquilo explicava por que o Van Houten nunca havia respondido
às
minhas cartas: ele não tinha lido nenhuma. Fiquei me
perguntando por que guardava todas elas, ainda mais numa sala de estar formal e
quase vazia. O Van Houten colocou os pés em cima do pufe à frente da poltrona
reclinável e cruzou os chinelos. Ele apontou para o sofá. O Augustus e eu nos
sentamos lado a lado, mas não perto demais.
— Vocês gostariam de tomar café da manhã? — a Lidewij
perguntou.
Comecei a responder que já tínhamos comido quando o Peter me
interrompeu.
— É cedo demais para o café da manhã, Lidewij.
— Bem, eles vêm dos Estados Unidos, Peter. Já passa do
meio-dia para os dois.
— Neste caso é tarde demais para o café da manhã — ele
disse. — Porém, já que passa do meio-dia para eles, deveríamos então nos servir
de um drinque. Você toma uísque? — perguntou para mim.
— Se eu… hummm… não… obrigada — falei.
— Augustus Waters? — o Van Houten perguntou, balançando a
cabeça para o Augustus.
— É… Não, obrigado.
— Para mim, apenas, Lidewij. Uísque e água, por favor. — O
Peter transferiu a atenção para o Gus, perguntando: — Você sabe como preparamos
uma dose de uísque escocês com água nesta casa?
— Não, senhor — o Gus respondeu.
— Colocamos o uísque num copo, depois pensamos na água, e
então misturamos o uísque de verdade com a ideia abstrata da água.
— Talvez seja melhor tomar alguma coisa de café da manhã
antes, Peter — a Lidewij disse.
Ele olhou para nós e sussurrou, fingindo que estava contando
um segredo e que ela não podia ouvi-lo:
— A Lidewij acha que eu tenho problemas com a bebida.
— E eu acho que o sol nasceu — a Lidewij respondeu.
Mesmo assim, ela se encaminhou para o bar na sala de estar,
pegou uma garrafa de uísque, serviu o copo até a metade e levou até ele. O
Peter Van Houten tomou um gole e se ajeitou na cadeira, sentando-se ereto.
— Um drinque desta qualidade merece uma postura melhor — ele
disse.
Fiquei consciente da minha própria postura e me endireitei
um pouco no sofá. E ajeitei a cânula. Papai sempre dizia que é possível julgar
as pessoas pelo modo como tratam garçons e assistentes. Nesse aspecto, o Peter
Van Houten era, provavelmente, o cara mais idiota do mundo.
— Então você gosta do meu livro — ele disse para o Augustus
depois de outro gole.
— Sim — respondi pelo Augustus. — E, sim, nós… bem, o
Augustus, ele usou o Desejo dele para conhecer você, para que nós pudéssemos
vir aqui e você pudesse nos contar o que acontece depois do fim do Uma aflição
imperial.
O Van Houten não disse uma palavra. Apenas deu uma golada na
bebida. Depois de alguns instantes, o Augustus falou:
— Seu livro foi mais ou menos o que nos uniu.
— Mas vocês não são um casal — ele comentou, sem me olhar.
— O que quase nos uniu — falei.
Então ele olhou para mim.
— Você se vestiu igual a ela de propósito?
— Igual à Anna? — perguntei, e ele ficou só me encarando. —
Pode-se dizer que sim.
Ele esvaziou o copo e fez uma careta.
— Eu não tenho problemas com a bebida — ele anunciou, a voz
desnecessariamente alta. — Eu tenho uma relação churchilliana com o álcool:
posso contar piadas, governar a Inglaterra e fazer o que quiser. Exceto deixar
de beber.
Ele olhou para a Lidewij e fez um movimento com a cabeça em
direção ao copo. Ela o pegou e andou de volta até o bar.
— Só a ideia de água, Lidewij — ele instruiu.
— Está bem, já entendi — ela disse, o sotaque quase como o
nosso.
A segunda dose chegou. O Van Houten se empertigou todo de novo
como forma de demonstrar respeito. E tirou os chinelos. Seus pés eram realmente
feios. Ele estava arruinando a concepção que eu tinha de um
gênio autoral. Mas possuía as respostas.
— Bem, humm — falei —, primeiro nós queremos agradecer pelo
jantar de ontem à noite e…
— Nós pagamos o jantar para eles ontem à noite? — o Van
Houten perguntou para a Lidewij.
— Sim. No Oranjee.
— Ah, sim. Bem, acreditem em mim quando digo que vocês não
têm de me agradecer, e sim à Lidewij, que possui um talento excepcional quando
se trata de gastar o meu dinheiro.
— O prazer foi todo nosso — a Lidewij disse.
— Bem, obrigado, de qualquer forma — o Augustus falou.
Deu para sentir um quê de irritação na voz dele.
— Então aqui estou — o Van Houten disse após alguns
instantes. — Quais são as suas perguntas?
— Humm — o Augustus murmurou.
— Ele parecia tão inteligente nas cartas — o Van Houten
disse para a Lidewij, a respeito do Augustus. — Talvez o câncer tenha criado
uma cabeça de ponte no cérebro dele.
— Peter — a Lidewij disse, devidamente horrorizada.
Eu também estava horrorizada, mas havia algo de interessante
num cara tão vil que se recusava a nos tratar de forma condescendente.
— Temos mesmo algumas perguntas — eu disse. — Falei delas em
meu e-mail. Não sei se você lembra.
— Não lembro.
— A memória dele está comprometida — a Lidewij disse.
— Se ao menos minha memória se comprometesse… — o Van Houten
retrucou.
— Então, nossas perguntas — repeti.
— Ela usa o ‚nós‛ da realeza — o Peter falou, para ninguém
em particular.
Outro gole. Eu não sabia como era o gosto do uísque, mas se
fosse de alguma forma parecido com champanhe, não dava para entender como ele
conseguia beber tanto, tão rápido e tão cedo.
— Você conhece o paradoxo da tartaruga de Zenão? — ele
perguntou para mim.
— Nossas perguntas têm a ver com o que acontece com os
personagens depois do fim do livro, mais especificamente…
— Você presume de forma errônea que eu precise ouvir a sua
pergunta para que possa respondê-la. Já ouviu falar de Zenão, o filósofo?
Fiz ligeiramente que não com a cabeça.
— Ai de mim. Zenão era um filósofo pré-socrático que, dizem,
elaborou quarenta paradoxos associados à cosmovisão a partir de pensamentos
desenvolvidos por Parmênides… de Parmênides você já ouviu falar, naturalmente —
ele disse, e eu fiz que sabia quem era Parmênides, mesmo não sabendo. — Graças
a Deus! — ele falou. — Zenão se especializou em revelar as imprecisões e
simplificações de Parmênides, o que não foi difícil, pois Parmênides estava
sempre redondamente enganado em quase tudo. O valor de Parmênides é o mesmo que
o do amigo que escolhe o cavalo errado toda vez que você o leva ao hipódromo.
Mas o paradoxo mais conhecido de Zenão… Espere um instante… Qual é o seu grau
de familiaridade com o hip-hop sueco?
Eu não sabia dizer se o Peter Van Houten estava brincando ou
não. Depois de um tempo, o Augustus respondeu por mim:
— Limitado.
— Está bem, mas presumo que você conheça o álbum mais
influente de Afasi och Filthy intitulado Fläcken.
— Não, nós não conhecemos — respondi por nós dois.
— Lidewij, coloque ‚Bomfalleralla‛ para tocar imediatamente.
A Lidewij andou até um MP3 player, girou um pouquinho o botão circular e
apertou uma tecla. Um rap começou a reverberar em todas as direções. O som era
bastante familiar, exceto por ser cantado em sueco.
Terminou e o Van Houten olhou para nós, na expectativa, seus
olhinhos o mais arregalados que conseguiam ficar.
— E então? — perguntou.
— Então?
Aí eu falei:
— O senhor deve nos desculpar, mas nós não falamos sueco.
— Bem, é claro que não falam. Eu também não. Quem é que
raios fala sueco? O importante não é o que as vozes estão dizendo, o que quer
que seja, mas o que as vozes estão sentindo. Vocês certamente sabem que só
existem duas emoções, amor e medo, e que o Afasi och Filthy navega entre elas
com o tipo de facilidade que não se encontra no rap fora da Suécia. Querem que
eu bote para tocar de novo?
— Isso é uma piada? — o Gus perguntou.
— Como assim?
— Isso é algum tipo de performance? — Ele olhou para a
Lidewij e perguntou: — É isso?
— Creio que não — a Lidewij respondeu. — Ele não é sempre…
esse é um jeito incomum…
— Ah, cale a boca, Lidewij. Rudolf Otto disse que se você
não tiver vivenciado o numinoso, se não tiver experimentado um encontro
irracional com o mysterium tremendum, então o livro dele não é para você. E eu
lhes digo, jovens amigos, que se não conseguem ouvir a reação corajosa de Afasi
och Filthy ao medo, então meu livro não é para vocês.
É preciso que fique bem claro: aquilo era um rap
absolutamente normal, exceto pela letra em sueco.
— Humm — falei. — Então, o Uma aflição imperial. Quando o
livro termina, a mãe da Anna está prestes a…
O Van Houten me interrompeu, batendo no copo enquanto falava
até a Lidewij enchê-lo de novo.
— Pois bem, Zenão é mais famoso por seu paradoxo da tartaruga.
Imaginemos que você esteja participando de uma corrida com uma tartaruga. É
dada à tartaruga uma vantagem inicial, em distância, de dez metros. No tempo
que você leva para percorrer esses dez metros, a tartaruga talvez se desloque
um. E, então, no tempo que você leva para transpor essa distância, a tartaruga
vai um pouco mais à frente, e assim por diante. Você é mais rápido que a
tartaruga, mas não consegue alcançá-la; só consegue diminuir a distância entre
vocês.
‚Mas é óbvio que você acaba simplesmente passando pela
tartaruga
sem ponderar sobre a mecânica envolvida, mas a pergunta de
como foi capaz de fazer isso acaba sendo incrivelmente complicada e ninguém
tinha achado uma resposta para ela de verdade, até que Cantor demonstrou que
alguns infinitos são maiores que outros.‛
— Humm — murmurei.
— Imagino que isso responda à sua pergunta — ele disse,
confiante, e então deu um gole generoso na bebida.
— Não exatamente — falei. — Nós estávamos nos perguntando
se, depois do fim do Uma aflição imperial…
— Eu renego tudo o que há naquele livro pútrido — o Van
Houten disse, me interrompendo.
— Não — retruquei.
— O que foi que você disse?
— Não, isso não é aceitável — falei. — Eu entendo que a
história acaba no meio da narrativa porque a Anna morre ou fica doente demais
para continuar a escrever, mas você falou que ia nos dizer o que acontece com
os outros, e é por isso que estamos aqui, e nós, eu preciso que você me diga.
O Van Houten suspirou. Depois de mais um gole, disse:
— Muito bem. Você está curiosa a respeito de quem?
— A mãe da Anna, o Homem das Tulipas Holandês, Sísifo, o
hamster, quer dizer, é só… o que acontece com todo mundo.
O Van Houten fechou os olhos, inflou as bochechas ao expirar
e então olhou para cima, para as vigas de madeira expostas que se entrecruzavam
no teto.
— O hamster — ele disse, depois de um tempo. — O hamster é
adotado pela Christine…
Que era uma das amigas da Anna antes de ela ficar doente.
Aquilo fazia sentido. A Christine e a Anna brincaram com o Sísifo em algumas cenas.
— Ele é adotado pela Christine e vive alguns anos depois do
fim do livro, para então morrer pacificamente durante seu sono de hamster.
Agora, sim, estávamos indo a algum lugar.
— Legal — falei. — Legal. Tá, então agora, o Homem das
Tulipas Holandês. Ele é um vigarista? A mãe da Anna se casa com ele?
O Van Houten ainda estava olhando para as vigas no teto. Ele
tomou mais um gole. O copo já estava quase vazio de novo.
— Lidewij, eu não consigo fazer isso. Não consigo. Não
consigo. — Ele nivelou o olhar com o meu. — Nada acontece com o Homem das
Tulipas Holandês. Ele não é um vigarista nem um não-vigarista; ele é Deus. Ele
é uma representação metafórica óbvia e inequívoca de Deus, e perguntar o que
acontece com ele é o equivalente intelectual a perguntar o que acontece com os
olhos desprovidos de corpo do Dr. T. J. Eckleburg em Gatsby. Se ele se casa com
a mãe da Anna? Nós estamos falando de um livro, cara criança, não de algum
cometimento histórico.
— Tá, mas com certeza você deve ter pensado no que acontece
com eles, quer dizer, como personagens, independentemente dos significados
metafóricos deles, e tal.
— Eles são ficcionais — ele disse, batendo de novo no copo.
— Nada acontece com eles.
— Você falou que ia me dizer — insisti.
Fiz questão de ser assertiva. Eu precisava manter a atenção
inebriada dele nas minhas perguntas.
— Talvez, mas eu me encontrava sob a impressão equivocada de
que você estava impossibilitada de fazer uma viagem transatlântica. Eu tentei…
lhe dar algum consolo, acho, e deveria ter imaginado que a tentativa seria
infrutífera. Mas para ser totalmente honesto, essa ideia infantil de que o
autor de um livro tem algum insight singular sobre seus personagens… é
ridícula. Aquele livro foi composto por rabiscos numa página, minha cara. Os personagens
que nele habitam não possuem vida fora desses rabiscos. O que aconteceu com
eles? Todos deixaram de existir no momento em que o livro acabou.
— Não — falei. E me levantei do sofá. — Não, eu entendo
isso, mas é impossível não imaginar um futuro para eles. Você é a pessoa mais
qualificada para imaginar esse futuro. Alguma coisa aconteceu com a mãe da
Anna. Ou ela se casou ou não se casou. Ou ela se mudou para a
Holanda com o Homem das Tulipas Holandês ou não se mudou. Ou
ela teve mais filhos ou não teve. Eu preciso saber o que acontece com ela.
O Van Houten fez bico.
— Sinto muito não poder satisfazer seus caprichos infantis,
mas me recuso a me apiedar de você da forma com a qual está acostumada.
— Eu não quero a sua pena — falei.
— Como toda criança doente — ele retrucou, sem demonstrar
qualquer emoção —, você diz que não quer a pena de ninguém, mas a sua
existência em si depende dela.
— Peter — a Lidewij falou, mas ele continuou, reclinando-se
na cadeira, as palavras saindo ainda mais mastigadas daquela boca bêbada. —
Crianças doentes inevitavelmente se tornam prisioneiras: você está fadada a
viver o resto dos seus dias como a criança que era ao receber o diagnóstico, a
criança que acredita que haja vida depois que um livro acaba. E nós, como adultos,
temos pena disso, então pagamos seus tratamentos, suas máquinas de oxigênio.
Nós lhes damos comida e água embora seja pouco provável que vocês vivam o
suficiente para…
— PETER! — a Lidewij gritou.
— Você é um efeito colateral — o Van Houten continuou — de
um processo evolutivo que não dá muita importância a vidas individuais. Você é
um experimento malsucedido da mutação.
— EU ME DEMITO! — a Lidewij gritou.
Havia lágrimas nos olhos dela. Mas eu não estava com raiva.
Ele havia encontrado um jeito mais doloroso de dizer a verdade, mas,
naturalmente, eu já sabia qual era a verdade. Eu tinha passado vários anos
olhando do meu leito para o teto da UTI, por isso há tempos já havia achado as
maneiras mais dolorosas de imaginar a minha própria doença. Dei um passo na
direção dele.
— Ouça aqui, seu idiota — falei —, não há nada que você
possa me dizer sobre essa doença que eu já não saiba. Eu só preciso de uma
coisa de você antes de sair da sua vida para sempre: O QUE ACONTECE COM A MÃE
DA ANNA?
Ele ergueu a papada flácida na minha direção e deu de
ombros.
— Não posso dizer o que acontece com ela da mesma forma que
não posso dizer que fim levou o narrador de Proust, nem a irmã de Holden
Caulfield, nem Huckleberry Finn depois que partiu para os territórios
desconhecidos do Oeste.
— BABAQUICE! Isso é uma babaquice. Eu quero saber! Invente
alguma coisa!
— Não, e ficarei grato se não proferir palavras de baixo
calão na minha casa. Não é um vocabulário apropriado para uma moça.
Eu não estava exatamente com raiva, ainda, apenas bastante
concentrada em obter o que me fora prometido. Alguma coisa cresceu dentro de
mim, eu me inclinei e dei um soco na mão inchada que segurava o copo de uísque.
O que restava da bebida se espalhou pela vastidão do rosto dele, o copo ricocheteou
no nariz e depois rodopiou pelo ar, como num balé, aterrissando com um ruído de
estilhaços no piso antigo de madeira.
— Lidewij — o Van Houten disse calmamente —, vou tomar um
dry martíni, se possível. Com um sussurro de vermute apenas.
— Eu me demiti — ela respondeu após um instante.
— Não seja ridícula. Eu não sabia o que fazer. Ser boazinha
não funcionou. Ser grossa não funcionou.
Eu precisava de uma resposta. Tinha vindo de longe e chegado
até ali depois de roubar o Desejo do Augustus. Eu precisava saber.
— Alguma vez você já parou para se perguntar — ele disse, as
palavras começando a sair meio engroladas — por que se importa tanto com seus
questionamentos tolos?
— VOCÊ PROMETEU! — gritei, o ruído do choro impotente do
Isaac na noite dos troféus destroçados ecoando na minha cabeça.
O Van Houten não respondeu.
Eu ainda estava de pé na frente dele, esperando que me
dissesse alguma coisa, quando senti a mão do Augustus no meu braço. Ele me
puxou em direção à porta e eu o segui, enquanto o Van Houten discursava para a
Lidewij sobre a ingratidão dos adolescentes contemporâneos e sobre o fim da
sociedade cortês, e a Lidewij, de um jeito histérico, gritava
alguma coisa para ele num holandês acelerado.
— Vocês precisam perdoar a minha ex-assistente — ele falou.
— O holandês não é bem um idioma, mas uma enfermidade da garganta. O Augustus
me tirou do cômodo e me puxou porta afora, ao encontro do fim da manhã de
primavera e do confete dos olmos em queda.
* * *
Não existia, para mim, a possibilidade de uma fuga rápida,
mas nós descemos os degraus, o Augustus segurando meu carrinho, e começamos a
andar de volta para o Filosoof por uma calçada acidentada de paralelepípedos
intercalados. Comecei a chorar pela primeira vez desde o episódio do balanço.
— Ei — ele disse, colocando a mão na minha cintura. — Ei.
Está tudo bem.
Eu assenti e enxuguei o rosto com as costas da mão.
— Ele não vale nada. Assenti de novo.
— Vou escrever um epílogo para você — o Gus falou. Aquilo me
fez chorar ainda mais.
— Vou, sim — ele disse. — Vou mesmo. E vai ser melhor que
qualquer coisa que aquele bêbado poderia escrever. O cérebro dele é um queijo
suíço. Ele nem se lembra de ter escrito o livro. Eu consigo criar uma história
dez vezes melhor que a daquele cara. Vai ter sangue, coragem e sacrifícios. Uma
aflição imperial encontra O preço do alvorecer. Você vai amar.
Eu continuei assentindo, simulando um sorriso, e aí ele me
abraçou, os braços fortes me puxando para perto do peito musculoso, e eu
ensopei a camisa polo dele, mas consegui me recompor o suficiente para poder
falar.
— Eu gastei o seu Desejo com aquele idiota — disse, ainda
encostada no peito dele.
— Hazel Grace. Não. Posso admitir que você de fato gastou o
meu único Desejo, mas não foi com ele. Você gastou meu Desejo com nós dois.
Escutei, vindo de trás, um toc toc toc de saltos altos numa
corrida
desabalada. Eu me virei. Era a Lidewij, o delineador
escorrendo pelas bochechas, claramente constrangida, tentando nos alcançar.
— Talvez devêssemos ir visitar a Anne Frank Huis — a Lidewij
disse.
— Não vou a lugar nenhum com aquele monstro — o Augustus
disse.
— Ele não foi convidado — a Lidewij falou.
O Augustus continuou me abraçando de um jeito protetor, a
mão na lateral do meu rosto.
— Não acho que… — ele começou, mas eu o interrompi.
— Nós deveríamos ir.
Eu ainda queria respostas do Van Houten. Mas isso não era
tudo. Eu só teria mais dois dias em Amsterdã com o Augustus Waters. Não
deixaria que um velho patético os estragasse.
* * *
O carro da Lidewij era um desajeitado Fiat cinza com um
motor estridente como uma garotinha de quatro anos. Conforme percorríamos as
ruas de Amsterdã, ela se desculpava repetida e profusamente.
— Sinto muito. Não tem desculpa. Ele está muito mal — ela
disse. — Achei que o encontro o ajudaria, se ele visse que o livro tinha tido
alguma influência na vida de vocês, mas… Sinto imensamente. Isso é muito, muito
constrangedor.
Nem eu nem o Augustus dissemos nada. Eu estava no banco
traseiro, bem atrás dele. Enfiei a mão no espaço entre a lateral do carro e o
assento dianteiro, tentando achar sua mão, mas não consegui encontrá-la. A
Lidewij prosseguiu:
— Eu continuei trabalhando para ele porque o considero um
gênio e porque o salário é muito bom, mas ele se transformou num monstro.
— Imagino que tenha ficado muito rico com a venda do livro —
falei, depois de um tempo.
— Ah, não, não. Ele é descendente dos Van Houten — ela
falou. — No século dezessete, um ancestral dele descobriu como diluir cacau em
pó em água. Muito tempo atrás, alguns dos Van Houten imigraram para os
Estados Unidos e Peter é filho de um deles, mas se mudou
para a Holanda depois da publicação do livro. Ele é uma vergonha para uma nobre
família.
O motor do carro esgoelou. A Lidewij trocou a marcha e nós
passamos por uma ponte sobre o canal.
— Foram as circunstâncias — ela disse. — Foram as
circunstâncias que o tornaram uma pessoa tão cruel. Ele não é um homem mau.
Mas, hoje, eu não pensei… quando ele falou aquelas coisas horríveis, não pude
acreditar. Sinto muito. Sinto muito, muito mesmo.
* * *
Tivemos de estacionar a um quarteirão da casa da Anne Frank,
e enquanto a Lidewij ficava na fila para comprar os ingressos para nós, me
sentei com as costas apoiadas numa arvorezinha, olhando para as casas
flutuantes atracadas no canal Prinsengracht. O Augustus estava em pé à minha
frente, movimentando o carrinho do oxigênio em círculos, olhando as rodinhas
girarem. Eu queria que ele se sentasse ao meu lado, mas sabia como era difícil,
para ele, se sentar, e mais difícil ainda ficar de pé de novo.
— Tudo bem? — ele perguntou, olhando para mim.
Dei de ombros e estiquei o braço para poder colocar a mão na
batata da perna dele. Era a panturrilha falsa, mas segurei firme. Ele abaixou a
cabeça para me olhar.
— Eu queria… — falei.
— É, eu sei — ele disse. — Eu sei. Aparentemente, o mundo
não é uma fábrica de realização de desejos.
Isso me fez rir um tiquinho.
A Lidewij voltou com os ingressos, mas seus lábios finos
estavam franzidos de preocupação.
— Não tem elevador — ela disse. — Sinto muito, muito mesmo.
— Está tudo bem — falei.
— Não. Lá dentro há muitas escadas — ela disse. — E elas são
íngremes.
— Está tudo bem — repeti. O Augustus começou a dizer alguma
coisa, mas eu o interrompi. — Não tem problema. Eu consigo subir.
A visita começou num cômodo que mostrava um vídeo sobre os
judeus na Holanda, sobre a invasão nazista e sobre a família Frank. Depois
fomos para o andar de cima, adentrando a casa do canal onde funcionara a
empresa do Otto Frank. Subir as escadas era um processo lento, tanto para mim quanto
para o Augustus, mas eu me sentia forte. Logo estava olhando a famosa estante
de livros que camuflara a entrada para o esconderijo da Anne, da família dela e
de quatro outras pessoas. A estante estava aberta até a metade, e por atrás
havia uma escada mais íngreme ainda, tão estreita que só cabia uma pessoa por
degrau.
Havia vários visitantes à nossa volta, e eu não queria
atravancar a procissão, mas a Lidewij falou:
— Se todos puderem ter um pouco de paciência, por favor…
E comecei a subir, a Lidewij carregando o carrinho atrás de
mim, o Gus na sequência.
Eram quatorze degraus. Eu só pensava nas pessoas que vinham
depois de mim, a maioria adultos falando vários idiomas diferentes, e fiquei
com vergonha. Sei lá, eu me sentia como um fantasma que tanto traz consolo
quanto assombra, mas consegui chegar ao fim da escada, finalmente, num cômodo
sinistramente vazio. Eu me apoiei na parede, meu cérebro dizendo a meus pulmões
está tudo bem está tudo bem fiquem tranquilos está tudo bem e meus pulmões
dizendo ao meu cérebro ai, meu Deus, nós estamos morrendo aqui. Nem vi quando o
Augustus chegou, mas ele se aproximou de mim esfregando as costas da mão na
testa para secá-la, num movimento de ufa, e disse:
— Você é uma heroína.
Depois de alguns minutos apoiada na parede, fui até o cômodo
seguinte, que a Anne havia dividido com o dentista Fritz Pfeffer. Era minúsculo
e sem móveis. Não daria para imaginar que alguém tinha vivido ali não fossem as
fotos de revistas e jornais que a Anne havia colado na parede e que lá permaneciam.
Outra escada levava ao cômodo no qual a família Van Pel
havia
morado, essa mais íngreme que a anterior e com dezoito
degraus, basicamente uma escada de mão mais elaborada. Cheguei à base dela,
olhei para o alto e achei que não conseguiria subir, mas também sabia que o
único caminho para chegar ao fim era subindo.
— Vamos voltar — o Gus disse, atrás de mim.
— Estou bem — respondi baixinho.
Sei que é bobagem, mas eu ficava pensando que devia isso a
ela, à Anne Frank, digo, porque ela estava morta e eu, não, porque ela havia
ficado em silêncio, mantido as cortinas fechadas e feito tudo certo, e ainda
assim, tinha morrido. Então eu deveria subir aqueles degraus e ver o resto do
mundo no qual ela vivera durante aqueles anos antes da chegada da Gestapo.
Comecei a subir, transpondo os degraus do mesmo jeito que
uma criança pequena faria, devagar a princípio, para conseguir respirar, e mais
rápido depois, porque eu sabia que no fim das contas não conseguiria respirar,
e queria chegar ao topo antes de perder o fôlego de vez. A escuridão invadia o
meu campo de visão enquanto eu escalava os dezoito degraus, íngremes como os
diabos. Por fim, alcancei o topo basicamente cega e enjoada, os músculos dos
braços e das pernas clamando por oxigênio. Larguei meu corpo no chão, sentando
com as costas encostadas numa parede, tossindo sofregamente. Havia uma redoma
de vidro vazia e aparafusada na parede acima de mim. Olhei para o alto, através
dela, para o teto, tentando não desmaiar.
A Lidewij se agachou ao meu lado
e falou:
— Você chegou ao último andar, já acabou.
Fiz que sim com a cabeça. Eu tinha uma vaga noção de que
havia adultos espalhados pelo ambiente olhando preocupados para mim; da Lidewij
falando baixinho numa língua, depois em outra, e então em mais outra para os
vários visitantes; do Augustus de pé na minha frente, a mão dele na minha
cabeça, acariciando meu cabelo no pedaço em que estava repartido. Depois de um
bom tempo, a Lidewij e o Augustus me colocaram de pé, e pude ver o que estava
por trás da redoma de vidro: marcas feitas a lápis no papel de parede e que
registravam o crescimento
de todas as crianças no anexo secreto durante o período em
que viveram ali, centímetro por centímetro, até quando foi interrompido. Saindo
dali, deixamos a área de moradia dos Frank, mas ainda estávamos no museu. Um
corredor comprido e estreito exibia fotos de cada um dos oito residentes do
anexo e descrevia como, onde e quando haviam morrido.
— O único integrante da família dele a sobreviver à guerra —
a Lidewij nos disse, se referindo ao pai da Anne, Otto.
Ela sussurrava, como se estivéssemos numa igreja.
— Mas, na verdade, ele não sobreviveu bem a uma guerra — o
Augustus falou. — Ele sobreviveu a um genocídio.
— Verdade — a Lidewij concordou. — Não sei como é possível
alguém continuar vivendo sem a família. Não sei mesmo.
Enquanto eu lia a respeito de cada um dos sete que morreu,
pensei em Otto Frank deixando de ser pai, ficando com um diário, em vez da
esposa e das duas filhas. No fim do corredor, um livro enorme, maior que um dicionário,
continha os nomes dos 103 mil holandeses mortos no Holocausto. (Apenas 5 mil
dos judeus holandeses deportados, explicava uma plaqueta na parede, haviam
sobrevivido. Cinco mil Otto Franks.) O livro estava aberto na página em que
havia o nome da Anne Frank, mas o que chamou mesmo a minha atenção foi o fato
de que logo abaixo do nome dela tinham quatro Aron Franks. Quatro. Quatro Aron
Franks sem museus, sem placas comemorativas, sem ninguém para chorar por eles.
Em meu íntimo, resolvi que iria me lembrar dos quatro Aron Franks e rezar por
eles enquanto vivesse. (Talvez algumas pessoas precisem acreditar num Deus
único e onipotente para o qual rezar, mas eu, não.)
Quando chegamos ao fim do cômodo, o Gus parou e perguntou:
— Você está bem?
Assenti com a cabeça.
Ele fez um gesto indicando a foto da Anne.
— A pior parte é que ela quase escapou, sabe? Ela morreu
algumas semanas antes da liberação dos campos de concentração.
A Lidewij se afastou alguns passos para assistir a um vídeo,
e eu segurei a mão do Augustus enquanto andávamos para o ambiente seguinte.
Era um cômodo de teto triangular com cartas que o Otto Frank
havia escrito para algumas pessoas durante sua busca pelas filhas, que durou
vários meses. Na parede, no meio do cômodo, um vídeo do Otto estava sendo
reproduzido. Ele falava em inglês.
— Sobrou algum nazista que eu possa perseguir e entregar nas
mãos da Justiça? — o Augustus perguntou quando nos inclinamos sobre as vitrines
da exposição para ler as cartas do Otto e as respostas dilacerantes de que não,
ninguém tinha visto as filhas dele depois da liberação.
— Acho que estão todos mortos. Mas não é como se os nazistas
tivessem o monopólio do mal.
— Verdade — ele disse. — Eis o que deveríamos fazer, Hazel
Grace: nós deveríamos nos unir e virar uma dupla de justiceiros portadores de
deficiências botando a boca no trombone pelo mundo, endireitando o que está
errado, defendendo os fracos, protegendo quem se sente ameaçado.
Embora aquela fosse a ‚viagem‛ do Gus, e não a minha, eu
entrei na dele. O Gus já havia entrado na minha, afinal.
— Nosso destemor será nossa arma secreta — falei.
— As lendas das nossas proezas sobreviverão enquanto existir
a voz humana — ele disse.
— E, mesmo depois disso, quando os robôs relembrarem os
absurdos humanos de sacrifício e compaixão, eles se lembrarão de nós.
— Eles rirão roboticamente da nossa loucura destemida — ele
disse. — Mas algo em seus corações de ferro robotizados vai desejar ter vivido e
morrido como nós: a serviço do heroísmo.
— Augustus Waters — falei, olhando para ele, pensando que
talvez não fosse certo beijar alguém dentro da casa da Anne Frank, mas então
imaginando que a Anne Frank, no fim das contas, devia ter beijado alguém na casa
da Anne Frank, e que ela provavelmente gostaria de sua casa ter se tornado um
lugar no qual os jovens e irremediavelmente imperfeitos se entregam ao amor.
‚Devo dizer‛, o Otto Frank falou no vídeo em seu inglês com
sotaque, ‚que fiquei surpreso com os pensamentos profundos que a Anne tinha.‛
E então, de repente, estávamos nos beijando. Minha mão
largou o
carrinho do oxigênio, segurou o pescoço do Gus, enquanto ele
me puxou para cima pela cintura, me deixando na ponta dos pés. Quando os lábios
semiabertos dele encontraram os meus, comecei a sentir uma falta de ar
totalmente inédita e fascinante. O espaço à nossa volta evaporou, e por um
estranho momento me senti bem no meu corpo; essa coisa estragada pelo câncer
que eu tinha passado vários anos arrastando de um lado para outro parecia, de
repente, valer a pena, os tubos no tórax e os PICCs e a incessante traição
corporal dos tumores.
‚A Anne que eu conhecia como filha era bastante diferente.
Ela nunca demonstrou esse tipo de sentimento interior‛, o Otto Frank continuou.
O beijo durou uma eternidade enquanto o Sr. Frank falava
atrás de mim.
‚E a minha conclusão, na medida em que eu mantinha boas
relações com a Anne, é que a maioria dos pais não conhece de verdade seus
filhos.‛
Eu me dei conta de que meus olhos estavam fechados e os
abri. O Augustus me encarava, seus olhos azuis mais próximos que nunca, e atrás
dele um grupo de pessoas tinha meio que se organizado em três camadas de
círculos à nossa volta. Eles estavam com raiva, pensei. Horrorizados. Esses adolescentes,
com seus hormônios, se agarrando debaixo de um vídeo reproduzindo a voz
exaurida de um ex-pai.
Eu me afastei do Augustus, e ele tascou um beijo na minha
testa enquanto eu olhava fixamente para meus Chuck Taylors. E foi então que
começaram a bater palmas. Todas as pessoas, todos aqueles adultos, simplesmente
começaram a bater palmas, e um deles até gritou: ‚Bravo!‛, com um sotaque
europeu. O Augustus, sorridente, fez uma mesura. Rindo, fiz uma ligeira
reverência, o que provocou uma nova rodada de aplausos.
Descemos as escadas depois de deixar todos os adultos
passarem, e logo antes de chegarmos ao café (onde, por sorte, um elevador nos
levou até o térreo e à lojinha de suvenires) vimos algumas páginas do diário da
Anne, além de seu livro de citações ainda inédito, aberto numa página de frases
de Shakespeare. Quem é tão firme que não possa ser seduzido?, ela escrevera.
* * *
A Lidewij nos deu uma carona de volta ao Filosoof. Do lado
de fora do hotel estava chuviscando, e o Augustus e eu ficamos parados na
calçada de paralelepípedos, nos ensopando aos poucos.
Augustus: ‚Você deve estar precisando descansar.‛
Eu: ‚Estou bem.‛
Augustus: ‚Tá.‛ (Pausa.) ‚Em que você está pensando?‛
Eu: ‚Em você.‛
Augustus: ‚O que tem eu?‛
Eu: ‚Não sei mesmo qual preferir, / A beleza das inflexões /
Ou a das alusões, / O pássaro-preto assobiando / Ou só depois.‛
Augustus: ‚Cara, você é sexy.‛
Eu: ‚Nós poderíamos ir para o seu quarto.‛
Augustus: ‚Já ouvi ideias piores.‛
* * *
Nos esprememos no elevador minúsculo. Todas as superfícies,
inclusive o piso, eram cobertas de espelhos. Tivemos de puxar a porta para
fechar o elevador, e então aquela coisa velha foi rangendo devagar até o
segundo andar. Eu estava cansada, suada e com medo de a minha aparência e o meu
cheiro estarem horríveis, mas mesmo assim o beijei dentro daquele cubículo. Aí
ele se afastou um pouco, apontou para o espelho e disse:
— Veja: infinitas Hazels.
— Alguns infinitos são maiores que outros — falei
pausadamente, imitando o Van Houten.
— Que palhaço! — o Augustus disse, e demorou todo esse
tempo, e mais ainda, para chegarmos ao segundo andar.
Por fim, o elevador parou num tranco. O Augustus empurrou a
porta espelhada para abri-la. Quando estava metade aberta, ele estremeceu de
dor e perdeu a pegada por um segundo.
— Você está bem? — perguntei.
Após um instante, ele respondeu:
— Estou, estou. É só a porta, que é meio pesada, acho.
Ele a empurrou de novo e conseguiu abri-la, me deixando sair
primeiro, claro, mas aí eu não soube que direção seguir pelo corredor e fiquei
simplesmente ali, do lado de fora, e ele também, seu rosto ainda transfigurado
pela dor.
— Está tudo bem com você? — perguntei mais uma vez.
— Só estou fora de forma, Hazel Grace. Está tudo ótimo.
Nós estávamos ali parados e ele não tomava a iniciativa de
ir para o quarto nem nada, e eu não sabia onde o quarto ficava, e enquanto
durava o impasse me convenci de que ele estava tentando descobrir uma forma de
não ficar comigo e de que, para início de conversa, eu nunca deveria ter dado
aquela ideia, que a iniciativa não deveria ter sido minha, daí a repugnância
dele, que só ficava me olhando, de pé, sem nem piscar, tentando pensar num
jeito de se desvencilhar educadamente da situação. E aí, depois do que pareceu
ser uma eternidade, ele falou:
— Fica acima do meu joelho, e vai afunilando um pouco, e
depois é só pele. Tem uma cicatriz horrenda, mas ela parece…
— O quê? — perguntei.
— A minha perna — ele respondeu. — Só para você se preparar
psicologicamente no caso de, quer dizer, no caso de você ver, ou coisa ass…
— Ah, deixe de bobagem — falei, e andei os dois passos
necessários para chegar até ele.
Dei um beijo no Augustus, intenso, imprensando seu corpo
contra a parede, e continuei com o beijo enquanto ele vasculhava o bolso à
procura da chave do quarto.
* * *
Subimos lentamente na cama, minha liberdade um pouco
limitada pelo oxigênio, mas mesmo assim consegui ficar por cima dele e tirar
sua camisa. Senti o gosto do suor na pele abaixo da clavícula enquanto
sussurrava, a boca encostada nele:
— Augustus Waters, eu te amo.
Seu corpo relaxou debaixo do meu quando ele me ouviu dizer
aquilo. Ele esticou o braço e tentou tirar a minha camiseta, mas ela acabou
enrolando no tubo. Eu ri.
* * *
— Como é que você faz isso todos os dias? — ele perguntou
enquanto eu desenrolava as coisas.
Tolamente, me dei conta de que minha calcinha rosa não
combinava com meu sutiã roxo, como se os garotos reparassem nisso. Eu me enfiei
debaixo das cobertas e tirei a calça jeans e as meias, e então fiquei
observando a dança do edredom enquanto, debaixo dele, o Augustus tirava
primeiro a calça jeans, depois a perna.
* * *
Estávamos deitados de costas, lado a lado, escondidos sob as
cobertas. Depois de um segundo, tateei à procura da coxa dele e deixei minha
mão seguir para baixo até o cotoco, a pele com a cicatriz grossa. Segurei o
cotoco por um tempo. Ele se encolheu.
— Dói? — perguntei.
— Não — ele respondeu.
Ele se virou de lado e me beijou.
— Você é muito sexy — falei, minha mão ainda na perna.
— Estou começando a achar que você tem um fetiche por
amputados — ele retrucou, ainda me beijando.
Eu ri.
— Eu tenho um fetiche por Augustus Waters — expliquei.
* * *
A coisa toda foi exatamente o oposto do que eu tinha
imaginado: devagar, paciente, silenciosa e nem especialmente dolorosa nem
especialmente extasiante. Houve alguns problemas relacionados à camisinha, os
quais não perdi muito tempo observando. Nenhuma cabeceira foi quebrada. Nada de
gritos. Para ser sincera, aquela foi provavelmente a maior quantidade de tempo
que passamos juntos sem falar nada. Só uma coisa seguiu o protocolo: depois que
tudo terminou, enquanto eu descansava o rosto no peito dele, ouvindo seu
coração bater, o Augustus disse:
— Hazel Grace, não consigo mais manter os olhos abertos.
Literalmente.
— Utilização incorreta da literalidade — falei.
— Não — ele disse. — Tão. Cansado.
E virou o rosto para o outro lado, minha orelha apertada
contra o peito dele, ouvindo o ruído dos pulmões enquanto entravam no ritmo do
sono. Depois de um tempo me levantei, me vesti, achei um papel de carta do
Hotel Filosoof e escrevi um bilhete de amor para ele:
Querido Augustus,
Jovens de dezesseis anos com uma perna só
Da sua,
Hazel
Grace
virgens
CAPÍTULO TREZE
a manhã seguinte, nosso último dia inteiro em Amsterdã,
mamãe, Augustus e eu andamos o meio quarteirão entre o hotel e o Vondelpark,
onde descobrimos um café à sombra do Museu do Cinema Holandês. Tomando lattes —
que, nos disse o garçom, eram chamados pelos holandeses de ‚café estragado‛
porque tinham mais leite que café —, nos sentamos à sombra rendada de uma
castanheira enorme e contamos à mamãe como foi nosso encontro com o grande
Peter Van Houten. Demos um tom engraçado à história. Até onde eu sei, você pode
escolher a forma de contar uma história triste nesse mundo, e nós fomos pela
opção divertida: o Augustus, afundado na cadeira do café, fingiu ser um Van
Houten de língua presa e fala engrolada que nem sequer conseguia levantar da
poltrona; eu fiquei de pé para representar a minha versão arrogante e machona,
gritando:
— Levante-se, velho gordo e feio!
— Você chamou o Van Houten de feio? — o Augustus perguntou.
— Continue, Gus — falei para ele.
— Nau sou feiu. Você é que é feia, garota do nariz entubado.
— Você é um covarde! — gritei, e o Augustus caiu na
gargalhada, saindo do personagem.
Eu me sentei. Contamos para a mamãe da ida à casa da Anne
Frank, deixando de fora a parte do beijo.
— Vocês voltaram à casa do Van Houten depois? — a mamãe
perguntou.
O Augustus não me deu nem tempo de ficar vermelha.
— Não, nós só ficamos jogando conversa fora num café. E a
Hazel desenhou um diagrama de Venn muito bem-humorado para mim.
Ele me olhou. Cara, como ele era sexy.
N
— Parece que foi legal — ela disse. — Bem, vou andar por aí
agora. E dar um tempo para vocês conversarem. — Ela olhou para o Gus de um
jeito meio incisivo. — Então depois, talvez, nós possamos fazer um passeio de
barco pelo canal.
— Ahn, o.k.? — falei.
A mamãe deixou uma nota de cinco euros debaixo do pires, deu
um beijo na minha cabeça e sussurrou:
— Eu te amo amo amo.
O que eram dois amos a mais que o normal.
O Gus apontou para as sombras dos galhos se entrecruzando e
depois se separando no cimento.
— Lindo, né?
— É — respondi.
— Uma metáfora das boas — ele balbuciou.
— É mesmo? — perguntei.
— A imagem em negativo de coisas sendo unidas pelo vento e
depois indo pelos ares — ele falou.
Diante de nós, centenas de pessoas passavam, correndo,
andando de bicicleta e de patins. Amsterdã era uma cidade projetada para movimentação
e atividades, uma cidade que preferia não viajar de carro, por isso me senti
inevitavelmente excluída. Mas, cara, como era linda, o riacho esculpindo um
caminho em volta de uma árvore imensa, uma garça-real imóvel à beira d’água,
tentando encontrar algo para comer no meio daqueles milhões de pétalas de olmo
flutuando.
Mas o Augustus não reparou naquilo. Ele estava muito ocupado
observando as sombras se moverem. Por fim, falou:
— Eu poderia ficar o dia todo aqui olhando isso, mas
precisamos voltar para o hotel.
Será que teremos tempo? — perguntei.
Ele abriu um sorriso triste.
— Quem me dera — respondeu.
— Qual é o problema? — perguntei.
Ele fez um movimento com a cabeça em direção ao hotel.
* * *
Andamos em silêncio, o Augustus meio passo à minha frente.
Meu medo era tanto que eu não conseguia nem perguntar se tinha motivo para
ficar com medo. A
Aí existe esse troço chamado Hierarquia de Necessidades de
Maslow. Basicamente, um cara chamado Abraham Maslow ficou famoso por sua
teoria, que defende que certas necessidades devem ser satisfeitas antes mesmo
que se possa ter outros tipos de necessidades. A teoria é representada mais ou
menos assim:
HIERARQUIA DE NECESSIDADES DE MASLOW
Logo que suas necessidades de comida e água são atendidas,
você passa ao conjunto de necessidades seguinte, que tem a ver com segurança, e
então vai para o próximo, e depois para o outro, mas o importante é que, de
acordo com Maslow, até que suas necessidades fisiológicas sejam satisfeitas,
você não tem nem mesmo como chegar a se preocupar com a necessidade de
segurança ou de relacionamentos, quanto mais com a ‚autorrealização‛, que é
quando você começa a, tipo, fazer arte e pensar nos princípios morais, na
física quântica e em coisas assim.
Segundo Maslow, eu estava empacada no segundo nível da
pirâmide, incapaz de sentir segurança na minha saúde e, portanto, incapaz de
tentar ir atrás de amor, de respeito, de arte e de mais nada, o que,
obviamente, era uma bobagem sem tamanho: o desejo de fazer arte ou de filosofar
não
desaparece quando alguém está doente. Esses desejos só ficam
transfigurados pela doença.
A pirâmide de Maslow parecia sugerir que eu era menos humana
que os outros, e a maioria das pessoas parecia concordar com ele. Mas não o
Augustus. Sempre achei que ele poderia me amar porque já esteve doente um dia.
Só então me ocorreu que talvez ele ainda estivesse.
* * *
Chegamos ao meu quarto, o Kierkegaard. Eu me sentei na cama
esperando que o Gus fosse se juntar a mim, mas ele afundou na cadeira Paisley
empoeirada. Aquela cadeira. Quantos anos tinha aquilo? Uns cinquenta?
Senti o nó na garganta apertando enquanto o via tirar um
cigarro do maço e colocá-lo nos lábios. Ele se recostou e suspirou.
— Um pouco antes de você ir parar na UTI, comecei a sentir
uma dor no quadril.
— Não — falei.
O pânico me invadiu e me arrastou para as profundezas.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Então fui ao hospital fazer uma tomografia.
Ele parou. Tirou o cigarro da boca e trincou os dentes.
Passei a maior parte da minha vida tentando não chorar na
frente das pessoas que me amavam, por isso sabia o que o Augustus estava
fazendo. Você trinca os dentes. Você olha para cima. Você diz a si mesmo que se
eles o virem chorando, aquilo vai magoá-los, e você não vai ser nada mais que
Uma Tristeza na vida deles. Você não deve se transformar numa mera tristeza,
então não vai chorar, e você diz tudo isso para si mesmo enquanto olha para o
teto. Aí engole em seco, mesmo que sua garganta não queira, olha para a pessoa
que ama você e sorri.
Ele abriu o sorriso torto e disse:
— Eu acendi como uma árvore de Natal, Hazel Grace. Dentro do
tórax, o lado esquerdo do meu quadril, meu fígado, tudo.
Tudo. Aquela palavra ficou suspensa no ar por um tempo.
Ambos sabíamos o que significava. Eu me levantei, arrastando meu corpo e o
carrinho pelo tapete que era mais velho do que o Augustus jamais seria, me
ajoelhei nos pés da cadeira, coloquei minha cabeça no colo dele e abracei sua
cintura.
Ele começou a passar a mão no meu cabelo.
— Sinto muito — falei.
— Foi mal eu não ter dito nada para você — ele disse, o tom
de voz manso. — Sua mãe deve saber. O jeito como olhou para mim. Minha mãe deve
ter contado para ela, ou algo assim. Eu deveria ter contado para você. Foi
burrice minha. Egoísmo.
É claro que eu sabia por que o Gus não tinha dito nada: pelo
mesmo motivo que não deixei que ele me visse na UTI. Eu não tinha o direito de
ficar chateada com ele nem por um instante, e só agora que eu amava uma granada
foi que entendi a bobagem que é tentar salvar os outros da minha própria
explosão iminente: eu não podia deixar de amar o Augustus Waters. E não queria
fazer isso.
— Não é justo — falei. — É tudo tão injusto…
— O mundo não é uma fábrica de realização de desejos — ele
retrucou, e então perdeu o controle, só por alguns instantes, seu choro e seus
soluços ruídos impotentes como o estrondo de um trovão sem raio, a ferocidade
tremenda que os amadores no quesito sofrimento podem tomar erradamente por
fraqueza.
Aí ele me puxou mais para perto e, com o rosto a poucos
centímetros do meu, decidiu:
— Eu vou lutar contra o câncer. Vou lutar contra o câncer
por você. Não se preocupe comigo, Hazel Grace. Estou bem. Vou achar um jeito de
continuar por aqui e encher o seu saco por um bom tempo.
Comecei a chorar. Mas mesmo naquele momento ele parecia
forte, me dando um abraço apertado para que eu pudesse ver os músculos
vigorosos de seus braços em torno de mim quando disse:
— Sinto muito. Você vai ficar bem. Tudo vai ficar bem.
Prometo. — Ele abriu aquele sorriso torto, me deu um beijo na testa, e senti
seu tórax
poderoso esvaziar só um tiquinho. — Acho que eu tinha uma
hamartia, no fim das contas.
* * *
Depois de um tempo eu o puxei até a cama e nós ficamos
deitados lá, juntinhos, enquanto ele me contava que havia começado um
tratamento paliativo com quimioterapia, mas que tinha desistido de tudo para ir
a Amsterdã, mesmo isso tendo deixado seus pais furiosos. Os dois continuaram
tentando impedi-lo de viajar até aquela manhã, quando o ouvi gritando que seu
corpo lhe pertencia.
— Nós poderíamos ter adiado a viagem — falei.
— Não, não poderíamos — ele retrucou. — De qualquer forma,
não estava dando resultado. Dava para sentir que não estava dando certo, sabe?
Assenti com a cabeça.
— É uma perda de tempo, a coisa toda — falei.
— Eles vão tentar algo novo quando eu voltar para casa. Eles
sempre têm uma ideia nova.
— É — falei, eu mesma já tendo sido a almofada de alfinetes
experimental.
— Eu meio que enganei você, levando você a acreditar que
estava se apaixonando por uma pessoa saudável — ele falou.
Dei de ombros.
— Eu teria feito o mesmo.
— Não, não teria, mas não dá para todo mundo ser tão
incrível como você.
Ele me beijou, e então fez uma careta.
— Dói? — perguntei.
— Não. É só que. — Ele ficou olhando para o teto por um bom
tempo antes de dizer: — Eu gosto deste mundo. Gosto de beber champanhe. Gosto
de não fumar. Gosto do som de holandeses falando holandês. E agora… Não vou ter
nem a chance da batalha. Não vou ter nem a chance da luta.
— Você pode batalhar contra o câncer — falei. — Essa é a sua
batalha. E você vai continuar lutando — disse para ele. Odiava quando as
pessoas tentavam me encorajar para me preparar para a batalha, mas fiz isso com
ele mesmo assim. — Você vai… você vai… viver o melhor da sua vida hoje. Essa é
a sua guerra agora.
Eu me odiei por aquele sentimento brega, mas o que mais eu
tinha?
— Grande guerra — ele disse com desdém. — Estou em guerra
contra o quê? O meu câncer. E o que é o meu câncer? Meu câncer sou eu. Os
tumores são feitos de mim. Eles são feitos de mim tanto quanto meu cérebro e
meu coração são feitos de mim. É uma guerra civil, Hazel Grace, a gente já sabe
quem vai vencer.
— Gus.
Não havia mais nada que eu pudesse dizer. Ele era
inteligente demais para o tipo de consolo que eu poderia oferecer.
— Está tudo bem. — Mas não estava, e depois de alguns
instantes ele disse: — Se você for ao Rijksmuseum, o que eu realmente gostaria
de fazer, mas, a quem estamos querendo enganar? Nenhum de nós consegue passar
horas andando num museu. Bem, de qualquer forma, dei uma olhada na coleção de
pinturas deles pela Internet, antes de virmos. Se você fosse lá, e espero que
um dia consiga ir, veria várias pinturas de pessoas mortas. Veria Jesus na
cruz, um cara sendo esfaqueado no pescoço, pessoas morrendo no mar, outras numa
batalha, e um desfile de mártires. Mas nem. Uma. Criança. Com. Câncer. Sequer.
Ninguém batendo as botas por causa da praga, nem da varíola, nem da febre
amarela, nem nada, porque não existe glória na doença. Não há propósito nela.
Não há honra em se morrer de.
Abraham Maslow, apresento a você o Augustus Waters, cuja
curiosidade existencial superou a de seus irmãos bem-alimentados, bem-amados e
saudáveis. Enquanto a massa de homens seguia em frente levando vidas totalmente
inescrutáveis de consumo descabido, o Augustus Waters examinava a coleção de
pinturas do Rijksmuseum a distância.
— O que foi? — o Augustus perguntou após um tempo.
— Nada — respondi. — Só… — Não pude completar a frase. Não
sabia como. — Só gosto muito demais da conta de você.
Ele deu um sorriso torto, o nariz a centímetros do meu.
— A recíproca é verdadeira. Será que daria para você
esquecer isso tudo e me tratar como se eu não estivesse morrendo?
— Não acho que você esteja morrendo — falei. — Só acho que
você recebeu uma pitada de câncer.
Ele sorriu. Humor negro.
— Estou numa montanha-russa que só vai para cima — falou.
— E é meu privilégio e minha responsabilidade seguir nessa
montanha-russa até o topo com você — retruquei.
— Seria totalmente absurdo tentar fazer amor agora?
— Tentativa não há — falei. — Fazer é que há.
CAPÍTULO QUATORZE
o voo de volta para casa, vinte mil pés acima de nuvens que
pairavam a dez mil pés do chão, o Gus disse:
— Antigamente eu imaginava que seria divertido morar numa
nuvem.
— É — falei. — Como se fosse, tipo, um pula-pula inflável,
só que para sempre.
— Mas, então, na aula de ciências do ensino fundamental, o
Sr. Martinez perguntou quem de nós já havia fantasiado em morar nas nuvens, e
todo mundo levantou a mão. Aí o Sr. Martinez nos contou que a velocidade do vento
nas nuvens é de duzentos e quarenta quilômetros por hora, que a temperatura
gira em torno de trinta graus negativos, que nelas não há oxigênio e que todos
morreríamos em poucos segundos.
— Ele parece um cara legal.
— Só digo uma coisa: ele era especialista em arruinar
sonhos, Hazel Grace. Você acha que os vulcões são incríveis? Diga isso aos dez
mil cadáveres berrando em Pompeia. Lá no fundo você ainda acredita que haja uma
aura de mágica neste mundo? São apenas moléculas desalmadas colidindo umas com as
outras aleatoriamente. Você se preocupa com quem vai cuidar de você se seus
pais morrerem? Pois deveria mesmo, porque eles virarão comida de verme na
completude do tempo.
— A ignorância é uma bênção — falei.
Uma comissária de bordo cruzava o corredor empurrando o
carrinho de bebidas, sussurrando:
— Bebida? Bebida? Bebida? Bebida?
O Gus inclinou o corpo por cima de mim, levantando a mão.
— Será que você poderia nos servir champanhe?
— Vocês têm vinte e um anos? — ela perguntou, meio
desconfiada.
N
Ajeitei o cateter no nariz de um jeito que ela visse. A
comissária sorriu, e então olhou para a minha mãe, que dormia. — Ela não vai
achar ruim?
— Nem um pouquinho — respondi.
Então ela serviu um pouco de champanhe em dois copos de
plástico. Privilégios do Câncer.
O Gus e eu fizemos um brinde.
— A você — ele disse.
— A você — falei, encostando meu copo no dele.
Tomamos um gole. Estrelas não tão perceptíveis quando
comparadas às que tomamos no Oranjee, mas ainda assim boas o bastante para
serem apreciadas.
— Sabe — o Gus disse para mim —, tudo o que o Van Houten
falou era verdade.
— Talvez, mas ele não precisava ter sido um idiota tão
completo. Não acredito que ele imaginou um futuro para Sísifo, o hamster, mas
não para a mãe da Anna.
O Augustus deu de ombros. E pareceu sair do ar de repente.
— Você está bem? — perguntei.
Ele balançou a cabeça num movimento microscópico.
— Dói — ele disse.
— O peito?
Ele assentiu. Punhos cerrados. Um tempo depois, ele
descreveu aquela dor como sendo a de um homem de uma perna só, calçado com um
salto agulha, de pé no meio do tórax dele. Retornei minha bandeja à posição
vertical e me inclinei para a frente a fim de procurar analgésicos na mochila
dele. Ele tomou um comprimido com champanhe.
— Tudo bem? — perguntei de novo.
O Gus ficou só sentado ali, abrindo e fechando o punho,
esperando que o analgésico fizesse efeito, o remédio que não acabava bem com a
dor, apenas distanciava o Gus dela (e de mim).
— Parecia que era pessoal — o Gus disse, baixinho. — Como se
ele estivesse com raiva de nós dois por algum motivo. O Van Houten, digo.
Ele bebeu o resto do champanhe de uma vez só e logo pegou no
sono.
* * *
Meu pai estava esperando por nós na área de desembarque, em
meio aos motoristas de limusine de terno que seguravam placas com os sobrenomes
de seus passageiros: JOHNSON, BARRINGTON, CARMICHAEL. Papai tinha a própria
placa. MINHA FAMÍLIA LINDA, dizia, e logo abaixo: (E GUS).
Abracei o papai e ele começou a chorar (claro). Na volta de
carro para casa, o Gus e eu lhe contamos as histórias de Amsterdã, mas só
depois que eu já estava em casa, conectada ao Felipe, assistindo aos bons e
velhos programas de televisão norte-americanos com o papai e comendo pizza
norte-americana com guardanapos no colo, foi que contei a ele do Gus.
— Gus teve uma recorrência — falei.
— Eu sei — ele disse.
Chegou mais para perto de mim e acrescentou:
— A mãe dele nos contou antes da viagem. Sinto muito por ele
ter escondido isso de você. Eu… Eu sinto muito, Hazel. — E não disse mais nada
por um bom tempo.
O programa que estávamos vendo era sobre pessoas que tentam
escolher que casa vão comprar.
— Eu li o Uma aflição imperial enquanto vocês estavam
viajando — o papai disse.
Virei a cabeça na direção dele.
— Ah, que legal. E o que achou?
— Achei bom. Um pouco demais para a minha cabeça. Eu me
formei em bioquímica, se você bem se lembra, não em literatura. Realmente acho
que a história deveria ter tido um fim.
— É — falei. — Essa é uma reclamação recorrente.
— Além do mais, o livro era um pouco pessimista — ele disse.
— Um pouco derrotista.
— Se com derrotista você quer dizer honesto, então concordo
com você.
— Não acho que o derrotismo tenha a ver com honestidade — o
papai
retrucou. — Eu me recuso a aceitar isso.
— Então tudo acontece por uma razão e nós todos vamos viver
nas nuvens e tocar harpa e morar em mansões celestiais?
Ele sorriu. E me envolveu com seu braço comprido e me puxou
mais para perto, dando um beijo na lateral da minha cabeça.
— Não sei no que eu acredito, Hazel. Eu achava que ser
adulto significava saber em que você acredita, mas não tem sido bem assim para
mim.
— É — falei. — Tudo bem.
Ele me disse de novo que sentia muito pelo Gus, e nós
continuamos a ver o programa. As pessoas escolheram uma casa, o papai com o
braço ainda em volta de mim, e eu meio que comecei a pegar no sono, mas não
queria dormir ainda. Então, papai disse:
— Você sabe em que eu acredito? Eu me lembro de quando
estava na faculdade, durante uma aula de matemática, uma aula de matemática
realmente fantástica dada por uma professora idosa e baixinha. Ela falava das
transformações rápidas de Fourier, mas parou no meio de uma frase e disse: ‚Às
vezes parece que o universo quer ser notado.‛ É nisso que eu acredito. Acredito
que o universo quer ser notado. Acho que o universo é, questionavelmente,
tendencioso para a consciência, que premia a inteligência em parte porque gosta
que sua elegância seja observada. E quem sou eu, vivendo no meio da história,
para dizer ao universo que ele, ou a minha observação dele, é temporária?
— Você é razoavelmente inteligente — falei, depois de um
tempo.
— Você é razoavelmente boa com elogios — ele retrucou.
* * *
No dia seguinte à tarde, fui de carro até a casa do Gus e
lanchei sanduíches de manteiga de amendoim e geleia com os pais dele. Contei as
histórias de Amsterdã enquanto o Gus cochilava no sofá da sala de estar, onde
tínhamos assistido ao V de Vingança. Dava para vê-lo da cozinha: deitado de
costas, o rosto virado para o outro lado, um PICC já em ação.
Eles estavam atacando o câncer com um novo coquetel: duas
substâncias quimioterápicas e um receptor de proteína que, eles esperavam,
desligaria o oncogene no câncer do Gus. Ele teve sorte de conseguir participar
do experimento, me disseram. Sorte. Eu já conhecia uma daquelas substâncias. Só
de ouvir o nome dela fiquei com vontade de vomitar.
Depois de um tempo, a mãe do Isaac o levou para visitar o
Gus.
— Oi, Isaac, sou eu, a Hazel, do Grupo de Apoio, e não a sua
ex-namorada do mal.
A mãe do Isaac o guiou até mim, eu levantei da cadeira da
mesa de jantar e o abracei, o corpo dele levando alguns instantes para me
encontrar antes de me abraçar de verdade, um abraço forte.
— Como foi lá em Amsterdã? — ele perguntou.
— Incrível — respondi.
— Waters — ele falou. — Cadê você, irmão?
— Ele está tirando um cochilo — eu disse, e minha garganta
travou.
O Isaac balançou a cabeça, o restante de nós permaneceu sem
silêncio. — Que droga! — o Isaac falou depois de um segundo.
A mãe dele o levou até uma cadeira que ela havia puxado. Ele
se sentou.
— Eu ainda consigo mandar no seu traseiro cego no
Counterinsurgence — o Augustus disse sem se virar para nós.
O remédio deixava a fala dele um pouco lenta, mas aquela
velocidade equivalia à de uma pessoa normal.
— Eu tenho quase certeza de que todos os traseiros são cegos
— o Isaac respondeu, estendendo a mão no ar sem rumo, procurando a mãe.
Ela o segurou, ajudou-o a se levantar e eles andaram juntos
até o sofá, onde o Gus e o Isaac deram um abraço meio sem jeito.
— Como está se sentindo? — o Isaac perguntou.
— Tudo tem gosto de moeda. Fora isso, estou numa
montanha-russa que só vai para cima, garoto — o Gus respondeu. O Isaac riu. —
Como estão seus olhos?
— Ah, excelentes — ele disse. — Quer dizer, o fato de não
estarem no meu rosto é o único problema.
— Maravilha — o Gus falou. — Não é que eu queira ser melhor
que você nem nada, mas meu corpo é feito de câncer.
— Pois é, ouvi dizer — o Isaac falou, tentando não deixar
que aquilo o afetasse.
Tateou à procura da mão do Gus mas só achou a coxa dele.
— Estou tomado — disse o Gus.
* * *
A mãe do Isaac pegou duas cadeiras, e o Isaac e eu nos
sentamos perto do Gus. Peguei a mão do Gus e fiquei fazendo carinho no espaço
entre o polegar e o indicador, em círculos.
Os adultos foram todos para o porão a fim de se lamentar ou
coisa do gênero, deixando nós três sozinhos na sala de estar. Depois de um
tempo, o Augustus virou a cabeça para nós, o despertar lento.
— Como está a Monica? — ele perguntou.
— Não deu nenhuma notícia — o Isaac respondeu. — Nenhum
cartão; nenhum e-mail. Eu tenho uma máquina que lê meus e-mails para mim. É
muito maneira. Dá para alterar o tipo de voz, de homem ou de mulher, além do
sotaque, e tal.
— Então eu posso, tipo, mandar um texto pornô e você
consegue fazer um velho alemão ler?
— Exatamente — o Isaac disse. — O único problema é que a
mamãe ainda precisa me ajudar com a máquina, então talvez seja melhor segurar a
onda da pornografia alemã por uma ou duas semanas.
— Ela nem mandou, tipo, um torpedo para perguntar como está
indo? — questionei.
Aquilo me pareceu uma injustiça sem precedentes.
— Silêncio de rádio total — o Isaac disse.
— Ridículo — falei.
— Já parei de pensar nisso. Não tenho tempo para namoradas.
Arranjei um emprego de expediente integral Aprendendo a Ser Cego.
O Gus virou de novo a cabeça para o outro lado e ficou
olhando, pela
janela, para o terraço no quintal da casa. Seus olhos se
fecharam. O Isaac perguntou como eu estava, respondi que bem, e ele me contou
que havia uma garota nova no Grupo de Apoio com uma voz bastante sensual e que
ele precisava que eu fosse lá para confirmar se ela era mesmo sensual. Aí, do
nada, o Augustus disse:
— Você não pode simplesmente não falar com seu ex-namorado
depois de os olhos dele terem sido arrancados do raio do rosto dele.
— Apenas um dos…. — o Isaac começou.
— Hazel Grace, você tem quatro dólares? — o Gus perguntou.
— Humm — falei. — Tenho.
— Excelente. Você vai encontrar minha perna debaixo da mesa
de café — ele falou.
O Gus empurrou o corpo para cima, se sentando, e chegou para
a beirada do sofá. Entreguei para ele a prótese; ele a acoplou quase em câmera
lenta.
Ajudei o Gus a ficar de pé e ofereci o braço ao Isaac, e fui
guiando ele na transposição dos móveis que, de repente, pareciam estar todos no
meio do caminho — e percebi que, pela primeira vez em vários anos, eu era a
pessoa mais saudável no ambiente.
Eu dirigi. O Augustus foi no banco do carona. O Isaac, no
banco de trás. Paramos numa loja de conveniência onde, seguindo instruções
expressas do Augustus, comprei uma dúzia de ovos enquanto ele e o Isaac
esperavam no carro. E então o Isaac nos guiou, usando a memória, até a casa da
Monica, uma casa de dois andares excessivamente estéril perto do Centro da
Comunidade Judaica. O Pontiac Firebird verde-esmeralda da década de 1990, com
suas rodas largas, estava parado na entrada de veículos.
— O carro dela está aí? — o Isaac perguntou quando sentiu
que eu estava freando para parar.
— Ah, se está — o Augustus disse. — Você sabe com o que ele
se parece, Isaac? Ele se parece com todas as esperanças que fomos tolos em alimentar.
— Então ela está lá dentro?
O Gus virou a cabeça lentamente a fim de olhar para o Isaac.
— Quem se importa com onde ela está? Isso não tem nada a ver
com ela. Isso tem a ver com você.
O Gus segurou a caixa de ovos no colo, abriu a porta e puxou
as pernas para fora, para a rua. Ele abriu a porta para o Isaac, e eu fiquei
olhando pelo retrovisor enquanto o Gus o ajudava a sair do carro, os dois se
apoiando um no outro na linha do ombro, o resto do corpo mais afastado, como se
fossem duas mãos em oração sem que as palmas se encostassem.
Abaixei o vidro e fiquei assistindo a tudo do carro, porque
vandalismo me deixava nervosa. Eles deram alguns passos em direção ao carro da
Monica, e então o Gus abriu a caixa de ovos e entregou um para o amigo. O Isaac
o atirou, errando o carro por uns bons doze metros.
— Um pouco para a esquerda — o Gus disse.
— Meu lançamento foi um pouco para a esquerda ou eu preciso
mirar um pouco para a esquerda?
— Mire para a esquerda. — O Isaac girou os ombros. — Mais
para a esquerda — o Gus disse. O Isaac girou de novo. — Isso. Excelente. Agora
atire com vontade.
O Gus deu a ele outro ovo, que o Isaac atirou, fazendo um
arco sobre o carro e se estraçalhando no telhado em declive da casa.
— No alvo! — o Gus disse.
— Sério? — o Isaac perguntou, empolgado.
— Não, você atirou o ovo uns seis metros acima do carro.
Atire com vontade, só que mais para baixo. E um pouco mais à direita de onde
você estava da última vez.
O Isaac esticou a mão e pegou sozinho um ovo da caixa que o
Gus segurava. Ele o atirou, acertando a lanterna traseira.
— Isso! — o Gus disse. — Isso! Lanterna!
O Isaac pegou outro ovo, errou um bocado para a direita,
depois outro, errando para baixo, e então mais um, acertando o para-brisa
traseiro. E aí emplacou três ovos seguidos na mala do carro.
— Hazel Grace — o Gus gritou para trás. — Tire uma foto para
que o
Isaac possa ver isso quando inventarem olhos robóticos.
Ergui o corpo e me sentei na janela com o vidro abaixado,
meus cotovelos no teto do carro, e tirei uma foto com o celular: o Augustus, o
cigarro apagado na boca, seu sorriso deliciosamente torto, segurando a caixa de
ovos cor-de-rosa basicamente vazia no alto da cabeça. Seu outro braço nos
ombros do Isaac, cujos óculos escuros não estão exatamente virados para a câmera.
Atrás deles, gemas de ovo escorrem pelo para-brisa e pelo para-choque do
Firebird verde. E atrás de tudo, uma porta que se abre.
— O que — perguntou a mulher de meia-idade um segundo depois
de eu tirar a foto —, em nome de Jesus… — E então parou de falar.
— Senhora — o Augustus disse, balançando a cabeça e olhando
para ela —, o carro da sua filha acabou de ser merecidamente coberto de ovos
por um cego. Feche a porta, por favor, e volte para dentro de casa, senão
seremos forçados a chamar a polícia.
Depois de hesitar por alguns instantes, a mãe da Monica
fechou a porta e desapareceu. O Isaac atirou os últimos três ovos um atrás do
outro e o Gus o guiou de volta ao carro.
— Viu, Isaac, se você simplesmente tirar… estamos chegando
perto do meio-fio agora… deles a sensação de legitimidade, se você inverter as
coisas para que achem que são eles que estão cometendo um crime só de ver… só
mais alguns passos… os carros sendo cobertos de ovos, eles ficarão confusos,
assustados e com medo, e simplesmente voltarão… a maçaneta da porta está bem à
sua frente… à vida tediosa deles.
O Gus passou apressado pela frente do carro e se aboletou no
banco do carona. As portas se fecharam e eu acelerei, dirigindo várias dezenas
de metros antes de me dar conta de que tinha ido na direção de uma rua sem
saída. Fiz a volta no cul-de-sac e passei voada pela casa da Monica.
Nunca mais tirei outra foto dele.
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