segunda-feira, 3 de junho de 2013

A culpa é das estrelas- John Green- Parte 4

CAPÍTULO DOZE
bri os olhos às quatro horas da manhã holandesa, completamente acordada. Todas as tentativas de voltar a dormir foram em vão, então fiquei deitada ali com o BiPAP bombeando o ar para dentro e puxando o ar para fora, viajando nos ruídos de dragão mas desejando ser capaz de escolher de que jeito respirar.
Reli o Uma aflição imperial até a mamãe acordar e rolar para o meu lado, lá pelas seis horas. Ela aconchegou a cabeça no meu ombro, o que foi um pouco desconfortável e ligeiramente augustiniano.
O hotel serviu o café da manhã no nosso quarto e, para minha total satisfação, continha frios e muitas outras transgressões à composição do café da manhã norte-americano. O vestido que eu tinha planejado usar no encontro com o Peter Van Houten passou à frente dos outros na fila quando do jantar no Oranjee; por isso, assim que saí do banho e consegui deixar o cabelo mais ou menos liso, passei uma meia hora debatendo com a mamãe sobre as diversas vantagens e desvantagens dos figurinos disponíveis, até que resolvi me vestir o mais parecida com a Anna em UAI possível: Chuck Taylors, calça jeans escura do jeito que ela sempre usava e uma camiseta de malha azul-claro.
A estampa da camiseta era a reprodução de um famoso quadro surrealista de René Magritte, no qual ele pintou um cachimbo e escreveu embaixo, em letras cursivas: Ceci n’est pas une pipe. (‚Isto não é um cachimbo.‛)
— Eu não consigo entender essa camiseta — mamãe falou.
— O Peter Van Houten vai entender, acredite. Em Uma aflição imperial há, tipo, umas sete mil referências ao Magritte.
— Mas isto é um cachimbo.
— Não, não é — falei. — É uma ilustração de um cachimbo.
A
Entendeu agora? Todas as representações de um objeto são inerentemente abstratas. É muito inteligente.
— Como foi que você amadureceu tanto que consegue entender coisas que confundem sua velha mãe? — ela perguntou. — Parece que foi ontem que eu estava explicando para uma Hazel de sete anos por que o céu é azul. Você me achou um gênio naquela época.
— Por que o céu é azul? — perguntei.
— Porque sim — ela respondeu, e eu ri.
Quanto mais perto das dez horas ia chegando, mais ansiosa eu ficava: ansiosa para ver o Augustus; ansiosa para conhecer o Peter Van Houten; ansiosa ao imaginar que minha roupa talvez pudesse não ter sido uma boa escolha; ansiosa e com medo de não conseguirmos achar a casa certa, já que todas as casas em Amsterdã se parecem; ansiosa e temerosa de nos perdermos e não encontrarmos o caminho de volta para o Filosoof; ansiosa ansiosa ansiosa. Mamãe ficava tentando bater papo comigo, mas eu não conseguia prestar atenção nela direito. Eu já estava para pedir a ela que fosse até o andar de cima ver se o Augustus estava acordado, quando ele chegou.
Abri a porta. Ele olhou minha camiseta e sorriu.
— Muito engraçado — ele disse.
— Não chame meu peito de engraçado — retruquei.
— Eu estou bem aqui — mamãe disse lá de trás.
Mas eu tinha feito o Augustus enrubescer e ficar tão sem ação que finalmente pude sustentar o olhar dele.
— Tem certeza de que não quer ir também? — perguntei à mamãe.
— Vou visitar o Rijksmuseum e o Vondelpark hoje — ela respondeu. — Além do mais, não consigo gostar do livro dele. Sem querer ofender. Agradeça a ele e à Lidewij por nós, tá?
— Tá — respondi. Abracei a mamãe e ela beijou a minha cabeça bem acima da orelha.
* * *
A casa branca e geminada de Peter Van Houten ficava, saindo do hotel, logo depois da curva, na Vondelstraat, de frente para a área do parque. Número 158. O Augustus me deu a mão, carregou o carrinho do oxigênio com a outra, e nós subimos os três degraus que levavam até a porta pintada de verniz azul e preto da casa. Meu coração batia acelerado. Uma porta fechada era a distância entre mim e as respostas com as quais vinha sonhando desde a primeira vez que li a última página incompleta.
Dava para ouvir as batidas do som de um baixo, alto o suficiente para fazer tremer os parapeitos das janelas. Fiquei me perguntando se o Peter Van Houten teria um filho fã de rap.
Segurei a aldraba em formato de cabeça de leão e bati à porta, hesitante. O som do baixo continuou.
— Talvez ele não consiga ouvir por causa da música? — o Augustus comentou.
Ele pegou a cabeça do leão e bateu bem mais forte.
A música parou de tocar e foi substituída pelo som de passos trôpegos. Uma das trancas foi destravada. E mais outra. A porta se abriu com um rangido. Um homem barrigudo, de cabelo ralo, bochechas caídas e a barba de uma semana por fazer estreitou os olhos por causa da luz do sol. Ele usava um pijama azul-bebê, como um personagem de filme antigo. O rosto e a barriga eram tão redondos e os braços, tão magros, que ele parecia uma bola de massa de pão com quatro varetas enfiadas.
— Sr. Van Houten? — o Augustus perguntou, a voz esganiçando um tiquinho.
A porta se fechou com um estrondo. De trás dela, ouvi uma voz aguda e gaguejante gritar: ‚LIII-DEE-VI-GUE!‛ (Até aquele momento, eu vinha pronunciando o nome da assistente dele como li-de-vi-ge.) Nós conseguíamos escutar tudo através da porta.
— Eles estão aqui, Peter? — uma mulher perguntou.
— Estão… Lidewij, há duas aparições adolescentes atrás da porta.
— Aparições? — ela perguntou, com uma melodia cadenciada tipicamente holandesa.
O Van Houten respondeu rápido.
— Fantasmas espectros demônios visitantes pós-terrestres aparições, Lidewij. Como pode uma pessoa que almeja obter um diploma de pós-graduação em literatura norte-americana demonstrar um conhecimento tão abominável da língua inglesa?
— Peter, aqueles não são visitantes pós-terrestres. Eles são o Augustus e a Hazel, os jovens fãs com os quais você vem se correspondendo.
— Eles são quem?! Eles… eu pensei que estivessem nos Estados Unidos da América!
— Sim, mas você os convidou para vir até aqui, se bem se lembra.
— Você sabe por que eu me mudei dos Estados Unidos, Lidewij? Para que nunca mais precisasse me encontrar com nenhum norte-americano.
— Mas você é norte-americano.
— Algo aparentemente incurável, imagino. Mas, quanto a esses norte-americanos aí, você deve pedir-lhes que vão embora imediatamente, que houve um terrível engano, que o bendito Van Houten fez um convite retórico, não a sério, que esse tipo de convite deve ser considerado algo simbólico.
Achei que fosse vomitar. Virei para o Augustus, que olhava vidrado para a porta, e vi os ombros dele se encurvando.
— Não farei isso, Peter — a Lidewij respondeu. — Você deve recebê-los. Você deve. Você precisa vê-los. Precisa ver como seu trabalho é importante.
— Lidewij, você me manipulou, de caso pensado, para provocar este encontro?
Um silêncio demorado se seguiu e, por fim, a porta se abriu de novo. Ele virou a cabeça metronomicamente do Augustus para mim, ainda com os olhos estreitados.
— Qual de vocês é o Augustus Waters? — perguntou.
O Augustus levantou a mão devagar. O Van Houten assentiu com a cabeça e disse:
— Você já resolveu a questão com aquela franguinha?
E foi quando vi, pela primeira e única vez, um Augustus Waters
totalmente sem palavras.
— Eu — ele começou —, humm, eu, Hazel, humm. Bem.
— Este garoto parece ter algum tipo de retardamento — o Peter Van Houten disse para a Lidewij.
— Peter — ela o censurou.
— Bem — disse o Peter Van Houten, estendendo a mão para mim.
— É um prazer sem igual conhecer criaturas tão ontologicamente improváveis.
Apertei a mão inchada dele e, em seguida, ele e o Augustus se cumprimentaram. Fiquei me perguntando o que a palavra ontologicamente significaria. Mesmo sem saber o que era, gostei dela. O Augustus e eu estávamos juntos no Time das Criaturas Improváveis: nós e os ornitorrincos.
É claro que eu tinha esperado que o Peter Van Houten fosse mentalmente são, mas o mundo não é uma fábrica de realização de desejos. A coisa mais importante era que a porta fora aberta e eu estava entrando ali para descobrir o que acontece depois do término do Uma aflição imperial. E isso era o suficiente. Seguimos ele e a Lidewij para dentro da casa, passamos por uma enorme mesa de jantar de madeira de carvalho com apenas duas cadeiras e chegamos a uma sala de estar estranhamente estéril. Parecia um museu, só que não havia quadro algum nas paredes brancas e vazias. Tirando um sofá e uma poltrona reclinável, ambos feitos de uma combinação de aço e couro preto, a sala parecia deserta. De repente, reparei em duas sacolas de lixo pretas grandes, cheias e lacradas com aqueles arames retorcidos, atrás do sofá.
— Lixo? — balbuciei para o Augustus, baixinho, achando que ninguém mais ouviria.
— Cartas de fãs — o Van Houten respondeu ao se sentar na poltrona reclinável. — Dezoito anos delas. Não posso abri-las. É aterrorizante. As de vocês foram as primeiras missivas às quais respondi, e vejam aonde isso me levou. Para ser sincero, acho a realidade dos leitores totalmente insossa.
Aquilo explicava por que o Van Houten nunca havia respondido às
minhas cartas: ele não tinha lido nenhuma. Fiquei me perguntando por que guardava todas elas, ainda mais numa sala de estar formal e quase vazia. O Van Houten colocou os pés em cima do pufe à frente da poltrona reclinável e cruzou os chinelos. Ele apontou para o sofá. O Augustus e eu nos sentamos lado a lado, mas não perto demais.
— Vocês gostariam de tomar café da manhã? — a Lidewij perguntou.
Comecei a responder que já tínhamos comido quando o Peter me interrompeu.
— É cedo demais para o café da manhã, Lidewij.
— Bem, eles vêm dos Estados Unidos, Peter. Já passa do meio-dia para os dois.
— Neste caso é tarde demais para o café da manhã — ele disse. — Porém, já que passa do meio-dia para eles, deveríamos então nos servir de um drinque. Você toma uísque? — perguntou para mim.
— Se eu… hummm… não… obrigada — falei.
— Augustus Waters? — o Van Houten perguntou, balançando a cabeça para o Augustus.
— É… Não, obrigado.
— Para mim, apenas, Lidewij. Uísque e água, por favor. — O Peter transferiu a atenção para o Gus, perguntando: — Você sabe como preparamos uma dose de uísque escocês com água nesta casa?
— Não, senhor — o Gus respondeu.
— Colocamos o uísque num copo, depois pensamos na água, e então misturamos o uísque de verdade com a ideia abstrata da água.
— Talvez seja melhor tomar alguma coisa de café da manhã antes, Peter — a Lidewij disse.
Ele olhou para nós e sussurrou, fingindo que estava contando um segredo e que ela não podia ouvi-lo:
— A Lidewij acha que eu tenho problemas com a bebida.
— E eu acho que o sol nasceu — a Lidewij respondeu.
Mesmo assim, ela se encaminhou para o bar na sala de estar, pegou uma garrafa de uísque, serviu o copo até a metade e levou até ele. O Peter Van Houten tomou um gole e se ajeitou na cadeira, sentando-se ereto.
— Um drinque desta qualidade merece uma postura melhor — ele disse.
Fiquei consciente da minha própria postura e me endireitei um pouco no sofá. E ajeitei a cânula. Papai sempre dizia que é possível julgar as pessoas pelo modo como tratam garçons e assistentes. Nesse aspecto, o Peter Van Houten era, provavelmente, o cara mais idiota do mundo.
— Então você gosta do meu livro — ele disse para o Augustus depois de outro gole.
— Sim — respondi pelo Augustus. — E, sim, nós… bem, o Augustus, ele usou o Desejo dele para conhecer você, para que nós pudéssemos vir aqui e você pudesse nos contar o que acontece depois do fim do Uma aflição imperial.
O Van Houten não disse uma palavra. Apenas deu uma golada na bebida. Depois de alguns instantes, o Augustus falou:
— Seu livro foi mais ou menos o que nos uniu.
— Mas vocês não são um casal — ele comentou, sem me olhar.
— O que quase nos uniu — falei.
Então ele olhou para mim.
— Você se vestiu igual a ela de propósito?
— Igual à Anna? — perguntei, e ele ficou só me encarando. — Pode-se dizer que sim.
Ele esvaziou o copo e fez uma careta.
— Eu não tenho problemas com a bebida — ele anunciou, a voz desnecessariamente alta. — Eu tenho uma relação churchilliana com o álcool: posso contar piadas, governar a Inglaterra e fazer o que quiser. Exceto deixar de beber.
Ele olhou para a Lidewij e fez um movimento com a cabeça em direção ao copo. Ela o pegou e andou de volta até o bar.
— Só a ideia de água, Lidewij — ele instruiu.
— Está bem, já entendi — ela disse, o sotaque quase como o nosso.
A segunda dose chegou. O Van Houten se empertigou todo de novo como forma de demonstrar respeito. E tirou os chinelos. Seus pés eram realmente feios. Ele estava arruinando a concepção que eu tinha de um
gênio autoral. Mas possuía as respostas.
— Bem, humm — falei —, primeiro nós queremos agradecer pelo jantar de ontem à noite e…
— Nós pagamos o jantar para eles ontem à noite? — o Van Houten perguntou para a Lidewij.
— Sim. No Oranjee.
— Ah, sim. Bem, acreditem em mim quando digo que vocês não têm de me agradecer, e sim à Lidewij, que possui um talento excepcional quando se trata de gastar o meu dinheiro.
— O prazer foi todo nosso — a Lidewij disse.
— Bem, obrigado, de qualquer forma — o Augustus falou.
Deu para sentir um quê de irritação na voz dele.
— Então aqui estou — o Van Houten disse após alguns instantes. — Quais são as suas perguntas?
— Humm — o Augustus murmurou.
— Ele parecia tão inteligente nas cartas — o Van Houten disse para a Lidewij, a respeito do Augustus. — Talvez o câncer tenha criado uma cabeça de ponte no cérebro dele.
— Peter — a Lidewij disse, devidamente horrorizada.
Eu também estava horrorizada, mas havia algo de interessante num cara tão vil que se recusava a nos tratar de forma condescendente.
— Temos mesmo algumas perguntas — eu disse. — Falei delas em meu e-mail. Não sei se você lembra.
— Não lembro.
— A memória dele está comprometida — a Lidewij disse.
— Se ao menos minha memória se comprometesse… — o Van Houten retrucou.
— Então, nossas perguntas — repeti.
— Ela usa o ‚nós‛ da realeza — o Peter falou, para ninguém em particular.
Outro gole. Eu não sabia como era o gosto do uísque, mas se fosse de alguma forma parecido com champanhe, não dava para entender como ele conseguia beber tanto, tão rápido e tão cedo.
— Você conhece o paradoxo da tartaruga de Zenão? — ele perguntou para mim.
— Nossas perguntas têm a ver com o que acontece com os personagens depois do fim do livro, mais especificamente…
— Você presume de forma errônea que eu precise ouvir a sua pergunta para que possa respondê-la. Já ouviu falar de Zenão, o filósofo?
Fiz ligeiramente que não com a cabeça.
— Ai de mim. Zenão era um filósofo pré-socrático que, dizem, elaborou quarenta paradoxos associados à cosmovisão a partir de pensamentos desenvolvidos por Parmênides… de Parmênides você já ouviu falar, naturalmente — ele disse, e eu fiz que sabia quem era Parmênides, mesmo não sabendo. — Graças a Deus! — ele falou. — Zenão se especializou em revelar as imprecisões e simplificações de Parmênides, o que não foi difícil, pois Parmênides estava sempre redondamente enganado em quase tudo. O valor de Parmênides é o mesmo que o do amigo que escolhe o cavalo errado toda vez que você o leva ao hipódromo. Mas o paradoxo mais conhecido de Zenão… Espere um instante… Qual é o seu grau de familiaridade com o hip-hop sueco?
Eu não sabia dizer se o Peter Van Houten estava brincando ou não. Depois de um tempo, o Augustus respondeu por mim:
— Limitado.
— Está bem, mas presumo que você conheça o álbum mais influente de Afasi och Filthy intitulado Fläcken.
— Não, nós não conhecemos — respondi por nós dois.
— Lidewij, coloque ‚Bomfalleralla‛ para tocar imediatamente. A Lidewij andou até um MP3 player, girou um pouquinho o botão circular e apertou uma tecla. Um rap começou a reverberar em todas as direções. O som era bastante familiar, exceto por ser cantado em sueco.
Terminou e o Van Houten olhou para nós, na expectativa, seus olhinhos o mais arregalados que conseguiam ficar.
— E então? — perguntou.
— Então?
Aí eu falei:
— O senhor deve nos desculpar, mas nós não falamos sueco.
— Bem, é claro que não falam. Eu também não. Quem é que raios fala sueco? O importante não é o que as vozes estão dizendo, o que quer que seja, mas o que as vozes estão sentindo. Vocês certamente sabem que só existem duas emoções, amor e medo, e que o Afasi och Filthy navega entre elas com o tipo de facilidade que não se encontra no rap fora da Suécia. Querem que eu bote para tocar de novo?

— Isso é uma piada? — o Gus perguntou.
— Como assim?
— Isso é algum tipo de performance? — Ele olhou para a Lidewij e perguntou: — É isso?
— Creio que não — a Lidewij respondeu. — Ele não é sempre… esse é um jeito incomum…
— Ah, cale a boca, Lidewij. Rudolf Otto disse que se você não tiver vivenciado o numinoso, se não tiver experimentado um encontro irracional com o mysterium tremendum, então o livro dele não é para você. E eu lhes digo, jovens amigos, que se não conseguem ouvir a reação corajosa de Afasi och Filthy ao medo, então meu livro não é para vocês.
É preciso que fique bem claro: aquilo era um rap absolutamente normal, exceto pela letra em sueco.
— Humm — falei. — Então, o Uma aflição imperial. Quando o livro termina, a mãe da Anna está prestes a…
O Van Houten me interrompeu, batendo no copo enquanto falava até a Lidewij enchê-lo de novo.
— Pois bem, Zenão é mais famoso por seu paradoxo da tartaruga. Imaginemos que você esteja participando de uma corrida com uma tartaruga. É dada à tartaruga uma vantagem inicial, em distância, de dez metros. No tempo que você leva para percorrer esses dez metros, a tartaruga talvez se desloque um. E, então, no tempo que você leva para transpor essa distância, a tartaruga vai um pouco mais à frente, e assim por diante. Você é mais rápido que a tartaruga, mas não consegue alcançá-la; só consegue diminuir a distância entre vocês.
‚Mas é óbvio que você acaba simplesmente passando pela tartaruga
sem ponderar sobre a mecânica envolvida, mas a pergunta de como foi capaz de fazer isso acaba sendo incrivelmente complicada e ninguém tinha achado uma resposta para ela de verdade, até que Cantor demonstrou que alguns infinitos são maiores que outros.‛
— Humm — murmurei.
— Imagino que isso responda à sua pergunta — ele disse, confiante, e então deu um gole generoso na bebida.
— Não exatamente — falei. — Nós estávamos nos perguntando se, depois do fim do Uma aflição imperial…
— Eu renego tudo o que há naquele livro pútrido — o Van Houten disse, me interrompendo.
— Não — retruquei.
— O que foi que você disse?
— Não, isso não é aceitável — falei. — Eu entendo que a história acaba no meio da narrativa porque a Anna morre ou fica doente demais para continuar a escrever, mas você falou que ia nos dizer o que acontece com os outros, e é por isso que estamos aqui, e nós, eu preciso que você me diga.
O Van Houten suspirou. Depois de mais um gole, disse:
— Muito bem. Você está curiosa a respeito de quem?
— A mãe da Anna, o Homem das Tulipas Holandês, Sísifo, o hamster, quer dizer, é só… o que acontece com todo mundo.
O Van Houten fechou os olhos, inflou as bochechas ao expirar e então olhou para cima, para as vigas de madeira expostas que se entrecruzavam no teto.
— O hamster — ele disse, depois de um tempo. — O hamster é adotado pela Christine…
Que era uma das amigas da Anna antes de ela ficar doente. Aquilo fazia sentido. A Christine e a Anna brincaram com o Sísifo em algumas cenas.
— Ele é adotado pela Christine e vive alguns anos depois do fim do livro, para então morrer pacificamente durante seu sono de hamster.
Agora, sim, estávamos indo a algum lugar.
— Legal — falei. — Legal. Tá, então agora, o Homem das Tulipas Holandês. Ele é um vigarista? A mãe da Anna se casa com ele?
O Van Houten ainda estava olhando para as vigas no teto. Ele tomou mais um gole. O copo já estava quase vazio de novo.
— Lidewij, eu não consigo fazer isso. Não consigo. Não consigo. — Ele nivelou o olhar com o meu. — Nada acontece com o Homem das Tulipas Holandês. Ele não é um vigarista nem um não-vigarista; ele é Deus. Ele é uma representação metafórica óbvia e inequívoca de Deus, e perguntar o que acontece com ele é o equivalente intelectual a perguntar o que acontece com os olhos desprovidos de corpo do Dr. T. J. Eckleburg em Gatsby. Se ele se casa com a mãe da Anna? Nós estamos falando de um livro, cara criança, não de algum cometimento histórico.
— Tá, mas com certeza você deve ter pensado no que acontece com eles, quer dizer, como personagens, independentemente dos significados metafóricos deles, e tal.
— Eles são ficcionais — ele disse, batendo de novo no copo. — Nada acontece com eles.
— Você falou que ia me dizer — insisti.
Fiz questão de ser assertiva. Eu precisava manter a atenção inebriada dele nas minhas perguntas.
— Talvez, mas eu me encontrava sob a impressão equivocada de que você estava impossibilitada de fazer uma viagem transatlântica. Eu tentei… lhe dar algum consolo, acho, e deveria ter imaginado que a tentativa seria infrutífera. Mas para ser totalmente honesto, essa ideia infantil de que o autor de um livro tem algum insight singular sobre seus personagens… é ridícula. Aquele livro foi composto por rabiscos numa página, minha cara. Os personagens que nele habitam não possuem vida fora desses rabiscos. O que aconteceu com eles? Todos deixaram de existir no momento em que o livro acabou.
— Não — falei. E me levantei do sofá. — Não, eu entendo isso, mas é impossível não imaginar um futuro para eles. Você é a pessoa mais qualificada para imaginar esse futuro. Alguma coisa aconteceu com a mãe da Anna. Ou ela se casou ou não se casou. Ou ela se mudou para a
Holanda com o Homem das Tulipas Holandês ou não se mudou. Ou ela teve mais filhos ou não teve. Eu preciso saber o que acontece com ela.
O Van Houten fez bico.
— Sinto muito não poder satisfazer seus caprichos infantis, mas me recuso a me apiedar de você da forma com a qual está acostumada.
— Eu não quero a sua pena — falei.
— Como toda criança doente — ele retrucou, sem demonstrar qualquer emoção —, você diz que não quer a pena de ninguém, mas a sua existência em si depende dela.
— Peter — a Lidewij falou, mas ele continuou, reclinando-se na cadeira, as palavras saindo ainda mais mastigadas daquela boca bêbada. — Crianças doentes inevitavelmente se tornam prisioneiras: você está fadada a viver o resto dos seus dias como a criança que era ao receber o diagnóstico, a criança que acredita que haja vida depois que um livro acaba. E nós, como adultos, temos pena disso, então pagamos seus tratamentos, suas máquinas de oxigênio. Nós lhes damos comida e água embora seja pouco provável que vocês vivam o suficiente para…
— PETER! — a Lidewij gritou.
— Você é um efeito colateral — o Van Houten continuou — de um processo evolutivo que não dá muita importância a vidas individuais. Você é um experimento malsucedido da mutação.
— EU ME DEMITO! — a Lidewij gritou.
Havia lágrimas nos olhos dela. Mas eu não estava com raiva. Ele havia encontrado um jeito mais doloroso de dizer a verdade, mas, naturalmente, eu já sabia qual era a verdade. Eu tinha passado vários anos olhando do meu leito para o teto da UTI, por isso há tempos já havia achado as maneiras mais dolorosas de imaginar a minha própria doença. Dei um passo na direção dele.
— Ouça aqui, seu idiota — falei —, não há nada que você possa me dizer sobre essa doença que eu já não saiba. Eu só preciso de uma coisa de você antes de sair da sua vida para sempre: O QUE ACONTECE COM A MÃE DA ANNA?
Ele ergueu a papada flácida na minha direção e deu de ombros.
— Não posso dizer o que acontece com ela da mesma forma que não posso dizer que fim levou o narrador de Proust, nem a irmã de Holden Caulfield, nem Huckleberry Finn depois que partiu para os territórios desconhecidos do Oeste.
— BABAQUICE! Isso é uma babaquice. Eu quero saber! Invente alguma coisa!
— Não, e ficarei grato se não proferir palavras de baixo calão na minha casa. Não é um vocabulário apropriado para uma moça.
Eu não estava exatamente com raiva, ainda, apenas bastante concentrada em obter o que me fora prometido. Alguma coisa cresceu dentro de mim, eu me inclinei e dei um soco na mão inchada que segurava o copo de uísque. O que restava da bebida se espalhou pela vastidão do rosto dele, o copo ricocheteou no nariz e depois rodopiou pelo ar, como num balé, aterrissando com um ruído de estilhaços no piso antigo de madeira.
— Lidewij — o Van Houten disse calmamente —, vou tomar um dry martíni, se possível. Com um sussurro de vermute apenas.
— Eu me demiti — ela respondeu após um instante.
— Não seja ridícula. Eu não sabia o que fazer. Ser boazinha não funcionou. Ser grossa não funcionou.
Eu precisava de uma resposta. Tinha vindo de longe e chegado até ali depois de roubar o Desejo do Augustus. Eu precisava saber.
— Alguma vez você já parou para se perguntar — ele disse, as palavras começando a sair meio engroladas — por que se importa tanto com seus questionamentos tolos?
— VOCÊ PROMETEU! — gritei, o ruído do choro impotente do Isaac na noite dos troféus destroçados ecoando na minha cabeça.
O Van Houten não respondeu.
Eu ainda estava de pé na frente dele, esperando que me dissesse alguma coisa, quando senti a mão do Augustus no meu braço. Ele me puxou em direção à porta e eu o segui, enquanto o Van Houten discursava para a Lidewij sobre a ingratidão dos adolescentes contemporâneos e sobre o fim da sociedade cortês, e a Lidewij, de um jeito histérico, gritava
alguma coisa para ele num holandês acelerado.
— Vocês precisam perdoar a minha ex-assistente — ele falou. — O holandês não é bem um idioma, mas uma enfermidade da garganta. O Augustus me tirou do cômodo e me puxou porta afora, ao encontro do fim da manhã de primavera e do confete dos olmos em queda.
* * *
Não existia, para mim, a possibilidade de uma fuga rápida, mas nós descemos os degraus, o Augustus segurando meu carrinho, e começamos a andar de volta para o Filosoof por uma calçada acidentada de paralelepípedos intercalados. Comecei a chorar pela primeira vez desde o episódio do balanço.
— Ei — ele disse, colocando a mão na minha cintura. — Ei. Está tudo bem.
Eu assenti e enxuguei o rosto com as costas da mão.
— Ele não vale nada. Assenti de novo.
— Vou escrever um epílogo para você — o Gus falou. Aquilo me fez chorar ainda mais.
— Vou, sim — ele disse. — Vou mesmo. E vai ser melhor que qualquer coisa que aquele bêbado poderia escrever. O cérebro dele é um queijo suíço. Ele nem se lembra de ter escrito o livro. Eu consigo criar uma história dez vezes melhor que a daquele cara. Vai ter sangue, coragem e sacrifícios. Uma aflição imperial encontra O preço do alvorecer. Você vai amar.
Eu continuei assentindo, simulando um sorriso, e aí ele me abraçou, os braços fortes me puxando para perto do peito musculoso, e eu ensopei a camisa polo dele, mas consegui me recompor o suficiente para poder falar.
— Eu gastei o seu Desejo com aquele idiota — disse, ainda encostada no peito dele.
— Hazel Grace. Não. Posso admitir que você de fato gastou o meu único Desejo, mas não foi com ele. Você gastou meu Desejo com nós dois.
Escutei, vindo de trás, um toc toc toc de saltos altos numa corrida
desabalada. Eu me virei. Era a Lidewij, o delineador escorrendo pelas bochechas, claramente constrangida, tentando nos alcançar.
— Talvez devêssemos ir visitar a Anne Frank Huis — a Lidewij disse.
— Não vou a lugar nenhum com aquele monstro — o Augustus disse.
— Ele não foi convidado — a Lidewij falou.
O Augustus continuou me abraçando de um jeito protetor, a mão na lateral do meu rosto.
— Não acho que… — ele começou, mas eu o interrompi.
— Nós deveríamos ir.
Eu ainda queria respostas do Van Houten. Mas isso não era tudo. Eu só teria mais dois dias em Amsterdã com o Augustus Waters. Não deixaria que um velho patético os estragasse.
* * *
O carro da Lidewij era um desajeitado Fiat cinza com um motor estridente como uma garotinha de quatro anos. Conforme percorríamos as ruas de Amsterdã, ela se desculpava repetida e profusamente.
— Sinto muito. Não tem desculpa. Ele está muito mal — ela disse. — Achei que o encontro o ajudaria, se ele visse que o livro tinha tido alguma influência na vida de vocês, mas… Sinto imensamente. Isso é muito, muito constrangedor.
Nem eu nem o Augustus dissemos nada. Eu estava no banco traseiro, bem atrás dele. Enfiei a mão no espaço entre a lateral do carro e o assento dianteiro, tentando achar sua mão, mas não consegui encontrá-la. A Lidewij prosseguiu:
— Eu continuei trabalhando para ele porque o considero um gênio e porque o salário é muito bom, mas ele se transformou num monstro.
— Imagino que tenha ficado muito rico com a venda do livro — falei, depois de um tempo.
— Ah, não, não. Ele é descendente dos Van Houten — ela falou. — No século dezessete, um ancestral dele descobriu como diluir cacau em pó em água. Muito tempo atrás, alguns dos Van Houten imigraram para os
Estados Unidos e Peter é filho de um deles, mas se mudou para a Holanda depois da publicação do livro. Ele é uma vergonha para uma nobre família.
O motor do carro esgoelou. A Lidewij trocou a marcha e nós passamos por uma ponte sobre o canal.
— Foram as circunstâncias — ela disse. — Foram as circunstâncias que o tornaram uma pessoa tão cruel. Ele não é um homem mau. Mas, hoje, eu não pensei… quando ele falou aquelas coisas horríveis, não pude acreditar. Sinto muito. Sinto muito, muito mesmo.
* * *
Tivemos de estacionar a um quarteirão da casa da Anne Frank, e enquanto a Lidewij ficava na fila para comprar os ingressos para nós, me sentei com as costas apoiadas numa arvorezinha, olhando para as casas flutuantes atracadas no canal Prinsengracht. O Augustus estava em pé à minha frente, movimentando o carrinho do oxigênio em círculos, olhando as rodinhas girarem. Eu queria que ele se sentasse ao meu lado, mas sabia como era difícil, para ele, se sentar, e mais difícil ainda ficar de pé de novo.
— Tudo bem? — ele perguntou, olhando para mim.
Dei de ombros e estiquei o braço para poder colocar a mão na batata da perna dele. Era a panturrilha falsa, mas segurei firme. Ele abaixou a cabeça para me olhar.
— Eu queria… — falei.
— É, eu sei — ele disse. — Eu sei. Aparentemente, o mundo não é uma fábrica de realização de desejos.
Isso me fez rir um tiquinho.
A Lidewij voltou com os ingressos, mas seus lábios finos estavam franzidos de preocupação.
— Não tem elevador — ela disse. — Sinto muito, muito mesmo.
— Está tudo bem — falei.
— Não. Lá dentro há muitas escadas — ela disse. — E elas são íngremes.
— Está tudo bem — repeti. O Augustus começou a dizer alguma coisa, mas eu o interrompi. — Não tem problema. Eu consigo subir.
A visita começou num cômodo que mostrava um vídeo sobre os judeus na Holanda, sobre a invasão nazista e sobre a família Frank. Depois fomos para o andar de cima, adentrando a casa do canal onde funcionara a empresa do Otto Frank. Subir as escadas era um processo lento, tanto para mim quanto para o Augustus, mas eu me sentia forte. Logo estava olhando a famosa estante de livros que camuflara a entrada para o esconderijo da Anne, da família dela e de quatro outras pessoas. A estante estava aberta até a metade, e por atrás havia uma escada mais íngreme ainda, tão estreita que só cabia uma pessoa por degrau.
Havia vários visitantes à nossa volta, e eu não queria atravancar a procissão, mas a Lidewij falou:
— Se todos puderem ter um pouco de paciência, por favor…
E comecei a subir, a Lidewij carregando o carrinho atrás de mim, o Gus na sequência.
Eram quatorze degraus. Eu só pensava nas pessoas que vinham depois de mim, a maioria adultos falando vários idiomas diferentes, e fiquei com vergonha. Sei lá, eu me sentia como um fantasma que tanto traz consolo quanto assombra, mas consegui chegar ao fim da escada, finalmente, num cômodo sinistramente vazio. Eu me apoiei na parede, meu cérebro dizendo a meus pulmões está tudo bem está tudo bem fiquem tranquilos está tudo bem e meus pulmões dizendo ao meu cérebro ai, meu Deus, nós estamos morrendo aqui. Nem vi quando o Augustus chegou, mas ele se aproximou de mim esfregando as costas da mão na testa para secá-la, num movimento de ufa, e disse:
— Você é uma heroína.
Depois de alguns minutos apoiada na parede, fui até o cômodo seguinte, que a Anne havia dividido com o dentista Fritz Pfeffer. Era minúsculo e sem móveis. Não daria para imaginar que alguém tinha vivido ali não fossem as fotos de revistas e jornais que a Anne havia colado na parede e que lá permaneciam.
Outra escada levava ao cômodo no qual a família Van Pel havia
morado, essa mais íngreme que a anterior e com dezoito degraus, basicamente uma escada de mão mais elaborada. Cheguei à base dela, olhei para o alto e achei que não conseguiria subir, mas também sabia que o único caminho para chegar ao fim era subindo.
— Vamos voltar — o Gus disse, atrás de mim.
— Estou bem — respondi baixinho.
Sei que é bobagem, mas eu ficava pensando que devia isso a ela, à Anne Frank, digo, porque ela estava morta e eu, não, porque ela havia ficado em silêncio, mantido as cortinas fechadas e feito tudo certo, e ainda assim, tinha morrido. Então eu deveria subir aqueles degraus e ver o resto do mundo no qual ela vivera durante aqueles anos antes da chegada da Gestapo.
Comecei a subir, transpondo os degraus do mesmo jeito que uma criança pequena faria, devagar a princípio, para conseguir respirar, e mais rápido depois, porque eu sabia que no fim das contas não conseguiria respirar, e queria chegar ao topo antes de perder o fôlego de vez. A escuridão invadia o meu campo de visão enquanto eu escalava os dezoito degraus, íngremes como os diabos. Por fim, alcancei o topo basicamente cega e enjoada, os músculos dos braços e das pernas clamando por oxigênio. Larguei meu corpo no chão, sentando com as costas encostadas numa parede, tossindo sofregamente. Havia uma redoma de vidro vazia e aparafusada na parede acima de mim. Olhei para o alto, através dela, para o teto, tentando não desmaiar.
A Lidewij se agachou ao meu lado e falou:                     
— Você chegou ao último andar, já acabou.
Fiz que sim com a cabeça. Eu tinha uma vaga noção de que havia adultos espalhados pelo ambiente olhando preocupados para mim; da Lidewij falando baixinho numa língua, depois em outra, e então em mais outra para os vários visitantes; do Augustus de pé na minha frente, a mão dele na minha cabeça, acariciando meu cabelo no pedaço em que estava repartido. Depois de um bom tempo, a Lidewij e o Augustus me colocaram de pé, e pude ver o que estava por trás da redoma de vidro: marcas feitas a lápis no papel de parede e que registravam o crescimento
de todas as crianças no anexo secreto durante o período em que viveram ali, centímetro por centímetro, até quando foi interrompido. Saindo dali, deixamos a área de moradia dos Frank, mas ainda estávamos no museu. Um corredor comprido e estreito exibia fotos de cada um dos oito residentes do anexo e descrevia como, onde e quando haviam morrido.
— O único integrante da família dele a sobreviver à guerra — a Lidewij nos disse, se referindo ao pai da Anne, Otto.
Ela sussurrava, como se estivéssemos numa igreja.
— Mas, na verdade, ele não sobreviveu bem a uma guerra — o Augustus falou. — Ele sobreviveu a um genocídio.
— Verdade — a Lidewij concordou. — Não sei como é possível alguém continuar vivendo sem a família. Não sei mesmo.
Enquanto eu lia a respeito de cada um dos sete que morreu, pensei em Otto Frank deixando de ser pai, ficando com um diário, em vez da esposa e das duas filhas. No fim do corredor, um livro enorme, maior que um dicionário, continha os nomes dos 103 mil holandeses mortos no Holocausto. (Apenas 5 mil dos judeus holandeses deportados, explicava uma plaqueta na parede, haviam sobrevivido. Cinco mil Otto Franks.) O livro estava aberto na página em que havia o nome da Anne Frank, mas o que chamou mesmo a minha atenção foi o fato de que logo abaixo do nome dela tinham quatro Aron Franks. Quatro. Quatro Aron Franks sem museus, sem placas comemorativas, sem ninguém para chorar por eles. Em meu íntimo, resolvi que iria me lembrar dos quatro Aron Franks e rezar por eles enquanto vivesse. (Talvez algumas pessoas precisem acreditar num Deus único e onipotente para o qual rezar, mas eu, não.)
Quando chegamos ao fim do cômodo, o Gus parou e perguntou:
— Você está bem?
Assenti com a cabeça.
Ele fez um gesto indicando a foto da Anne.
— A pior parte é que ela quase escapou, sabe? Ela morreu algumas semanas antes da liberação dos campos de concentração.
A Lidewij se afastou alguns passos para assistir a um vídeo, e eu segurei a mão do Augustus enquanto andávamos para o ambiente seguinte.
Era um cômodo de teto triangular com cartas que o Otto Frank havia escrito para algumas pessoas durante sua busca pelas filhas, que durou vários meses. Na parede, no meio do cômodo, um vídeo do Otto estava sendo reproduzido. Ele falava em inglês.
— Sobrou algum nazista que eu possa perseguir e entregar nas mãos da Justiça? — o Augustus perguntou quando nos inclinamos sobre as vitrines da exposição para ler as cartas do Otto e as respostas dilacerantes de que não, ninguém tinha visto as filhas dele depois da liberação.
— Acho que estão todos mortos. Mas não é como se os nazistas tivessem o monopólio do mal.
— Verdade — ele disse. — Eis o que deveríamos fazer, Hazel Grace: nós deveríamos nos unir e virar uma dupla de justiceiros portadores de deficiências botando a boca no trombone pelo mundo, endireitando o que está errado, defendendo os fracos, protegendo quem se sente ameaçado.
Embora aquela fosse a ‚viagem‛ do Gus, e não a minha, eu entrei na dele. O Gus já havia entrado na minha, afinal.
— Nosso destemor será nossa arma secreta — falei.
— As lendas das nossas proezas sobreviverão enquanto existir a voz humana — ele disse.
— E, mesmo depois disso, quando os robôs relembrarem os absurdos humanos de sacrifício e compaixão, eles se lembrarão de nós.
— Eles rirão roboticamente da nossa loucura destemida — ele disse. — Mas algo em seus corações de ferro robotizados vai desejar ter vivido e morrido como nós: a serviço do heroísmo.
— Augustus Waters — falei, olhando para ele, pensando que talvez não fosse certo beijar alguém dentro da casa da Anne Frank, mas então imaginando que a Anne Frank, no fim das contas, devia ter beijado alguém na casa da Anne Frank, e que ela provavelmente gostaria de sua casa ter se tornado um lugar no qual os jovens e irremediavelmente imperfeitos se entregam ao amor.
‚Devo dizer‛, o Otto Frank falou no vídeo em seu inglês com sotaque, ‚que fiquei surpreso com os pensamentos profundos que a Anne tinha.‛
E então, de repente, estávamos nos beijando. Minha mão largou o
carrinho do oxigênio, segurou o pescoço do Gus, enquanto ele me puxou para cima pela cintura, me deixando na ponta dos pés. Quando os lábios semiabertos dele encontraram os meus, comecei a sentir uma falta de ar totalmente inédita e fascinante. O espaço à nossa volta evaporou, e por um estranho momento me senti bem no meu corpo; essa coisa estragada pelo câncer que eu tinha passado vários anos arrastando de um lado para outro parecia, de repente, valer a pena, os tubos no tórax e os PICCs e a incessante traição corporal dos tumores.
‚A Anne que eu conhecia como filha era bastante diferente. Ela nunca demonstrou esse tipo de sentimento interior‛, o Otto Frank continuou.
O beijo durou uma eternidade enquanto o Sr. Frank falava atrás de mim.
‚E a minha conclusão, na medida em que eu mantinha boas relações com a Anne, é que a maioria dos pais não conhece de verdade seus filhos.‛
Eu me dei conta de que meus olhos estavam fechados e os abri. O Augustus me encarava, seus olhos azuis mais próximos que nunca, e atrás dele um grupo de pessoas tinha meio que se organizado em três camadas de círculos à nossa volta. Eles estavam com raiva, pensei. Horrorizados. Esses adolescentes, com seus hormônios, se agarrando debaixo de um vídeo reproduzindo a voz exaurida de um ex-pai.
Eu me afastei do Augustus, e ele tascou um beijo na minha testa enquanto eu olhava fixamente para meus Chuck Taylors. E foi então que começaram a bater palmas. Todas as pessoas, todos aqueles adultos, simplesmente começaram a bater palmas, e um deles até gritou: ‚Bravo!‛, com um sotaque europeu. O Augustus, sorridente, fez uma mesura. Rindo, fiz uma ligeira reverência, o que provocou uma nova rodada de aplausos.
Descemos as escadas depois de deixar todos os adultos passarem, e logo antes de chegarmos ao café (onde, por sorte, um elevador nos levou até o térreo e à lojinha de suvenires) vimos algumas páginas do diário da Anne, além de seu livro de citações ainda inédito, aberto numa página de frases de Shakespeare. Quem é tão firme que não possa ser seduzido?, ela escrevera.
* * *
A Lidewij nos deu uma carona de volta ao Filosoof. Do lado de fora do hotel estava chuviscando, e o Augustus e eu ficamos parados na calçada de paralelepípedos, nos ensopando aos poucos.
Augustus: ‚Você deve estar precisando descansar.‛
Eu: ‚Estou bem.‛
Augustus: ‚Tá.‛ (Pausa.) ‚Em que você está pensando?‛
Eu: ‚Em você.‛
Augustus: ‚O que tem eu?‛
Eu: ‚Não sei mesmo qual preferir, / A beleza das inflexões / Ou a das alusões, / O pássaro-preto assobiando / Ou só depois.‛
Augustus: ‚Cara, você é sexy.‛
Eu: ‚Nós poderíamos ir para o seu quarto.‛
Augustus: ‚Já ouvi ideias piores.‛
* * *
Nos esprememos no elevador minúsculo. Todas as superfícies, inclusive o piso, eram cobertas de espelhos. Tivemos de puxar a porta para fechar o elevador, e então aquela coisa velha foi rangendo devagar até o segundo andar. Eu estava cansada, suada e com medo de a minha aparência e o meu cheiro estarem horríveis, mas mesmo assim o beijei dentro daquele cubículo. Aí ele se afastou um pouco, apontou para o espelho e disse:
— Veja: infinitas Hazels.
— Alguns infinitos são maiores que outros — falei pausadamente, imitando o Van Houten.
— Que palhaço! — o Augustus disse, e demorou todo esse tempo, e mais ainda, para chegarmos ao segundo andar.
Por fim, o elevador parou num tranco. O Augustus empurrou a porta espelhada para abri-la. Quando estava metade aberta, ele estremeceu de dor e perdeu a pegada por um segundo.
— Você está bem? — perguntei.
Após um instante, ele respondeu:
— Estou, estou. É só a porta, que é meio pesada, acho.
Ele a empurrou de novo e conseguiu abri-la, me deixando sair primeiro, claro, mas aí eu não soube que direção seguir pelo corredor e fiquei simplesmente ali, do lado de fora, e ele também, seu rosto ainda transfigurado pela dor.
— Está tudo bem com você? — perguntei mais uma vez.
— Só estou fora de forma, Hazel Grace. Está tudo ótimo.
Nós estávamos ali parados e ele não tomava a iniciativa de ir para o quarto nem nada, e eu não sabia onde o quarto ficava, e enquanto durava o impasse me convenci de que ele estava tentando descobrir uma forma de não ficar comigo e de que, para início de conversa, eu nunca deveria ter dado aquela ideia, que a iniciativa não deveria ter sido minha, daí a repugnância dele, que só ficava me olhando, de pé, sem nem piscar, tentando pensar num jeito de se desvencilhar educadamente da situação. E aí, depois do que pareceu ser uma eternidade, ele falou:
— Fica acima do meu joelho, e vai afunilando um pouco, e depois é só pele. Tem uma cicatriz horrenda, mas ela parece…
— O quê? — perguntei.
— A minha perna — ele respondeu. — Só para você se preparar psicologicamente no caso de, quer dizer, no caso de você ver, ou coisa ass…
— Ah, deixe de bobagem — falei, e andei os dois passos necessários para chegar até ele.
Dei um beijo no Augustus, intenso, imprensando seu corpo contra a parede, e continuei com o beijo enquanto ele vasculhava o bolso à procura da chave do quarto.
* * *
Subimos lentamente na cama, minha liberdade um pouco limitada pelo oxigênio, mas mesmo assim consegui ficar por cima dele e tirar sua camisa. Senti o gosto do suor na pele abaixo da clavícula enquanto
sussurrava, a boca encostada nele:
— Augustus Waters, eu te amo.
Seu corpo relaxou debaixo do meu quando ele me ouviu dizer aquilo. Ele esticou o braço e tentou tirar a minha camiseta, mas ela acabou enrolando no tubo. Eu ri.
* * *
— Como é que você faz isso todos os dias? — ele perguntou enquanto eu desenrolava as coisas.
Tolamente, me dei conta de que minha calcinha rosa não combinava com meu sutiã roxo, como se os garotos reparassem nisso. Eu me enfiei debaixo das cobertas e tirei a calça jeans e as meias, e então fiquei observando a dança do edredom enquanto, debaixo dele, o Augustus tirava primeiro a calça jeans, depois a perna.
* * *
Estávamos deitados de costas, lado a lado, escondidos sob as cobertas. Depois de um segundo, tateei à procura da coxa dele e deixei minha mão seguir para baixo até o cotoco, a pele com a cicatriz grossa. Segurei o cotoco por um tempo. Ele se encolheu.
— Dói? — perguntei.
— Não — ele respondeu.
Ele se virou de lado e me beijou.
— Você é muito sexy — falei, minha mão ainda na perna.
— Estou começando a achar que você tem um fetiche por amputados — ele retrucou, ainda me beijando.
Eu ri.
— Eu tenho um fetiche por Augustus Waters — expliquei.
* * *
A coisa toda foi exatamente o oposto do que eu tinha imaginado: devagar, paciente, silenciosa e nem especialmente dolorosa nem especialmente extasiante. Houve alguns problemas relacionados à camisinha, os quais não perdi muito tempo observando. Nenhuma cabeceira foi quebrada. Nada de gritos. Para ser sincera, aquela foi provavelmente a maior quantidade de tempo que passamos juntos sem falar nada. Só uma coisa seguiu o protocolo: depois que tudo terminou, enquanto eu descansava o rosto no peito dele, ouvindo seu coração bater, o Augustus disse:
— Hazel Grace, não consigo mais manter os olhos abertos. Literalmente.
— Utilização incorreta da literalidade — falei.
— Não — ele disse. — Tão. Cansado.
E virou o rosto para o outro lado, minha orelha apertada contra o peito dele, ouvindo o ruído dos pulmões enquanto entravam no ritmo do sono. Depois de um tempo me levantei, me vesti, achei um papel de carta do Hotel Filosoof e escrevi um bilhete de amor para ele:
Querido Augustus,
Jovens de dezesseis anos com uma perna só
Da sua,
Hazel
Grace
virgens
CAPÍTULO TREZE
a manhã seguinte, nosso último dia inteiro em Amsterdã, mamãe, Augustus e eu andamos o meio quarteirão entre o hotel e o Vondelpark, onde descobrimos um café à sombra do Museu do Cinema Holandês. Tomando lattes — que, nos disse o garçom, eram chamados pelos holandeses de ‚café estragado‛ porque tinham mais leite que café —, nos sentamos à sombra rendada de uma castanheira enorme e contamos à mamãe como foi nosso encontro com o grande Peter Van Houten. Demos um tom engraçado à história. Até onde eu sei, você pode escolher a forma de contar uma história triste nesse mundo, e nós fomos pela opção divertida: o Augustus, afundado na cadeira do café, fingiu ser um Van Houten de língua presa e fala engrolada que nem sequer conseguia levantar da poltrona; eu fiquei de pé para representar a minha versão arrogante e machona, gritando:
— Levante-se, velho gordo e feio!
— Você chamou o Van Houten de feio? — o Augustus perguntou.
— Continue, Gus — falei para ele.
— Nau sou feiu. Você é que é feia, garota do nariz entubado.
— Você é um covarde! — gritei, e o Augustus caiu na gargalhada, saindo do personagem.
Eu me sentei. Contamos para a mamãe da ida à casa da Anne Frank, deixando de fora a parte do beijo.
— Vocês voltaram à casa do Van Houten depois? — a mamãe perguntou.
O Augustus não me deu nem tempo de ficar vermelha.
— Não, nós só ficamos jogando conversa fora num café. E a Hazel desenhou um diagrama de Venn muito bem-humorado para mim.
Ele me olhou. Cara, como ele era sexy.
N
— Parece que foi legal — ela disse. — Bem, vou andar por aí agora. E dar um tempo para vocês conversarem. — Ela olhou para o Gus de um jeito meio incisivo. — Então depois, talvez, nós possamos fazer um passeio de barco pelo canal.
— Ahn, o.k.? — falei.
A mamãe deixou uma nota de cinco euros debaixo do pires, deu um beijo na minha cabeça e sussurrou:
— Eu te amo amo amo.
O que eram dois amos a mais que o normal.
O Gus apontou para as sombras dos galhos se entrecruzando e depois se separando no cimento.
— Lindo, né?
— É — respondi.
— Uma metáfora das boas — ele balbuciou.
— É mesmo? — perguntei.
— A imagem em negativo de coisas sendo unidas pelo vento e depois indo pelos ares — ele falou.
Diante de nós, centenas de pessoas passavam, correndo, andando de bicicleta e de patins. Amsterdã era uma cidade projetada para movimentação e atividades, uma cidade que preferia não viajar de carro, por isso me senti inevitavelmente excluída. Mas, cara, como era linda, o riacho esculpindo um caminho em volta de uma árvore imensa, uma garça-real imóvel à beira d’água, tentando encontrar algo para comer no meio daqueles milhões de pétalas de olmo flutuando.
Mas o Augustus não reparou naquilo. Ele estava muito ocupado observando as sombras se moverem. Por fim, falou:
— Eu poderia ficar o dia todo aqui olhando isso, mas precisamos voltar para o hotel.
Será que teremos tempo? — perguntei.
Ele abriu um sorriso triste.
— Quem me dera — respondeu.
— Qual é o problema? — perguntei.
Ele fez um movimento com a cabeça em direção ao hotel.
* * *
Andamos em silêncio, o Augustus meio passo à minha frente. Meu medo era tanto que eu não conseguia nem perguntar se tinha motivo para ficar com medo. A
Aí existe esse troço chamado Hierarquia de Necessidades de Maslow. Basicamente, um cara chamado Abraham Maslow ficou famoso por sua teoria, que defende que certas necessidades devem ser satisfeitas antes mesmo que se possa ter outros tipos de necessidades. A teoria é representada mais ou menos assim:
HIERARQUIA DE NECESSIDADES DE MASLOW
Logo que suas necessidades de comida e água são atendidas, você passa ao conjunto de necessidades seguinte, que tem a ver com segurança, e então vai para o próximo, e depois para o outro, mas o importante é que, de acordo com Maslow, até que suas necessidades fisiológicas sejam satisfeitas, você não tem nem mesmo como chegar a se preocupar com a necessidade de segurança ou de relacionamentos, quanto mais com a ‚autorrealização‛, que é quando você começa a, tipo, fazer arte e pensar nos princípios morais, na física quântica e em coisas assim.
Segundo Maslow, eu estava empacada no segundo nível da pirâmide, incapaz de sentir segurança na minha saúde e, portanto, incapaz de tentar ir atrás de amor, de respeito, de arte e de mais nada, o que, obviamente, era uma bobagem sem tamanho: o desejo de fazer arte ou de filosofar não
desaparece quando alguém está doente. Esses desejos só ficam transfigurados pela doença.
A pirâmide de Maslow parecia sugerir que eu era menos humana que os outros, e a maioria das pessoas parecia concordar com ele. Mas não o Augustus. Sempre achei que ele poderia me amar porque já esteve doente um dia. Só então me ocorreu que talvez ele ainda estivesse.
* * *
Chegamos ao meu quarto, o Kierkegaard. Eu me sentei na cama esperando que o Gus fosse se juntar a mim, mas ele afundou na cadeira Paisley empoeirada. Aquela cadeira. Quantos anos tinha aquilo? Uns cinquenta?
Senti o nó na garganta apertando enquanto o via tirar um cigarro do maço e colocá-lo nos lábios. Ele se recostou e suspirou.
— Um pouco antes de você ir parar na UTI, comecei a sentir uma dor no quadril.
— Não — falei.
O pânico me invadiu e me arrastou para as profundezas.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Então fui ao hospital fazer uma tomografia.
Ele parou. Tirou o cigarro da boca e trincou os dentes.
Passei a maior parte da minha vida tentando não chorar na frente das pessoas que me amavam, por isso sabia o que o Augustus estava fazendo. Você trinca os dentes. Você olha para cima. Você diz a si mesmo que se eles o virem chorando, aquilo vai magoá-los, e você não vai ser nada mais que Uma Tristeza na vida deles. Você não deve se transformar numa mera tristeza, então não vai chorar, e você diz tudo isso para si mesmo enquanto olha para o teto. Aí engole em seco, mesmo que sua garganta não queira, olha para a pessoa que ama você e sorri.
Ele abriu o sorriso torto e disse:
— Eu acendi como uma árvore de Natal, Hazel Grace. Dentro do tórax, o lado esquerdo do meu quadril, meu fígado, tudo.
Tudo. Aquela palavra ficou suspensa no ar por um tempo. Ambos sabíamos o que significava. Eu me levantei, arrastando meu corpo e o carrinho pelo tapete que era mais velho do que o Augustus jamais seria, me ajoelhei nos pés da cadeira, coloquei minha cabeça no colo dele e abracei sua cintura.
Ele começou a passar a mão no meu cabelo.
— Sinto muito — falei.
— Foi mal eu não ter dito nada para você — ele disse, o tom de voz manso. — Sua mãe deve saber. O jeito como olhou para mim. Minha mãe deve ter contado para ela, ou algo assim. Eu deveria ter contado para você. Foi burrice minha. Egoísmo.
É claro que eu sabia por que o Gus não tinha dito nada: pelo mesmo motivo que não deixei que ele me visse na UTI. Eu não tinha o direito de ficar chateada com ele nem por um instante, e só agora que eu amava uma granada foi que entendi a bobagem que é tentar salvar os outros da minha própria explosão iminente: eu não podia deixar de amar o Augustus Waters. E não queria fazer isso.
— Não é justo — falei. — É tudo tão injusto…
— O mundo não é uma fábrica de realização de desejos — ele retrucou, e então perdeu o controle, só por alguns instantes, seu choro e seus soluços ruídos impotentes como o estrondo de um trovão sem raio, a ferocidade tremenda que os amadores no quesito sofrimento podem tomar erradamente por fraqueza.
Aí ele me puxou mais para perto e, com o rosto a poucos centímetros do meu, decidiu:
— Eu vou lutar contra o câncer. Vou lutar contra o câncer por você. Não se preocupe comigo, Hazel Grace. Estou bem. Vou achar um jeito de continuar por aqui e encher o seu saco por um bom tempo.
Comecei a chorar. Mas mesmo naquele momento ele parecia forte, me dando um abraço apertado para que eu pudesse ver os músculos vigorosos de seus braços em torno de mim quando disse:
— Sinto muito. Você vai ficar bem. Tudo vai ficar bem. Prometo. — Ele abriu aquele sorriso torto, me deu um beijo na testa, e senti seu tórax
poderoso esvaziar só um tiquinho. — Acho que eu tinha uma hamartia, no fim das contas.
* * *
Depois de um tempo eu o puxei até a cama e nós ficamos deitados lá, juntinhos, enquanto ele me contava que havia começado um tratamento paliativo com quimioterapia, mas que tinha desistido de tudo para ir a Amsterdã, mesmo isso tendo deixado seus pais furiosos. Os dois continuaram tentando impedi-lo de viajar até aquela manhã, quando o ouvi gritando que seu corpo lhe pertencia.
— Nós poderíamos ter adiado a viagem — falei.
— Não, não poderíamos — ele retrucou. — De qualquer forma, não estava dando resultado. Dava para sentir que não estava dando certo, sabe? Assenti com a cabeça.
— É uma perda de tempo, a coisa toda — falei.
— Eles vão tentar algo novo quando eu voltar para casa. Eles sempre têm uma ideia nova.
— É — falei, eu mesma já tendo sido a almofada de alfinetes experimental.
— Eu meio que enganei você, levando você a acreditar que estava se apaixonando por uma pessoa saudável — ele falou.
Dei de ombros.
— Eu teria feito o mesmo.
— Não, não teria, mas não dá para todo mundo ser tão incrível como você.
Ele me beijou, e então fez uma careta.
— Dói? — perguntei.
— Não. É só que. — Ele ficou olhando para o teto por um bom tempo antes de dizer: — Eu gosto deste mundo. Gosto de beber champanhe. Gosto de não fumar. Gosto do som de holandeses falando holandês. E agora… Não vou ter nem a chance da batalha. Não vou ter nem a chance da luta.
— Você pode batalhar contra o câncer — falei. — Essa é a sua batalha. E você vai continuar lutando — disse para ele. Odiava quando as pessoas tentavam me encorajar para me preparar para a batalha, mas fiz isso com ele mesmo assim. — Você vai… você vai… viver o melhor da sua vida hoje. Essa é a sua guerra agora.
Eu me odiei por aquele sentimento brega, mas o que mais eu tinha?
— Grande guerra — ele disse com desdém. — Estou em guerra contra o quê? O meu câncer. E o que é o meu câncer? Meu câncer sou eu. Os tumores são feitos de mim. Eles são feitos de mim tanto quanto meu cérebro e meu coração são feitos de mim. É uma guerra civil, Hazel Grace, a gente já sabe quem vai vencer.
— Gus.                                                                              
Não havia mais nada que eu pudesse dizer. Ele era inteligente demais para o tipo de consolo que eu poderia oferecer.
— Está tudo bem. — Mas não estava, e depois de alguns instantes ele disse: — Se você for ao Rijksmuseum, o que eu realmente gostaria de fazer, mas, a quem estamos querendo enganar? Nenhum de nós consegue passar horas andando num museu. Bem, de qualquer forma, dei uma olhada na coleção de pinturas deles pela Internet, antes de virmos. Se você fosse lá, e espero que um dia consiga ir, veria várias pinturas de pessoas mortas. Veria Jesus na cruz, um cara sendo esfaqueado no pescoço, pessoas morrendo no mar, outras numa batalha, e um desfile de mártires. Mas nem. Uma. Criança. Com. Câncer. Sequer. Ninguém batendo as botas por causa da praga, nem da varíola, nem da febre amarela, nem nada, porque não existe glória na doença. Não há propósito nela. Não há honra em se morrer de.
Abraham Maslow, apresento a você o Augustus Waters, cuja curiosidade existencial superou a de seus irmãos bem-alimentados, bem-amados e saudáveis. Enquanto a massa de homens seguia em frente levando vidas totalmente inescrutáveis de consumo descabido, o Augustus Waters examinava a coleção de pinturas do Rijksmuseum a distância.
— O que foi? — o Augustus perguntou após um tempo.
— Nada — respondi. — Só… — Não pude completar a frase. Não
sabia como. — Só gosto muito demais da conta de você.
Ele deu um sorriso torto, o nariz a centímetros do meu.
— A recíproca é verdadeira. Será que daria para você esquecer isso tudo e me tratar como se eu não estivesse morrendo?
— Não acho que você esteja morrendo — falei. — Só acho que você recebeu uma pitada de câncer.
Ele sorriu. Humor negro.
— Estou numa montanha-russa que só vai para cima — falou.
— E é meu privilégio e minha responsabilidade seguir nessa montanha-russa até o topo com você — retruquei.
— Seria totalmente absurdo tentar fazer amor agora?
— Tentativa não há — falei. — Fazer é que há.
CAPÍTULO QUATORZE
o voo de volta para casa, vinte mil pés acima de nuvens que pairavam a dez mil pés do chão, o Gus disse:
— Antigamente eu imaginava que seria divertido morar numa nuvem.
— É — falei. — Como se fosse, tipo, um pula-pula inflável, só que para sempre.
— Mas, então, na aula de ciências do ensino fundamental, o Sr. Martinez perguntou quem de nós já havia fantasiado em morar nas nuvens, e todo mundo levantou a mão. Aí o Sr. Martinez nos contou que a velocidade do vento nas nuvens é de duzentos e quarenta quilômetros por hora, que a temperatura gira em torno de trinta graus negativos, que nelas não há oxigênio e que todos morreríamos em poucos segundos.
— Ele parece um cara legal.
— Só digo uma coisa: ele era especialista em arruinar sonhos, Hazel Grace. Você acha que os vulcões são incríveis? Diga isso aos dez mil cadáveres berrando em Pompeia. Lá no fundo você ainda acredita que haja uma aura de mágica neste mundo? São apenas moléculas desalmadas colidindo umas com as outras aleatoriamente. Você se preocupa com quem vai cuidar de você se seus pais morrerem? Pois deveria mesmo, porque eles virarão comida de verme na completude do tempo.
— A ignorância é uma bênção — falei.
Uma comissária de bordo cruzava o corredor empurrando o carrinho de bebidas, sussurrando:
— Bebida? Bebida? Bebida? Bebida?
O Gus inclinou o corpo por cima de mim, levantando a mão.
— Será que você poderia nos servir champanhe?
— Vocês têm vinte e um anos? — ela perguntou, meio desconfiada.
N
Ajeitei o cateter no nariz de um jeito que ela visse. A comissária sorriu, e então olhou para a minha mãe, que dormia. — Ela não vai achar ruim?
— Nem um pouquinho — respondi.
Então ela serviu um pouco de champanhe em dois copos de plástico. Privilégios do Câncer.
O Gus e eu fizemos um brinde.
— A você — ele disse.
— A você — falei, encostando meu copo no dele.
Tomamos um gole. Estrelas não tão perceptíveis quando comparadas às que tomamos no Oranjee, mas ainda assim boas o bastante para serem apreciadas.
— Sabe — o Gus disse para mim —, tudo o que o Van Houten falou era verdade.
— Talvez, mas ele não precisava ter sido um idiota tão completo. Não acredito que ele imaginou um futuro para Sísifo, o hamster, mas não para a mãe da Anna.
O Augustus deu de ombros. E pareceu sair do ar de repente.
— Você está bem? — perguntei.
Ele balançou a cabeça num movimento microscópico.
— Dói — ele disse.
— O peito?
Ele assentiu. Punhos cerrados. Um tempo depois, ele descreveu aquela dor como sendo a de um homem de uma perna só, calçado com um salto agulha, de pé no meio do tórax dele. Retornei minha bandeja à posição vertical e me inclinei para a frente a fim de procurar analgésicos na mochila dele. Ele tomou um comprimido com champanhe.
— Tudo bem? — perguntei de novo.
O Gus ficou só sentado ali, abrindo e fechando o punho, esperando que o analgésico fizesse efeito, o remédio que não acabava bem com a dor, apenas distanciava o Gus dela (e de mim).
— Parecia que era pessoal — o Gus disse, baixinho. — Como se ele estivesse com raiva de nós dois por algum motivo. O Van Houten, digo.
Ele bebeu o resto do champanhe de uma vez só e logo pegou no sono.
* * *
Meu pai estava esperando por nós na área de desembarque, em meio aos motoristas de limusine de terno que seguravam placas com os sobrenomes de seus passageiros: JOHNSON, BARRINGTON, CARMICHAEL. Papai tinha a própria placa. MINHA FAMÍLIA LINDA, dizia, e logo abaixo: (E GUS).
Abracei o papai e ele começou a chorar (claro). Na volta de carro para casa, o Gus e eu lhe contamos as histórias de Amsterdã, mas só depois que eu já estava em casa, conectada ao Felipe, assistindo aos bons e velhos programas de televisão norte-americanos com o papai e comendo pizza norte-americana com guardanapos no colo, foi que contei a ele do Gus.
— Gus teve uma recorrência — falei.
— Eu sei — ele disse.
Chegou mais para perto de mim e acrescentou:
— A mãe dele nos contou antes da viagem. Sinto muito por ele ter escondido isso de você. Eu… Eu sinto muito, Hazel. — E não disse mais nada por um bom tempo.
O programa que estávamos vendo era sobre pessoas que tentam escolher que casa vão comprar.
— Eu li o Uma aflição imperial enquanto vocês estavam viajando — o papai disse.
Virei a cabeça na direção dele.
— Ah, que legal. E o que achou?
— Achei bom. Um pouco demais para a minha cabeça. Eu me formei em bioquímica, se você bem se lembra, não em literatura. Realmente acho que a história deveria ter tido um fim.
— É — falei. — Essa é uma reclamação recorrente.
— Além do mais, o livro era um pouco pessimista — ele disse. — Um pouco derrotista.
— Se com derrotista você quer dizer honesto, então concordo com você.
— Não acho que o derrotismo tenha a ver com honestidade — o papai
retrucou. — Eu me recuso a aceitar isso.
— Então tudo acontece por uma razão e nós todos vamos viver nas nuvens e tocar harpa e morar em mansões celestiais?
Ele sorriu. E me envolveu com seu braço comprido e me puxou mais para perto, dando um beijo na lateral da minha cabeça.
— Não sei no que eu acredito, Hazel. Eu achava que ser adulto significava saber em que você acredita, mas não tem sido bem assim para mim.
— É — falei. — Tudo bem.
Ele me disse de novo que sentia muito pelo Gus, e nós continuamos a ver o programa. As pessoas escolheram uma casa, o papai com o braço ainda em volta de mim, e eu meio que comecei a pegar no sono, mas não queria dormir ainda. Então, papai disse:
— Você sabe em que eu acredito? Eu me lembro de quando estava na faculdade, durante uma aula de matemática, uma aula de matemática realmente fantástica dada por uma professora idosa e baixinha. Ela falava das transformações rápidas de Fourier, mas parou no meio de uma frase e disse: ‚Às vezes parece que o universo quer ser notado.‛ É nisso que eu acredito. Acredito que o universo quer ser notado. Acho que o universo é, questionavelmente, tendencioso para a consciência, que premia a inteligência em parte porque gosta que sua elegância seja observada. E quem sou eu, vivendo no meio da história, para dizer ao universo que ele, ou a minha observação dele, é temporária?
— Você é razoavelmente inteligente — falei, depois de um tempo.
— Você é razoavelmente boa com elogios — ele retrucou.
* * *
No dia seguinte à tarde, fui de carro até a casa do Gus e lanchei sanduíches de manteiga de amendoim e geleia com os pais dele. Contei as histórias de Amsterdã enquanto o Gus cochilava no sofá da sala de estar, onde tínhamos assistido ao V de Vingança. Dava para vê-lo da cozinha: deitado de costas, o rosto virado para o outro lado, um PICC já em ação.
Eles estavam atacando o câncer com um novo coquetel: duas substâncias quimioterápicas e um receptor de proteína que, eles esperavam, desligaria o oncogene no câncer do Gus. Ele teve sorte de conseguir participar do experimento, me disseram. Sorte. Eu já conhecia uma daquelas substâncias. Só de ouvir o nome dela fiquei com vontade de vomitar.
Depois de um tempo, a mãe do Isaac o levou para visitar o Gus.
— Oi, Isaac, sou eu, a Hazel, do Grupo de Apoio, e não a sua ex-namorada do mal.
A mãe do Isaac o guiou até mim, eu levantei da cadeira da mesa de jantar e o abracei, o corpo dele levando alguns instantes para me encontrar antes de me abraçar de verdade, um abraço forte.
— Como foi lá em Amsterdã? — ele perguntou.
— Incrível — respondi.
— Waters — ele falou. — Cadê você, irmão?
— Ele está tirando um cochilo — eu disse, e minha garganta travou.
O Isaac balançou a cabeça, o restante de nós permaneceu sem silêncio. — Que droga! — o Isaac falou depois de um segundo.
A mãe dele o levou até uma cadeira que ela havia puxado. Ele se sentou.
— Eu ainda consigo mandar no seu traseiro cego no Counterinsurgence — o Augustus disse sem se virar para nós.
O remédio deixava a fala dele um pouco lenta, mas aquela velocidade equivalia à de uma pessoa normal.
— Eu tenho quase certeza de que todos os traseiros são cegos — o Isaac respondeu, estendendo a mão no ar sem rumo, procurando a mãe.
Ela o segurou, ajudou-o a se levantar e eles andaram juntos até o sofá, onde o Gus e o Isaac deram um abraço meio sem jeito.
— Como está se sentindo? — o Isaac perguntou.
— Tudo tem gosto de moeda. Fora isso, estou numa montanha-russa que só vai para cima, garoto — o Gus respondeu. O Isaac riu. — Como estão seus olhos?
— Ah, excelentes — ele disse. — Quer dizer, o fato de não estarem no meu rosto é o único problema.
— Maravilha — o Gus falou. — Não é que eu queira ser melhor que você nem nada, mas meu corpo é feito de câncer.
— Pois é, ouvi dizer — o Isaac falou, tentando não deixar que aquilo o afetasse.
Tateou à procura da mão do Gus mas só achou a coxa dele.
— Estou tomado — disse o Gus.
* * *
A mãe do Isaac pegou duas cadeiras, e o Isaac e eu nos sentamos perto do Gus. Peguei a mão do Gus e fiquei fazendo carinho no espaço entre o polegar e o indicador, em círculos.
Os adultos foram todos para o porão a fim de se lamentar ou coisa do gênero, deixando nós três sozinhos na sala de estar. Depois de um tempo, o Augustus virou a cabeça para nós, o despertar lento.
— Como está a Monica? — ele perguntou.
— Não deu nenhuma notícia — o Isaac respondeu. — Nenhum cartão; nenhum e-mail. Eu tenho uma máquina que lê meus e-mails para mim. É muito maneira. Dá para alterar o tipo de voz, de homem ou de mulher, além do sotaque, e tal.
— Então eu posso, tipo, mandar um texto pornô e você consegue fazer um velho alemão ler?
— Exatamente — o Isaac disse. — O único problema é que a mamãe ainda precisa me ajudar com a máquina, então talvez seja melhor segurar a onda da pornografia alemã por uma ou duas semanas.
— Ela nem mandou, tipo, um torpedo para perguntar como está indo? — questionei.
Aquilo me pareceu uma injustiça sem precedentes.
— Silêncio de rádio total — o Isaac disse.
— Ridículo — falei.
— Já parei de pensar nisso. Não tenho tempo para namoradas. Arranjei um emprego de expediente integral Aprendendo a Ser Cego.
O Gus virou de novo a cabeça para o outro lado e ficou olhando, pela
janela, para o terraço no quintal da casa. Seus olhos se fecharam. O Isaac perguntou como eu estava, respondi que bem, e ele me contou que havia uma garota nova no Grupo de Apoio com uma voz bastante sensual e que ele precisava que eu fosse lá para confirmar se ela era mesmo sensual. Aí, do nada, o Augustus disse:
— Você não pode simplesmente não falar com seu ex-namorado depois de os olhos dele terem sido arrancados do raio do rosto dele.
— Apenas um dos…. — o Isaac começou.
— Hazel Grace, você tem quatro dólares? — o Gus perguntou.
— Humm — falei. — Tenho.
— Excelente. Você vai encontrar minha perna debaixo da mesa de café — ele falou.
O Gus empurrou o corpo para cima, se sentando, e chegou para a beirada do sofá. Entreguei para ele a prótese; ele a acoplou quase em câmera lenta.
Ajudei o Gus a ficar de pé e ofereci o braço ao Isaac, e fui guiando ele na transposição dos móveis que, de repente, pareciam estar todos no meio do caminho — e percebi que, pela primeira vez em vários anos, eu era a pessoa mais saudável no ambiente.
Eu dirigi. O Augustus foi no banco do carona. O Isaac, no banco de trás. Paramos numa loja de conveniência onde, seguindo instruções expressas do Augustus, comprei uma dúzia de ovos enquanto ele e o Isaac esperavam no carro. E então o Isaac nos guiou, usando a memória, até a casa da Monica, uma casa de dois andares excessivamente estéril perto do Centro da Comunidade Judaica. O Pontiac Firebird verde-esmeralda da década de 1990, com suas rodas largas, estava parado na entrada de veículos.
— O carro dela está aí? — o Isaac perguntou quando sentiu que eu estava freando para parar.
— Ah, se está — o Augustus disse. — Você sabe com o que ele se parece, Isaac? Ele se parece com todas as esperanças que fomos tolos em alimentar.
— Então ela está lá dentro?
O Gus virou a cabeça lentamente a fim de olhar para o Isaac.
— Quem se importa com onde ela está? Isso não tem nada a ver com ela. Isso tem a ver com você.
O Gus segurou a caixa de ovos no colo, abriu a porta e puxou as pernas para fora, para a rua. Ele abriu a porta para o Isaac, e eu fiquei olhando pelo retrovisor enquanto o Gus o ajudava a sair do carro, os dois se apoiando um no outro na linha do ombro, o resto do corpo mais afastado, como se fossem duas mãos em oração sem que as palmas se encostassem.
Abaixei o vidro e fiquei assistindo a tudo do carro, porque vandalismo me deixava nervosa. Eles deram alguns passos em direção ao carro da Monica, e então o Gus abriu a caixa de ovos e entregou um para o amigo. O Isaac o atirou, errando o carro por uns bons doze metros.
— Um pouco para a esquerda — o Gus disse.
— Meu lançamento foi um pouco para a esquerda ou eu preciso mirar um pouco para a esquerda?
— Mire para a esquerda. — O Isaac girou os ombros. — Mais para a esquerda — o Gus disse. O Isaac girou de novo. — Isso. Excelente. Agora atire com vontade.
O Gus deu a ele outro ovo, que o Isaac atirou, fazendo um arco sobre o carro e se estraçalhando no telhado em declive da casa.
— No alvo! — o Gus disse.
— Sério? — o Isaac perguntou, empolgado.
— Não, você atirou o ovo uns seis metros acima do carro. Atire com vontade, só que mais para baixo. E um pouco mais à direita de onde você estava da última vez.
O Isaac esticou a mão e pegou sozinho um ovo da caixa que o Gus segurava. Ele o atirou, acertando a lanterna traseira.
— Isso! — o Gus disse. — Isso! Lanterna!
O Isaac pegou outro ovo, errou um bocado para a direita, depois outro, errando para baixo, e então mais um, acertando o para-brisa traseiro. E aí emplacou três ovos seguidos na mala do carro.
— Hazel Grace — o Gus gritou para trás. — Tire uma foto para que o
Isaac possa ver isso quando inventarem olhos robóticos.
Ergui o corpo e me sentei na janela com o vidro abaixado, meus cotovelos no teto do carro, e tirei uma foto com o celular: o Augustus, o cigarro apagado na boca, seu sorriso deliciosamente torto, segurando a caixa de ovos cor-de-rosa basicamente vazia no alto da cabeça. Seu outro braço nos ombros do Isaac, cujos óculos escuros não estão exatamente virados para a câmera. Atrás deles, gemas de ovo escorrem pelo para-brisa e pelo para-choque do Firebird verde. E atrás de tudo, uma porta que se abre.
— O que — perguntou a mulher de meia-idade um segundo depois de eu tirar a foto —, em nome de Jesus… — E então parou de falar.
— Senhora — o Augustus disse, balançando a cabeça e olhando para ela —, o carro da sua filha acabou de ser merecidamente coberto de ovos por um cego. Feche a porta, por favor, e volte para dentro de casa, senão seremos forçados a chamar a polícia.
Depois de hesitar por alguns instantes, a mãe da Monica fechou a porta e desapareceu. O Isaac atirou os últimos três ovos um atrás do outro e o Gus o guiou de volta ao carro.
— Viu, Isaac, se você simplesmente tirar… estamos chegando perto do meio-fio agora… deles a sensação de legitimidade, se você inverter as coisas para que achem que são eles que estão cometendo um crime só de ver… só mais alguns passos… os carros sendo cobertos de ovos, eles ficarão confusos, assustados e com medo, e simplesmente voltarão… a maçaneta da porta está bem à sua frente… à vida tediosa deles.
O Gus passou apressado pela frente do carro e se aboletou no banco do carona. As portas se fecharam e eu acelerei, dirigindo várias dezenas de metros antes de me dar conta de que tinha ido na direção de uma rua sem saída. Fiz a volta no cul-de-sac e passei voada pela casa da Monica.
Nunca mais tirei outra foto dele.

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