segunda-feira, 3 de junho de 2013

A culpa é das estrelas- John Green- Parte 3

— Eu não deveria — ela respondeu —, mas sou rebelde. — E me deu outra colherada do gelo triturado.
Murmurei um ‚obrigada‛. Graças a Deus pelas boas enfermeiras.
— Está ficando cansada? — ela perguntou.
Fiz que sim.
— Durma um pouco — ela completou. — Vou tentar mexer uns pauzinhos e lhe dar algumas horas antes que entre alguém para verificar seus sinais vitais e coisas do gênero.
Agradeci mais uma vez. Em hospitais, você agradece o tempo todo. Tentei me ajeitar no leito.
— Você não vai perguntar nada sobre seu namorado? — ela me questionou.
— Eu não tenho namorado — falei.
— Bem, um garoto mal saiu da sala de espera desde que você chegou aqui — ela disse.
— Ele não me viu assim, viu?
— Não. Só a família.
Assenti com a cabeça e mergulhei num sono aquoso.
* * *
Ainda faltariam seis dias para eu voltar para casa, seis dias perdidos olhando para o isolamento acústico no teto, vendo televisão, dormindo, sentindo dor e querendo que o tempo passasse logo. Não vi o Augustus nem ninguém além dos meus pais. Meu cabelo parecia um ninho de passarinho; meu passo de cágado, o de um paciente com demência. Mas a cada dia me sentia ligeiramente melhor: cada sono acabava revelando uma criatura que se parecia um pouco mais comigo. O sono combate o câncer, disse meu médico, Jim, pela milésima vez quando pairou sobre mim certa manhã, rodeado por um grupo de estudantes de medicina.
— Então eu sou uma máquina de combate ao câncer — disse para ele.
— Isso você é mesmo, Hazel. Continue descansando e, com sorte, poderemos mandá-la para casa logo.
* * *
Na terça-feira, eles me disseram que eu iria para casa na quarta. Na quarta, dois residentes minimamente supervisionados removeram o dreno do meu tórax. A sensação foi de estar levando uma facada de dentro para fora, o que, no fim das contas, não saiu como deveria, por isso eles decidiram que eu teria de ficar até quinta. Já estava começando a pensar que eu era objeto de algum experimento existencialista de gratificação postergada em modo contínuo quando, na sexta-feira de manhã, a Dra. Maria apareceu, me farejou por um minuto e me disse que eu poderia ir embora.
Aí a mamãe abriu sua enorme bolsa e mostrou que lá dentro estavam, desde sempre, minhas Roupas de Ir Para Casa. Uma enfermeira veio e retirou os aparatos da terapia intravenosa. Eu me senti livre, mesmo ainda tendo de carregar o cilindro de oxigênio para todo lado. Entrei no banheiro, tomei meu primeiro banho em uma semana e me vesti. Quando saí, estava tão cansada que tive de deitar para recuperar o fôlego.
— Você quer ver o Augustus? — minha mãe perguntou.
— Pode ser — respondi, após alguns instantes.
Eu me levantei e me transferi para uma das cadeiras de plástico encostadas na parede, enfiando o cilindro debaixo dela. Aquilo acabou comigo.
Papai voltou com o Augustus minutos depois. O cabelo dele estava bagunçado, caindo na testa. Seu rosto se iluminou com um legítimo Sorriso Bobo à la Augustus Waters quando me viu, e também não consegui evitar um sorriso. Gus se sentou na poltrona reclinável azul de couro falso que estava perto da minha cadeira. Ele se inclinou para a frente, se aproximando de mim, aparentemente incapaz de conter o sorriso.
Mamãe e papai nos deixaram sozinhos, o que foi meio constrangedor. Eu me esforcei para olhar nos olhos dele, embora fossem tão lindos que eram quase impossíveis de encarar.
— Estava com saudade de você — o Augustus disse.
Minha voz saiu mais baixa do que eu gostaria.
— Obrigada por não tentar me ver quando eu parecia ter saído do inferno.
— Para falar a verdade, sua aparência ainda não está lá essas coisas.
Eu ri.
— Senti saudade de você também. Só não quero que você veja… tudo isso. Só quero, tipo… Não tem importância. Não é sempre que a gente pode ter o que quer.
— Sério? — ele perguntou. — Sempre pensei que o mundo fosse uma fábrica de realização de desejos.
— Acontece que não é esse o caso — falei. Ele era tão belo… Levantou a mão para pegar a minha mas eu balancei a cabeça negativamente. — Não — falei baixinho. — Se vamos ficar juntos, tem de ser, tipo, não assim.
— Tá — ele disse.
— Bem, eu tenho boas e más notícias no campo da realização de desejos.
— Então? — falei.
— A má notícia é que, obviamente, não vamos poder ir a Amsterdã
até você melhorar. Mas os Gênios vão executar a famosa magia deles quando estiver se sentindo bem o suficiente.
— Essa é a boa notícia?
— Não. A boa notícia é que, enquanto você dormia, Peter Van Houten compartilhou um pouco mais de sua mente genial conosco. Ele aproximou a mão da minha de novo, dessa vez para colocar nela uma folha bem dobrada, um papel timbrado sob o nome de Peter Van Houten, Romancista Emérito.
* * *
Não li a carta até entrar em casa e deitar na minha enorme cama vazia, sem qualquer chance de interrupção médica. Levei horas tentando decifrar a escrita inclinada e garranchosa de Van Houten.
Caro Sr. Waters,
Acabei de receber sua correspondência eletrônica com data de 14 de abril e estou devidamente impressionado com a complexidade shakespeariana de seu drama. Todos nessa história têm uma harmatia sólida como uma rocha: a dela, estar tão doente; a sua, estar tão bem. Se ela estivesse melhor ou o senhor, mais doente, então as estrelas não estariam tão terrivelmente cruzadas, mas é da natureza das estrelas se cruzar, e nunca Shakespeare esteve tão equivocado como quando fez Cássio declarar: ‚A culpa, meu caro Bruto, não é de nossas estrelas / Mas de nós mesmos.‛ Fácil falar quando se é um nobre romano (ou Shakespeare!), mas não há qualquer escassez de culpa em meio às nossas estrelas.
Permanecendo no assunto das falhas do bom e velho William, seu texto acerca da jovem Hazel me fez recordar o soneto cinquenta e cinco do bardo, que, como o senhor deve saber, começa assim: ‚Nem o mármore, nem os áureos mausoléus / De reis hão de durar mais que meu verso ardente; / Mas nele brilhareis mais refulgentemente / Do que a pedra
largada aos ultrajes do tempo.‛ (Fugindo um pouco do assunto, mas: que meretriz é o tempo. Nos fode a todos.) É um lindo poema, porém, enganoso: com certeza, nos lembramos dos versos ardentes de Shakespeare, mas o que temos em mente sobre a pessoa que ele homenageia? Nada. Temos quase certeza de que se trata de um homem; tudo mais é suposição. Shakespeare nos revelou muito pouco sobre o homem que sepultou em seu sarcófago linguístico. (Perceba também que, quando falamos de literatura, o fazemos no tempo presente. Quando falamos dos mortos, não somos tão generosos.) Não se imortaliza a perda escrevendo sobre eles. A escrita enterra, mas não ressuscita. (Declaração total e irrestrita: não sou o primeiro a fazer esta observação. Cf. o poema de MacLeish ‚Nem o mármore, nem os áureos mausoléus‚, que contém o verso heroico: ‚Direi que morrerás e não se lembrarão de teu passado.‛)
Estou a divagar, mas eis a falha: os mortos são visíveis apenas através do terrível olho vigilante da memória. Os vivos, graças aos céus, mantêm a capacidade de surpreender e de decepcionar. Sua Hazel está viva, Waters, e o senhor não deve impor sua vontade sobre a decisão de outrem, em particular uma decisão que foi tomada após muita ponderação. Ela deseja salvaguardá-lo da dor, e o senhor deve deixar que ela assim o faça. É possível que não ache a lógica da jovem Hazel persuasiva, mas tenho atravessado esse vale de lágrimas há mais tempo que o senhor e, do meu ponto de vista, não é ela a lunática.
Atenciosamente,
Peter Van Houten
Tinha sido mesmo escrita por ele. Lambi o dedo, umedeci o papel e a tinta borrou um pouco, e foi assim que soube que era verdadeiramente verdadeira.
— Mãe — disse.
Não falei muito alto, mas não precisava mesmo. Ela estava sempre à espera. Sua cabeça apareceu por trás da porta.
— Está tudo bem, querida?
— Podemos ligar para a Dra. Maria e perguntar se uma viagem internacional me mataria?
CAPÍTULO OITO
ós tivemos uma grande Reunião da Equipe do Câncer alguns dias depois. De vez em quando, médicos, assistentes sociais, fisioterapeutas e várias outras pessoas se reuniam em volta de uma mesa enorme numa sala de reunião e debatiam a minha situação. (Não a situação do Augustus Waters, nem a situação de Amsterdã. A situação do câncer.)
A Dra. Maria liderava a reunião. Ela me abraçou quando cheguei lá. Ela adorava abraçar.
Eu me sentia um pouco melhor, acho. Dormir com o BiPAP a noite toda fazia meus pulmões parecerem quase normais, embora, pensando bem, eu não me lembrasse direito de como era a normalidade pulmonar.
Todos chegaram lá e fizeram uma grande demonstração de como aquela reunião seria totalmente focada em mim ao desligarem seus pagers e tudo mais, e então a Dra. Maria disse:
— Bem, a boa notícia é que o Falanxifor continua a controlar a evolução do tumor, mas obviamente ainda estamos vendo sérios problemas com a acumulação de líquido. Então, a questão é: como devemos proceder?
E aí ela simplesmente olhou para mim, como se esperasse uma resposta.
— Humm — falei. — Acho que não sou a pessoa mais qualificada nesta sala para responder a essa pergunta.
Ela sorriu.
— Certo. Eu estava esperando a resposta do Dr. Simons. Dr. Simons?
Ele era outro médico de câncer de algum tipo.
— Bem, nós sabemos, pela experiência com outros pacientes, que a maioria dos tumores acaba achando um jeito de evoluir apesar do
N
Falanxifor, mas se fosse esse o caso, veríamos o crescimento do tumor nos exames de imagem, e não foi o que vimos. Portanto, ainda não se trata disso.
Ainda, pensei.
O Dr. Simons batia na mesa com o indicador.
— O consenso aqui é que é possível que o Falanxifor esteja piorando o edema, mas nós depararíamos com problemas muito mais sérios se descontinuássemos seu uso.
A Dra. Maria acrescentou:
— Não conhecemos os efeitos reais do Falanxifor após muitos anos de uso. Pouquíssimas pessoas vêm se tratando com ele a mesma quantidade de tempo que você.
— Então não vamos fazer nada?
— Vamos continuar com esse procedimento — a Dra. Maria disse —, mas precisaremos nos esforçar mais para evitar a piora do edema.
Fiquei meio enjoada por algum motivo que não sei qual, como se fosse vomitar. Eu odiava as Reuniões da Equipe do Câncer, em geral, mas odiei essa especialmente.
— Seu câncer não vai sumir daí, Hazel. Mas já vimos pessoas viverem com o mesmo nível de penetração tumoral por muito tempo.
(Eu não perguntei o que constituía o ‚muito tempo‛. Já havia cometido este erro antes.)
— Sei que, por ter acabado de sair da UTI, a sensação é outra, mas esse líquido é, pelo menos por enquanto, administrável — ela concluiu.
— Não dá para simplesmente eu fazer tipo um transplante ou algo assim? — perguntei.
Os lábios da Dra. Maria sumiram para dentro da boca.
— Infelizmente, você não seria considerada uma forte candidata para um transplante — ela disse.
E eu entendi: não fazia sentido desperdiçar pulmões bons em um caso perdido. Assenti com a cabeça, tentando não deixar transparecer que aquele comentário havia me magoado. Meu pai começou a chorar baixinho. Não olhei para ele, mas ninguém disse nada por um bom tempo,
e então o choro dele era o único ruído sendo emitido naquela sala. Eu odiava fazê-lo sofrer. A maior parte do tempo, conseguia não me lembrar disso, mas a verdade inexorável era: eles podiam estar felizes por me ter por perto, mas eu era o alfa e o ômega no sofrimento dos meus pais.
* * *
Logo antes do Milagre, quando eu estava na UTI e parecia que ia morrer, e a mamãe ficava me dizendo que estava tudo bem, que eu poderia descansar em paz — e eu bem que tentava descansar em paz, mas meus pulmões continuavam procurando pelo ar —, a mamãe soluçou algo no peito do papai que eu preferiria não ter ouvido, e esperava que ela nunca descobrisse que eu ouvi. Ela falou: ‚Eu vou deixar de ser mãe.‛ Isso arrasou comigo.
Não consegui parar de pensar nesse episódio durante toda a Reunião da Equipe do Câncer. Não conseguia tirá-lo da cabeça, o som da voz dela quando disse a frase, como se nunca mais fosse ficar bem de novo, o que provavelmente aconteceria.
* * *
Enfim, acabamos resolvendo manter as coisas do jeito que estavam, a única diferença sendo as drenagens mais frequentes do líquido. Ao término da reunião, perguntei se poderia viajar para Amsterdã, e o Dr. Simons riu, literalmente, mas a Dra. Maria perguntou:
— Por que não?
O Simons questionou, meio hesitante:
— Por que não?!
E a Dra. Maria completou:
— É. Eu não vejo por que não. Eles têm oxigênio nos aviões, no fim das contas.
O Dr. Simons disse:
— Quer dizer que eles vão despachar um BiPAP?
E a Maria respondeu:
— Sim. Ou vão ter um lá esperando por ela.
— Colocar uma paciente, nada menos que um dos sobreviventes mais promissores do Falanxifor, a oito horas de voo da única médica intimamente familiarizada com o caso dela? É a receita para um desastre.
A Dra. Maria deu de ombros:
— Aumentaria alguns riscos — ela reconheceu, e depois virou para mim e completou:
— Mas é a vida dela.
* * *
Só que, nem tanto. No carro, na volta para casa, meus pais decidiram: eu não iria a Amsterdã a menos, e até, que houvesse um consenso entre os médicos de que seria seguro para mim.
* * *
O Augustus me ligou naquela noite depois do jantar. Eu já estava na cama — meu toque de recolher havia mudado provisoriamente para logo depois do jantar —, apoiada num zilhão de travesseiros, o Azulzinho do lado, computador no colo. Atendi falando logo:
— Má notícia.
E ele disse:
— Merda. O que aconteceu?
— Não posso ir a Amsterdã. Um dos meus médicos não acha que seja uma boa ideia.
Ele ficou calado por um instante.
— Cara — disse, por fim. — Eu deveria ter pago a viagem com o meu dinheiro. Deveria ter levado você direto dos Ossos Maneiros para Amsterdã.
— Mas aí eu provavelmente teria tido um episódio fatal de desoxigenação em Amsterdã, e meu corpo teria sido despachado de volta
no compartimento de carga do avião — falei.
— É, pode ser — ele disse. — Mas, antes disso, meu gesto extremamente romântico com certeza teria levado você direto para a minha cama.
Eu ri muito, tanto que até senti dor no ponto em que o dreno torácico tinha estado.
— Você ri porque sabe que é verdade — ele disse e eu ri de novo. — É verdade, não é?!
— Provavelmente não — falei e, depois de alguns instantes, acrescentei: — Mas, nunca se sabe.
Ele gemeu, em ânsias:
— Eu vou morrer virgem — falou.
— Você é virgem? — perguntei, surpresa.
— Hazel Grace — ele disse —, você tem uma caneta e uma folha de papel? — Respondi que tinha. — Então tá. Desenhe um círculo, por favor. — Desenhei. — Agora faça um círculo menor dentro dele. — Obedeci. — O círculo maior representa os virgens. O círculo menor é composto por jovens de dezessete anos com uma perna só.
Ri mais uma vez e argumentei que o fato de a maior parte das atividades sociais dele ocorrerem num hospital pediátrico também não ajudava muito no quesito promiscuidade. Aí falamos sobre o comentário extremamente genial de Peter Van Houten quanto à meretricidade do tempo e, mesmo eu estando na minha cama e o Augustus, no porão dele, realmente deu a impressão de que estávamos de volta àquela terceira dimensão invisível, lugar que gostei muito de visitar na companhia dele.
Depois que desliguei o telefone, minha mãe e meu pai entraram no meu quarto e, mesmo a minha cama não sendo grande o suficiente para nós três, eles se deitaram comigo, cada um de um lado, e todos assistimos ao ANTM na minha televisãozinha. A garota de quem eu não gostava, Selena, tinha sido eliminada do programa, o que por algum motivo me deixou bastante satisfeita. Então mamãe me conectou ao BiPAP e ajeitou as cobertas em cima de mim, papai beijou minha testa, um beijo arranhado, de barba malfeita, e, por fim, fechei os olhos. Basicamente, o

que o BiPAP fazia era assumir o controle da minha respiração, o que era muito incômodo, mas o grande barato era o barulho que fazia, ressoando a cada inspiração e chiando quando eu expirava.
Eu ficava pensando que aquele som parecia o de um dragão respirando ao mesmo tempo que eu, como se eu tivesse um dragão como bicho de estimação, aninhado junto a mim, e que se importava tanto comigo que até sincronizava sua respiração com a minha. Estava pensando nisso quando mergulhei num sono profundo.
* * *
Acordei tarde na manhã seguinte. Vi televisão ainda na cama, li meus e-mails e, depois de um tempo, comecei a rascunhar uma mensagem para o Peter Van Houten contando por que não conseguiria ir a Amsterdã, mas dizendo que jurava pela vida da minha mãe que nunca compartilharia qualquer informação sobre os personagens com ninguém, que eu nem queria dividir isso com ninguém, porque eu era uma pessoa incrivelmente egoísta, e que, por favor, será que ele poderia me dizer se o Homem das Tulipas Holandês é ou não um vigarista e se a mãe da Anna se casa com ele e, também, o que aconteceu com Sísifo, o hamster?
Mas não enviei. Era patético demais, até para mim.
Lá pelas três da tarde, imaginando que o Augustus já teria chegado em casa da escola, fui até o quintal e liguei para ele. Enquanto o telefone tocava me sentei na grama, que já estava bem alta e apinhada de dentes-de-leão. O balanço ainda estava lá, ervas daninhas brotando da pequena vala que eu havia criado com os pés ao me impulsionar cada vez mais alto quando era bem novinha. Lembrei do dia em que papai trouxe para casa o kit de balanço da Toys ‚R‛ Us e montou aquele aparato no quintal com a ajuda de um vizinho. Ele insistiu em se balançar primeiro para testar a resistência do brinquedo, e o troço quase quebrou todo.
O céu estava cinzento e nublado, mas não chovia ainda. Desliguei quando ouvi a voz do Augustus na saudação da caixa postal e coloquei o telefone no chão ao meu lado. Continuei olhando para o balanço,
pensando que eu abriria mão de todos os dias doentes que me restavam em troca de uns poucos saudáveis. Tentei me convencer de que poderia ser pior, que o mundo não era uma fábrica de realização de desejos, que eu estava vivendo com câncer e não morrendo por causa dele, que eu não deveria deixar que ele me matasse antes da hora, e aí comecei a murmurar idiota idiota idiota idiota idiota idiota sem parar até que o som da palavra se desassociou do seu significado. Ainda estava repetindo quando ele retornou a minha ligação.
— Oi — falei.
— Hazel Grace — ele disse.
— Oi — falei de novo.
— Você está chorando, Hazel Grace?
— Mais ou menos.
— Por quê? — ele perguntou.
— Porque eu… eu quero ir a Amsterdã, quero que ele me diga o que acontece depois que o livro acaba, e simplesmente não quero mais essa vida, e, além disso, o céu está me deixando deprimida, e tem esse velho balanço aqui que meu pai montou para mim quando eu era criança.
— Preciso ver esse velho balanço de lágrimas imediatamente — ele disse. — Chego aí em vinte minutos.
* * *
Continuei no quintal porque minha mãe sempre ficava muito angustiada e preocupada quando eu chorava, já que eu não chorava com frequência, e sabia que ela ia querer conversar e debater se eu não deveria considerar fazer alterações nos meus remédios, e só de pensar na possibilidade dessa conversa toda fiquei com vontade de vomitar.
Não que eu tivesse uma lembrança clara e comovente de um pai saudável empurrando uma criança saudável no balanço e a criança dizendo mais alto mais alto mais alto, ou de algum outro momento metaforicamente ressonante. O balanço só estava lá, abandonado, as duas cadeirinhas, imóveis e tristes, penduradas de uma tábua acinzentada de
madeira, o formato dos assentos parecendo o traço de um sorriso feito por uma criança.
Atrás de mim, ouvi o ruído da porta de correr de vidro se abrindo. Virei o corpo. Era o Augustus, com uma calça cáqui e uma camisa xadrez de manga curta. Enxuguei o rosto na manga da blusa e sorri.
— Oi — falei. Ele demorou um pouquinho para se sentar no chão ao meu lado, e fez uma careta ao aterrissar um tanto desajeitadamente de bunda.
— Oi — falou, por fim. Olhei para ele e vi que observava o quintal atrás de mim.
— Entendo o que você quer dizer — ele disse e passou o braço por cima dos meus ombros.
— Aquele é um pedaço de balanço triste e maldito. Aninhei a cabeça no ombro dele.
— Obrigada por se oferecer para vir aqui.
— Você sabe que tentar me manter a distância não vai diminuir o que eu sinto por você — ele disse.
— Talvez? — falei.
— Todos os esforços para me proteger de você serão inúteis — ele disse.
— Por quê? Por que é que você deveria sequer gostar de mim? Já não se colocou em situações difíceis assim o suficiente? — perguntei, pensando em Caroline Mathers.
O Gus não respondeu. Ele só ficou ali, me abraçando, os dedos firmes no meu braço esquerdo.
— Precisamos fazer algo a respeito desse raio de balanço — ele falou. — Vou dizer uma coisa para você: ele é o responsável por noventa por cento do problema.
* * *
Assim que me refiz, entramos e sentamos no sofá, lado a lado, o laptop metade apoiado no joelho (de mentira) dele e a outra metade, no meu.
— Quente — comentei sobre o fundo do laptop.
— Está mesmo? — Ele sorriu.
Gus acessou um site de doações chamado Grátis Sem Pegadinha e juntos redigimos um anúncio.
— Título? — ele perguntou.
— Balanço Precisa de um Lar — falei.
— Balanço Extremamente Solitário Necessita de um Lar Amoroso — ele disse.
— Balanço Solitário e Ligeiramente Pedofílico Procura Bumbuns de Crianças — falei.
Ele riu.
— É por isso.
— O quê?
— É por isso que gosto de você. Você tem ideia de como é raro encontrar uma gata que use essa versão adjetivada do substantivo pedófilo? Você está tão ocupada sendo você mesma que não faz ideia de quão absolutamente sem igual você é. Respirei fundo pelo nariz. Nunca havia ar suficiente no mundo, mas a carência dele naquele momento estava particularmente crítica.
Escrevemos juntos o anúncio, fazendo as devidas edições às nossas ideias conforme íamos digitando. Por fim, acabamos com o seguinte texto:
Balanço Extremamente Solitário Necessita de Um Lar Amoroso
Um balanço bastante usado, mas em condições estruturalmente boas, procura um novo lar. Crie lembranças com seu filho, ou filhos, para que um dia ele, ou ela, ou eles olhem para o quintal e sintam o mesmo tipo de sentimentalismo que experimentei esta tarde. Tudo é frágil e efêmero, caro leitor, mas com este balanço seu filho conhecerá os altos e baixos da vida devagar e com segurança, e também poderá aprender a lição mais crucial de todas: não importa quão forte seja o impulso, não importa o quão alto se chegue, não será possível dar uma volta completa.
O balanço reside atualmente na Rua 83, quase esquina com a Spring Mill.
Depois disso ligamos a televisão por um tempo, mas não conseguimos achar nada que nos interessasse, então peguei o exemplar de Uma aflição imperial da mesa de cabeceira, levei o volume para a sala de estar e o Augustus Waters leu algumas páginas para mim, enquanto mamãe, que preparava o almoço, escutava.
— ‚O olho de vidro da mãe da Anna virou ao contrário‛ — o Augustus começou.
Enquanto ele lia, me apaixonei do mesmo jeito que alguém cai no sono: gradativamente e de repente, de uma hora para outra.
* * *
Quando verifiquei meus e-mails uma hora depois, descobri que havia vários candidatos para o balanço dentre os quais poderíamos escolher. No fim, selecionamos um cara chamado Daniel Alvarez, que anexou uma foto de seus três filhos jogando videogame e, no assunto do e-mail, escreveu: Só quero que eles brinquem ao ar livre. Respondi à mensagem dizendo que poderia buscar o balanço quando bem entendesse.
O Augustus me perguntou se eu queria ir com ele à reunião do Grupo de Apoio, mas eu estava muito cansada, depois de passar um dia inteiro ocupada Tendo Câncer, por isso declinei do convite. Estávamos no sofá quando ele empurrou o corpo para cima, para se levantar, mas acabou caindo sentado de novo e me tacou um beijo na bochecha.
— Augustus! — exclamei.
— Beijo de amigo — ele disse. Empurrou o corpo para cima novamente, dessa vez permanecendo de pé, e então deu dois passos na direção da minha mãe. — É sempre um prazer vê-la — ele disse, e minha mãe abriu os braços para lhe dar um abraço, no que o Augustus se inclinou e deu um beijo na bochecha dela. E se virou para mim: — Viu? — perguntou.
Fui para a cama logo após o jantar, o BiPAP suprimindo o mundo que ficava do lado de fora do meu quarto.
E nunca mais vi o balanço.
* * *
Dormi bastante tempo, dez horas, provavelmente por causa do processo lento de recuperação, provavelmente porque o sono combate o câncer e provavelmente porque eu era uma adolescente sem hora certa para acordar. Ainda não me sentia forte o suficiente para voltar a frequentar as aulas no MCC. Quando, enfim, tive vontade de levantar, tirei a máscara do BiPAP do nariz, coloquei o cateter do oxigênio nas narinas, liguei o aparelho e tirei o laptop de debaixo da cama, onde o tinha guardado na noite anterior. Lá havia um e-mail da Lidewij Vliegenthart.
Cara Hazel,
Recebi uma mensagem dos Gênios dizendo que você virá nos visitar com Augustus Waters e sua mãe, chegando aqui no dia 4 de maio. Em apenas uma semana! Peter e eu estamos encantados e não vemos a hora de conhecê-los pessoalmente. Seu hotel, o Filosoof, fica a apenas uma rua da casa do Peter. Talvez devêssemos dar um dia para que vocês se recuperem dos efeitos do jet lag? Sendo assim, se for conveniente, nós os encontraremos na casa do Peter na manhã do dia 5 de maio, talvez às dez horas, para uma xícara de café e para que ele responda às perguntas que você quer fazer sobre o livro dele. E, depois disso, nós poderíamos talvez fazer uma visita a um museu ou à Casa de Anne Frank.
Cordialmente,
Lidewij Vliegenthart
Assistente-executiva do Sr. Peter Van Houten,
autor de Uma aflição imperial
— Mãe — falei. Ela não respondeu. — MÃE! — gritei. Nada. De novo, mais alto: — MÃE!
Ela veio correndo enrolada numa toalha cor-de-rosa velhinha, toda pingando, ligeiramente em pânico.
— O que aconteceu?
— Nada. Foi mal. Eu não sabia que você estava tomando uma chuveirada.
— Eu estava na banheira — ela disse. — Só estava… — Fechou os olhos. — Só estava tentando tomar um banho de banheira de cinco segundos. Perdão. O que está havendo?
— Você poderia ligar para os Gênios e dizer a eles que a viagem foi cancelada? Acabei de receber um e-mail da assistente do Peter Van Houten. Ela acha que vamos até lá.
Mamãe franziu os lábios e passou por mim com os olhos semicerrados.
— O quê? — perguntei.
— Não era para eu dizer nada até seu pai chegar.
— O quê? — perguntei de novo.
— A viagem está de pé — ela disse, por fim. — A Dra. Maria nos ligou ontem à noite e nos convenceu de que você precisa viver a sua…
— MÃE, EU TE AMO TANTO! — gritei.
Ela foi até a minha cama e deixou que eu a abraçasse.
Mandei um torpedo para o Augustus porque sabia que ele estava na escola:
Ainda disponível dia três de maio? :-)
Ele respondeu na mesma hora.
Está tudo indo às mil maravilhas para o meu lado.
Se ao menos eu conseguisse ficar viva por uma semana, conheceria os segredos não publicados da mãe de Anna e do Homem das Tulipas
Holandês. Dei uma espiada na minha blusa, na altura do peito.
— Vocês têm de se comportar — sussurrei para meus pulmões.
CAPÍTULO NOVE
m dia antes da viagem para Amsterdã voltei à reunião do Grupo de Apoio pela primeira vez desde que conheci o Augustus. O elenco havia sido ligeiramente alterado ali no Coração Literal de Jesus. Cheguei cedo, o suficiente para que Lida — a sempre forte sobrevivente do câncer de apêndice — me atualizasse a respeito de todo mundo enquanto eu comia um cookie industrializado de chocolate encostada na mesa de biscoitos.
Michael, o leucêmico de doze anos de idade, tinha partido desta para melhor. Ele lutara bravamente, me contou a Lida, como se houvesse qualquer outra forma de lutar. O resto do pessoal ainda continuava por lá. Ken estava SEC desde que terminara a radioterapia. Lucas teve uma recaída, e a Lida disse aquilo com um sorriso amarelado e um leve ‚dar de ombros‛, da mesma forma que contaria que um alcoólatra teve uma recaída.
Uma menina gordinha e bonitinha se aproximou da mesa, disse ‚oi‛ para a Lida e depois se apresentou para mim como Susan. Eu não sabia ao certo qual era o problema dela, mas havia em seu rosto uma cicatriz que ia da lateral do nariz até o lábio e atravessava a bochecha. A Susan tinha passado maquiagem na cicatriz, o que só serviu para chamar mais atenção. Eu estava com um pouco de falta de ar por causa daquele tempo todo em pé, então falei:
— Vou me sentar ali.
Foi quando o elevador se abriu, revelando o Isaac e a mãe. Ele estava de óculos escuros e se apoiava no braço da mãe com uma das mãos, a bengala na outra.
— A Hazel do Grupo de Apoio e não a Monica — falei, quando ele chegou perto o suficiente. O Isaac sorriu e disse:
— E aí, Hazel. Como vão as coisas?
U
— Tudo bem. Fiquei totalmente gata depois que você perdeu a visão.
— Aposto que sim — Ele comentou.
A mãe o guiou até uma cadeira, beijou a cabeça dele e se deslocou de volta até o elevador. O Isaac tateou o espaço abaixo do corpo e se sentou. Eu me acomodei numa cadeira ao seu lado.
— E então, como está tudo?
— Bem. Feliz por ter voltado para casa, acho. O Gus me disse que você passou pela UTI.
— É — respondi.
— Que droga! — ele disse.
— Estou bem melhor agora — falei. — Vou para Amsterdã com o Gus amanhã.
— Sei disso. Estou bastante atualizado a respeito da sua vida, porque o Gus nunca. Fala. De. Outra. Coisa.
Sorri. O Patrick pigarreou e disse:
— Se todos pudermos ocupar nossos assentos… — O olhar dele cruzou com o meu. — Hazel! — falou. — Estou tão feliz em vê-la!
Todos se sentaram e o Patrick começou a recontar a história da sua ausência de bolas, o que me levou a retomar a rotina do Grupo de Apoio: me comunicando com o Isaac por meio de suspiros, me sentindo mal por todas as pessoas naquele cômodo e também por todas as pessoas fora dele, me distraindo da conversa para me concentrar na minha falta de ar e na dor. O mundo continuou girando, como sempre, sem a minha participação integral, e eu só despertei do meu devaneio quando alguém disse meu nome.
Foi Lida, a Forte. A Lida em remissão. A loira, saudável, robusta Lida, que fazia parte do time de natação da escola. A Lida, que só não tinha o apêndice, falou meu nome, dizendo:
— A Hazel é uma baita fonte de inspiração para mim; de verdade. Ela continua lutando, acordando todos os dias e indo para a guerra sem reclamar. Ela é tão forte... Tão mais forte que eu. Queria ter sua força.
— Hazel? — indagou o Patrick.
— Como você se sente ao ouvir isso?
Encolhi os ombros e olhei para a Lida.
— Dou minha força para você se puder ter sua remissão em troca. — O sentimento de culpa me invadiu assim que completei a frase.
— Não acho que tenha sido isso o que a Lida quis dizer — o Patrick falou. — Acho que ela…
Mas eu já havia parado de prestar atenção.
Depois das preces para os vivos e da ladainha interminável dos mortos (com o Michael adicionado no fim), demos as mãos e dissemos:
— Vivendo o melhor da nossa vida hoje!
A Lida foi correndo me pedir desculpas e se justificar, e eu disse:
— Não, não, está tudo bem — fazendo um gesto de ‚deixe pra lá‛ com a mão, e falei para o Isaac: — Você se incomoda de me acompanhar até lá em cima?
Ele pegou meu braço e eu o guiei até o elevador, grata por ter uma desculpa para evitar a escada. Já tinha quase percorrido o caminho todo quando vi a mãe dele parada num canto do Coração Literal.
— Estou aqui — ela disse para o Isaac, e ele trocou o meu braço pelo dela.
Então me perguntou:
— Você quer ir lá em casa?
— Claro — respondi.
Eu me sentia mal por ele. E mesmo odiando a pena que as pessoas tinham de mim, não consegui evitar ter pena dele.
* * *
O Isaac morava numa pequena casa estilo rancho em Meridian Hills, ao lado de uma escola particular para crianças ricas. Nós nos sentamos na sala de estar enquanto a mãe dele foi até a cozinha preparar o jantar, e aí ele me perguntou se eu queria jogar.
— Claro — respondi.
Isaac me pediu que lhe passasse o controle. Fiz isso e ele ligou a televisão e um computador que estava conectado a ela. A tela da TV
continuou preta, mas, após alguns segundos, uma voz grave começou a falar de dentro do aparelho.
Deception, disse a voz. Um ou dois jogadores?
— Dois — respondeu o Isaac. — Pausar. — E virou-se para mim. — Eu jogo isso direto com o Gus, mas é muito irritante porque ele é um jogador de videogame totalmente suicida. Ele é, tipo, muito radical quando se trata de salvar civis e coisa e tal.
— É — falei, lembrando da noite dos troféus destroçados.
— Recomeçar — o Isaac falou.
Jogador um, identifique-se.
— Essa é a voz ultrassensual do jogador um — o Isaac disse.
Jogador dois, identifique-se.
— O jogador dois sou eu, acho — falei.
O Sargento Max Mayhem e o soldado Jasper Jacks acordam em um lugar escuro e vazio, de aproximadamente um metro quadrado.
O Isaac apontou para a TV, como se eu devesse me dirigir a ela ou coisa assim.
— Humm — falei. — Tem algum interruptor para acender a luz?
Não.
— Tem alguma porta?
O soldado Jacks localiza a porta. Está trancada.
O Isaac se juntou a mim.
— Tem uma chave em cima do batente da porta.
Sim.
— Mayhem abre a porta.
A escuridão continua total.
— Empunhar faca — o Isaac disse.
— Empunhar faca — repeti.
Uma criança, que deduzi ser o irmão do Isaac, saiu correndo da cozinha. Devia ter uns dez anos, toda agitada e elétrica, e meio que cruzou a sala de estar pulando e gritando, numa imitação perfeita da voz do Isaac:
— ME MATE.
O Sargento Mayhem coloca a faca no pescoço. Tem certeza de que
você…
— Não — disse o Isaac. — Pausar. Graham, não me faça sair daqui e te dar um chute no traseiro.
O Graham deu uma risadinha e saiu furtivamente por um corredor.
Na pele do Mayhem e do Jacks, o Isaac e eu avançamos tateando pela caverna até que esbarramos num cara que acabamos esfaqueando, depois de forçá-lo a nos confessar que estávamos numa prisão subterrânea na Ucrânia, mais de um quilômetro abaixo da superfície. Conforme continuávamos, efeitos sonoros — um rio subterrâneo ruidoso, vozes falando ucraniano e inglês com sotaque — nos guiavam pela caverna, mas não havia nada para ver naquele jogo. Depois de uma hora inteira, começamos a ouvir os gritos de um prisioneiro desesperado, implorando: ‚Deus, me ajude. Deus, me ajude.‛
— Pausar — o Isaac falou. — É sempre nessa hora que o Gus insiste em encontrar o prisioneiro, mesmo que isso nos impeça de vencer o jogo, e a única maneira de conseguir libertar o prisioneiro de verdade é vencendo o jogo.
— É. Ele leva muito a sério os jogos de videogame — falei. — Ele é apaixonado por metáforas.
— Você gosta dele? — o Isaac perguntou.
— Claro que gosto. Ele é legal.
— Mas você não quer namorar o cara?
Dei de ombros.
— É complicado.
— Sei o que está tentando fazer. Você não quer dar para ele algo com que ele não vai conseguir lidar. Você não quer que ele Monifique você — o Isaac disse.
— Mais ou menos isso — falei. Mas não era nada disso. A verdade é que eu não queria Isaaquificar o Gus. — Para não ser injusta com a Monica — falei —, o que você fez com ela também não foi muito legal.
— O que foi que eu fiz com ela? — ele perguntou, na defensiva.
— Você sabe, ter ficado cego e tudo mais.
— Mas isso não foi culpa minha — ele disse.
— Não estou dizendo que foi culpa sua. Estou dizendo que não foi legal.
CAPÍTULO DEZ
ó levamos uma mala. Eu não tinha como carregar minha bagagem e mamãe bateu pé dizendo que não seria capaz de carregar duas, então tivemos de lutar pelo espaço na mala preta que meus pais ganharam de presente de casamento um milhão de anos atrás — mala esta que deveria ter passado sua vida útil em lugares exóticos, mas que acabou praticamente só indo e voltando de Dayton, onde a Morris Property, Inc., tinha uma filial que o papai visitava com frequência.
Argumentei com a mamãe que eu deveria ter direito a um pouco mais do que só a metade da mala, porque, para início de conversa, sem mim e meu câncer nós nem iríamos a Amsterdã. Mamãe contra-argumentou que, por ser duas vezes maior que eu e, portanto, precisar de mais metros de tecido para proteger seu pudor, deveria ter direito a pelo menos dois terços da mala.
No fim, ambas perdemos. É a vida.
Nosso voo só sairia ao meio-dia, mas a mamãe me acordou às cinco e meia, acendendo a luz e gritando:
— AMSTERDÃ!
Ela ficou andando de um lado para outro a manhã inteira se certificando de que tínhamos adaptadores de tomada e verificando pelo menos umas quatro vezes se tínhamos a quantidade certa de cilindros de oxigênio que durassem até lá, e se estavam todo cheios etc., enquanto eu simplesmente rolei da cama, vesti minha Roupa de Viagem para Amsterdã (calça jeans, camiseta cor-de-rosa e um cardigã preto, para o caso de o avião estar frio).
Às seis e quinze a bagagem já estava na mala do carro, e então mamãe insistiu que tomássemos café da manhã com o papai, embora fosse uma questão de princípio, para mim, não comer antes de o sol nascer, simplesmente porque eu não era um camponês russo do século dezenove
S
me alimentando para me fortalecer antes de um dia inteiro de trabalho braçal. Mas mesmo assim tentei botar para dentro um pouco de ovo mexido enquanto mamãe e papai se deliciavam com a versão doméstica do Egg McMuffin que tanto amavam.
— Por que comidas de café da manhã são comidas de café da manhã? — perguntei a eles. — Tipo, por que não comemos curry no café da manhã?
— Hazel, coma.
— Mas por quê? — perguntei. — Na boa, falando totalmente sério: por que é que os ovos mexidos passaram a ser exclusividade do café da manhã? Você pode colocar bacon num sanduíche sem que ninguém dê nenhum chilique. Mas no instante em que seu sanduíche ganha um ovo, vira um sanduíche de café da manhã.
Papai respondeu de boca cheia.
— Quando vocês voltarem, tomaremos café da manhã no jantar. Combinado?
— Eu não quero tomar ‚café da manhã‛ no jantar — respondi, cruzando os talheres no prato praticamente cheio. — Quero comer ovos mexidos no jantar sem essa concepção ridícula de que uma refeição que inclua ovos mexidos tem de ser café da manhã mesmo que seja hora do jantar.
— Você precisa escolher as causas pelas quais vai lutar nesse mundo, Hazel — minha mãe disse. — Mas se esta é a que você quer defender, ficaremos do seu lado.
— Do lado de trás — o papai acrescentou, e mamãe riu.
Eu sabia que era tolice, mas ainda assim me senti meio mal pelos ovos mexidos. Logo que eles acabaram de comer, papai lavou os pratos e nos acompanhou até o carro. Logicamente, começou a chorar, e beijou minha bochecha encostando nela a cara molhada e áspera. Ele apertou o nariz contra a maçã do meu rosto e sussurrou:
— Te amo. Estou tão orgulhoso de você...
(Pelo quê, exatamente, me perguntei.)
— Obrigada, pai.
— Vejo você em alguns dias, querida. Te amo tanto!
— Eu também, pai. — Sorri. — Serão só três dias.
Ao percorrermos a entrada de carros de ré, fiquei acenando para ele. Ele acenava também, e chorava. Passou pela minha cabeça o fato de que ele talvez estivesse pensando que era possível que não fosse me ver nunca mais, o que talvez fosse o que ele pensava todo dia de semana de manhã antes de ir para o trabalho, e isso devia ser uma droga. Mamãe e eu fomos de carro até a casa do Augustus e, assim que chegamos lá, ela quis que eu ficasse no carro para descansar, mas fui até a porta mesmo assim. Quando nos aproximamos, pude ouvir alguém chorando lá dentro. Num primeiro momento, não achei que fosse o Gus, porque o choro não soava nada parecido com o tom suave do jeito de falar dele, mas aí escutei uma voz que com certeza era uma versão alterada da dele dizendo: ‚PORQUE A VIDA É MINHA, MÃE. ELA PERTENCE A MIM.‛ Mais que depressa, mamãe colocou o braço nos meus ombros, me virou e me levou de volta para o carro, andando rápido.
— Mãe! O que aconteceu? — perguntei.
E ela respondeu:
— Não podemos ficar ouvindo a conversa dos outros, Hazel.
Entramos no carro e mandei uma mensagem de texto para o Augustus dizendo que estávamos lá fora esperando por ele.
Ficamos olhando para a casa por um tempo. O mais estranho nas casas é que quase sempre elas dão a impressão de que não tem nada acontecendo do lado de dentro, embora a maior parte das nossas vidas seja passada lá.
Fiquei me perguntando se esse seria mais ou menos o objetivo da arquitetura.
— Bem — mamãe disse após alguns instantes —, acho que chegamos muito cedo.
— É quase como se eu não precisasse ter acordado às cinco e meia — falei.
Mamãe pegou a caneca de café no console do carro e tomou um gole. Meu celular vibrou. Uma mensagem de texto do Augustus.
NÃO CONSIGO decidir o que usar.
Você prefere me ver de camisa polo ou de camisa de botão?
Respondi:
De botão.
Trinta segundos depois a porta se abriu e um Augustus sorridente apareceu, carregando uma mala de rodinha. Ele estava com uma camisa azul-celeste de botão bem passada, por dentro da calça jeans. Um cigarro Camel Light pendia dos lábios. Minha mãe saiu do carro para cumprimentá-lo. Ele tirou o cigarro da boca por um instante e falou com o tom de voz confiante que eu estava acostumada a ouvir.
— É sempre um prazer vê-la, madame.
Fiquei olhando para eles pelo retrovisor até a mamãe abrir a mala. Um tempo depois o Augustus abriu a porta atrás da minha e se lançou na tarefa complicada de entrar, com apenas uma perna, no assento traseiro de um carro.
— Você quer ir no banco do carona? — perguntei.
— De jeito nenhum — ele respondeu. — E oi, Hazel Grace.
— Oi — falei. — Tudo o.k.? — perguntei.
— Tudo o.k. — ele disse.
— O.k. — falei.
Mamãe entrou no carro e fechou a porta.
— Próxima parada, Amsterdã — ela anunciou.
* * *
O que não era exatamente verdade. A próxima parada foi o estacionamento do aeroporto, e aí um ônibus nos levou para o terminal, e depois um carrinho elétrico aberto nos transportou até o local da inspeção de segurança. O cara da TSA estava lá no começo da fila, aos berros, dizendo
que era melhor que nossa bagagem de mão não contivesse bombas nem armas de fogo nem qualquer recipiente com mais de 100 ml de líquido, e aí eu virei para o Augustus e disse:
— Observação: ficar de pé em fila é uma forma de opressão.
Ao que ele falou:
— Na moral.
Em vez de passar pela revista manual, escolhi atravessar o detector de metais sem o carrinho nem o cilindro, e nem mesmo o cateter de plástico no nariz. Cruzar o aparelho de raios X marcou a primeira vez, em alguns meses, que dei um passo sem o oxigênio, e foi ótima a sensação de andar livremente daquele jeito, transpondo o Rubicão, o silêncio da máquina reconhecendo que eu era, ainda que só por alguns instantes, uma criatura não metalizada.
Senti uma soberania corporal que não dá para descrever direito. O que posso dizer é que foi mais ou menos como quando eu era pequena e tinha uma mochila pesadíssima, cheia de livros, que eu levava para todo lado. Depois de andar muito tempo com ela, sentia como se estivesse flutuando assim que a tirava das costas.
Após uns dez segundos, meus pulmões pareciam que estavam se dobrando sobre si mesmos como flores que se fecham ao anoitecer. Caí sentada num banco cinza localizado logo após a máquina e tentei recobrar o fôlego, minha tosse um ruído rouco, e me senti bastante mal até recolocar a cânula.
E mesmo assim doía. A dor estava sempre presente, me puxando para dentro, exigindo ser sentida. Cada vez que alguma coisa no mundo exterior demandava um comentário meu ou a minha atenção, parecia que eu acordava da dor. Mamãe me olhava, preocupada. Ela acabara de falar alguma coisa. O que foi que ela disse? Então me lembrei. Ela havia perguntado qual era o problema.
— Nada — respondi.
— Amsterdã! — ela exclamou.
Sorri.
— Amsterdã — repeti.
Ela estendeu o braço para mim, me deu a mão e me puxou para que eu me levantasse.
* * *
Chegamos ao portão uma hora antes do horário marcado para o embarque.
— Sra. Lancaster, a senhora é uma pessoa impressionantemente pontual — o Augustus disse ao se sentar ao meu lado na sala de espera praticamente vazia em frente ao portão de embarque.
— Bem, ajuda o fato de eu não ser muito ocupada, tecnicamente falando — ela disse.
— Você é ocupada o suficiente — falei, embora me ocorresse que a ocupação da mamãe era basicamente eu.
Também tinha a função de esposa do meu pai. Ele não tinha a menor noção de coisas, tipo, tarefas bancárias, contratar bombeiros hidráulicos, cozinhar e qualquer outra atividade que não fosse trabalhar para a Morris Property, Inc. Mas a maior parte do tempo o negócio dela era comigo. A principal razão de viver dela e a minha principal razão de viver estavam terrivelmente enredadas.
Conforme os assentos da sala de espera foram sendo ocupados, o Augustus disse:
— Vou comprar um hambúrguer. Quer alguma coisa?
— Não — respondi —, mas admiro sua recusa em se submeter às convenções sociais do café da manhã.
Ele inclinou a cabeça para o lado e olhou para mim parecendo meio confuso.
— A Hazel está revoltada por causa da guetização dos ovos mexidos — mamãe explicou.
— É vergonhoso o fato de nós simplesmente passarmos a vida inteira aceitando cegamente a associação dos ovos mexidos com o período da manhã.
— Quero conversar mais sobre isso — o Augustus disse. — Mas estou morrendo de fome. Volto já.
* * *
Quando já se haviam passado mais de vinte minutos e o Augustus ainda não tinha voltado, perguntei para a mamãe se ela achava que havia algo de errado, e ela só levantou os olhos da revista detestável que lia pelo tempo suficiente para dizer:
— Ele deve ter ido ao banheiro ou coisa assim, só isso.
Uma funcionária da companhia aérea andou até nós e trocou meu cilindro de oxigênio por outro, fornecido pela empresa. Fiquei sem graça de ter uma pessoa ajoelhada na minha frente, com todo mundo olhando, então enviei uma mensagem de texto para o Augustus enquanto durava aquele procedimento.
Ele não respondeu. Mamãe parecia despreocupada, mas eu já imaginava todos os tipos de contratempos que poriam fim à viagem para Amsterdã (prisão, acidente, colapso mental) e senti como se houvesse algo não necessariamente cancerígeno de errado com meu peito conforme os minutos foram se passando.
E, bem na hora que a moça que estava atrás do balcão anunciou que daria início ao embarque antecipado de quem pudesse precisar de um pouco mais de tempo para entrar, e todas as pessoas que aguardavam o voo se viraram diretamente para mim, vi o Augustus mancando apressado na nossa direção com um saco do McDonald’s na mão, a mochila jogada nas costas.
— Por onde você andou? — perguntei.
— A fila estava enorme, foi mal — ele disse, estendendo a mão para me ajudar a levantar.
Aceitei a ajuda, e seguimos lado a lado até o portão, para o embarque preferencial.
Senti que todos observavam nossos movimentos, imaginando o que haveria de errado conosco, e se aquilo nos mataria, e como minha mãe devia ser uma heroína e tudo mais. Essa, às vezes, era a pior parte do câncer: a evidência física da doença separa você das outras pessoas.
Éramos irreconciliavelmente diferentes, e isso nunca ficou tão óbvio como quando nós três andamos no avião vazio, a comissária de bordo nos recebendo com uma expressão compadecida e fazendo um gesto na direção da nossa fileira, que ficava bem mais no fundo. Sentei no meio da fila de três cadeiras com o Augustus no assento da janela e a mamãe no do corredor. Fiquei me sentindo meio sufocada pela presença da minha mãe, então obviamente me bandeei para o lado do Augustus. Estávamos logo atrás da asa do avião. Ele abriu o saco e desembrulhou o hambúrguer.
— Na verdade, a questão dos ovos — ele disse — é que a cafedamanhazação dá ao ovo mexido uma certa sacralidade. Você pode arranjar bacon ou cheddar em qualquer lugar e a qualquer momento, em tacos, sanduíches de café da manhã ou num queijo quente, mas ovos mexidos… eles são importantes.
— Ridículo — eu disse. As pessoas começavam a se acomodar no avião. Não queria olhar para elas, então virei o rosto, e isso significou encarar o Augustus.
— Só estou dizendo que talvez os ovos mexidos sejam guetizados, sim, mas também são especiais. Há um lugar certo e uma hora certa para eles, como para rezar.
— Você não poderia estar mais equivocado — falei. — Está se deixando influenciar pelos pensamentos bordados nas almofadas dos seus pais. Você está argumentando que uma coisa frágil e rara é bela só porque é frágil e rara. Mas isso é uma grande mentira, e você sabe disso.
— Você é uma pessoa difícil de se consolar — o Augustus disse.
— O consolo superficial não é um consolo verdadeiro — falei. — Você já foi uma flor rara e frágil. Você se lembra disso.
Ele ficou em silêncio por um instante.
— Você sabe como calar a minha boca, Hazel Grace.
— É meu privilégio e minha responsabilidade — retruquei. Antes que o contato visual entre nós fosse interrompido, ele falou:
— Por falar nisso, foi mal eu ter evitado a sala de espera para o embarque. A fila no McDonald’s não estava tão grande assim, na verdade; eu só… só não quis ficar sentado lá com todas aquelas pessoas olhando
para nós, e tal.
— Para mim, principalmente — falei. Era provável que ninguém desconfiasse de que o Gus já esteve doente algum dia, mas eu carregava a minha doença do lado de fora, o que foi, em parte, o motivo pelo qual me tornei uma pessoa caseira. — Augustus Waters, criatura famosa por seu carisma, fica constrangido ao se sentar ao lado de uma garota com um cilindro de oxigênio.
— Não é constrangimento — ele disse. — É que às vezes essas pessoas me irritam. E não quero ficar irritado hoje.
Um minuto depois, ele enfiou a mão no bolso e abriu a tampa do maço de cigarros.
Passados uns nove segundos, uma comissária de bordo loira correu até a nossa fila e disse:
— Senhor, não é permitido fumar neste avião. Nem em qualquer avião.
— Eu não fumo — ele explicou, o cigarro dançando na boca enquanto falava.
— Mas…
— É uma metáfora — expliquei. — Ele coloca a coisa que mata entre os dentes, mas não dá a ela o poder de completar o serviço.
A comissária ficou desconcertada só por um segundo.
— Bem, essa metáfora não será permitida no voo de hoje — ela disse.
O Gus assentiu com a cabeça e devolveu o cigarro ao maço.
* * *
Enfim taxiamos na pista e o piloto disse: Comissários, preparar para a decolagem, e foi então que duas enormes turbinas a jato deram sinal de vida e começamos a acelerar.
— Essa é a sensação de estar num carro com você — falei, e ele sorriu, mas continuou com o maxilar tensionado. Então perguntei:
— Você está bem? — Nós estávamos ganhando velocidade quando, de repente, a mão do Gus apertou o braço da cadeira. Ele arregalou os
olhos, eu coloquei a minha mão em cima da dele e repeti: — Você está bem? — Ele não disse nada, só olhou para mim com olhos esbugalhados. Por fim, perguntei: — Você tem medo de avião?
— Daqui a pouco eu respondo.
O nariz da aeronave embicou para o alto e decolamos. O Gus olhou pela janela, vendo o planeta encolher abaixo de nós, e foi então que senti a mão dele relaxar sob a minha. Ele olhou para mim, depois para a janela, e anunciou:
— Estamos voando.
— Você nunca viajou de avião antes?
Ele balançou a cabeça negativamente.
— OLHE! — exclamou, apontando para a janela.
— É — falei. — É, dá para ver. Parece que estamos num avião.
— NUNCA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE SE VIU ALGO ASSIM — ele disse.
O entusiasmo do Gus era fofo. Não pude resistir e me inclinei para dar um beijo na bochecha dele.
— Só para você saber, eu estou bem aqui — mamãe disse. — Sentada do seu lado. Sua mãe. Que segurou sua mão quando você deu seus primeiros passos.
— É coisa de amigo — lembrei a ela, virando para beijá-la no rosto.
— Não pareceu tão de amigo assim — o Gus murmurou alto o suficiente para que eu pudesse ouvir.
Quando um Gus surpreso, empolgado e inocente emergiu do Augustus Maravilhoso e Adepto de Metáforas, não consegui resistir, literalmente.
* * *
Aquele foi um voo curto para Detroit, onde o carrinho elétrico foi ao nosso encontro quando desembarcamos e nos levou até o portão para Amsterdã. O segundo avião tinha telas de TV na parte de trás de cada encosto, e logo que ultrapassamos o topo das nuvens, o Augustus e eu sincronizamos o
momento de começar a ver TV para assistirmos à mesma comédia romântica, ao mesmo tempo, em nossas respectivas telas. Mas, mesmo tendo sincronizado perfeitamente a hora de apertar o play, o filme dele começou alguns segundos antes do meu. Assim, a cada cena engraçada, ele ria quando eu ainda estava ouvindo o início de qualquer que fosse a piada.
* * *
Mamãe tinha planejado dormirmos as várias horas que o voo ainda ia durar, para que, quando aterrissássemos às oito da manhã, já chegássemos na cidade prontos para aproveitá-la ao máximo, e tal. Então, quando o filme acabou, nós três tomamos comprimidos para dormir. Mamãe capotou depois de alguns segundos, mas o Augustus e eu ficamos acordados olhando pela janela por algum tempo. O dia estava claro, e mesmo que não desse para ver o sol se pondo, dava para perceber a reação do céu a esse movimento.
— Cara, isso é lindo — falei, mais para mim mesma.
— A luz do sol nascente forte demais em seus olhos que perecem — ele disse, citando o Uma aflição imperial.
— Mas ele não está nascendo — falei.
— Em algum lugar está — ele retrucou, e logo depois disse: — Observação: seria fantástico voar num avião ultrarrápido que conseguisse perseguir o nascer do sol em torno do planeta por um tempo.
— Além disso, eu viveria mais — falei, e ele me olhou de esguelha. — Você sabe, por causa da relatividade, e tal. — Ele ainda parecia confuso. — Nós envelhecemos mais devagar quando nos movemos mais depressa em comparação a quando estamos parados. Assim, neste exato momento, o tempo está passando mais devagar para nós do que para as pessoas no solo.
— Gatas de faculdade — ele falou. — Elas são inteligentes demais.
Revirei os olhos. Ele bateu o joelho (de verdade) no meu e eu reagi fazendo a mesma coisa.
— Está com sono? — perguntei.
— Nem um pouco.
— É — falei. — Eu também não.
Remédios para dormir e analgésicos não tinham em mim o mesmo efeito que em pessoas normais.
— Quer ver outro filme? — ele perguntou. — Eles têm um da Natalie Portman da fase Hazel dela.
— Quero ver alguma coisa que você não tenha visto ainda.
No fim, acabamos assistindo ao 300, um filme de guerra sobre trezentos espartanos que protegem Esparta de um exército invasor com, tipo, um bilhão de persas. O filme do Augustus começou de novo antes do meu e, depois de alguns minutos ouvindo ele dizer: ‚Droga!‛ ou ‚Finalizado!‛ toda vez que alguém era brutalmente assassinado, me inclinei sobre o apoio para o braço e encostei a cabeça no ombro dele para, de fato, assistirmos ao filme juntos em apenas uma das telas.
300 apresentava uma coleção respeitável de jovens sem camisa, musculosos e com óleo no corpo, e por isso não era particularmente difícil de ver, mas o que o filme mais mostrava era um monte de espadas empunhadas sem um propósito legítimo. Os corpos de persas e espartanos iam se acumulando e eu não consegui entender direito por que os persas eram tão do mal e os espartanos, tão do bem. ‚A contemporaneidade‛, citando o UAI, ‚se especializa no tipo de batalha no qual ninguém perde nada de valor, exceto, como se poderia argumentar, suas vidas.‛ E era isso o que acontecia com aqueles titãs em batalha.
Perto do fim do filme estavam quase todos mortos, e houve um momento insano em que os espartanos começam a empilhar os corpos para formar uma parede de cadáveres, que se transformou numa enorme barreira separando os persas do caminho para Esparta. Achei aquela carnificina um pouco gratuita, então desviei o olhar da tela por um segundo e perguntei ao Augustus:
— Quantas pessoas você acha que morreram?
Ele fez um gesto para eu calar a boca e disse:
— Shh. Shh. É agora que as coisas vão ficar interessantes.
Quando os persas atacaram precisaram escalar a parede da morte, e os espartanos conseguiram ocupar o topo da montanha de cadáveres. Conforme os corpos iam se acumulando, a parede de mártires se tornava ainda mais alta e, portanto, mais difícil de escalar. Todos brandiam as espadas/atiravam flechas e rios de sangue corriam montanha da morte abaixo etc.
Afastei a cabeça do ombro do Augustus por um instante para dar um tempo daquelas cenas sanguinárias e observei-o assistindo ao filme. Ele não pôde conter o sorriso bobo. Olhei para a minha tela de canto de olho e vi a montanha de corpos de persas e espartanos crescendo. Quando os persas finalmente derrotaram os espartanos, olhei para o Augustus de novo. Embora os bonzinhos tivessem acabado de perder a batalha, ele parecia completamente satisfeito. Eu me aconcheguei a ele de novo, mas mantive os olhos fechados até a guerra acabar.
Enquanto rolavam os créditos, ele tirou os fones de ouvido e disse:
— Foi mal, eu estava submerso na nobreza do sacrifício. O que você ia dizendo?
— Quantas pessoas acha que morreram?
— Tipo, quantas personagens fictícias morreram neste filme fictício? Não o suficiente — ele brincou.
— Não, quer dizer, tipo, desde sempre. Tipo, quantas pessoas você acha que já morreram até hoje?
— Por acaso, eu sei a resposta para essa pergunta — ele disse. — Há sete bilhões de pessoas vivas no mundo, e mais ou menos noventa e oito bilhões de mortos.
— Ah — falei.
Eu achava que porque o crescimento populacional tinha sido muito acelerado, houvesse mais pessoas vivas do que todos os mortos juntos.
— Há cerca de quatorze pessoas mortas para cada vivo — ele disse.
Os créditos continuaram rolando. Demorava muito para que todos os cadáveres fossem identificados, imagino. Minha cabeça ainda estava encostada no ombro dele.
— Pesquisei isso uns anos atrás — o Augustus continuou. — Eu
estava me perguntando se todo mundo poderia ser lembrado. Tipo, se nós nos organizássemos, e designássemos uma determinada quantidade de cadáveres para cada vivo, será que haveria pessoas vivas o suficiente para se lembrar de todos os mortos?
— E há?
— Claro. Qualquer um pode listar quatorze mortos. Mas nós somos uns pranteadores muito desorganizados, por isso acaba que muitas pessoas se lembram de Shakespeare e ninguém nem pensa na pessoa para quem ele escreveu o soneto cinquenta e cinco.
— É — falei.
Fiquei em silêncio por um minuto, e aí ele perguntou:
— Você quer ler ou alguma coisa assim?
Respondi que sim. Comecei a ler um poema chamado Uivo, de Allen Ginsberg, para minha aula de poesia, e o Gus pegou para reler o Uma aflição imperial.
Depois de um tempo, ele falou:
— É bom?
— O poema? — perguntei.
— É.
— É. É muito bom. Os caras nesse poema tomam mais drogas que eu. Como está o UAI?
— Ainda perfeito — ele respondeu. — Recite para mim.
— Esse não é bem o tipo de poesia para você ler em voz alta com a mãe dormindo ao lado. Tem, tipo, sodomia e pó de anjo — falei.
— Você acabou de mencionar dois dos meus passatempos favoritos — ele disse.
— Tá, então recite alguma outra coisa para mim.
— Humm — falei. — Eu não tenho mais nada.
— Que pena. Estou seco por uma poesia. Você sabe alguma de cor?
— ‚Sigamos então, tu e eu‛ — comecei, meio nervosa. — ‚Enquanto o poente, no céu se estende / Como um paciente anestesiado sobre a mesa.‛
— Mais devagar — ele pediu.
Eu fiquei com um pouco de vergonha, como quando contei a ele sobre o Uma aflição imperial.
— Ah, tá. Tá. ‚Sigamos por certas ruas quase ermas, / Através dos sussurrantes refúgios / De noites indormidas em hotéis baratos, / Ao lado de botequins onde a serragem / Às conchas das ostras se entrelaça: / Ruas que se alongam como um tedioso argumento / Cujo insidioso intento / É atrair-te a uma angustiante questão… / Oh, não perguntes: ‘Qual?’ / Sigamos a cumprir nossa visita.‛
— Estou apaixonado por você — ele disse, baixinho.
— Augustus — falei.
— Eu estou — ele disse, me encarando, e pude ver os cantos dos seus olhos se enrugando. — Estou apaixonado por você e não quero me negar o simples prazer de compartilhar algo verdadeiro. Estou apaixonado por você, e sei que o amor é apenas um grito no vácuo, e que o esquecimento é inevitável, e que estamos todos condenados ao fim, e que haverá um dia em que tudo o que fizemos voltará ao pó, e sei que o sol vai engolir a única Terra que podemos chamar de nossa, e eu estou apaixonado por você.
— Augustus — repeti, sem saber mais o que dizer.
Senti como se tudo estivesse crescendo dentro de mim, como se eu me afogasse numa alegria estranhamente dolorosa, mas não consegui dizer aquilo de volta. Não consegui falar nada. Só olhei para ele e deixei que olhasse para mim, até que ele assentiu, comprimiu os lábios, virou para o outro lado e encostou a cabeça na janela.
CAPÍTULO ONZE
cho que ele deve ter acabado dormindo. Eu peguei no sono, e acordei com o barulho do trem de pouso sendo baixado. Estava com um gosto horrível na boca, por isso tentei mantê-la fechada com medo de intoxicar o avião inteiro. Virei para o Augustus, que olhava pela janela, e enquanto mergulhávamos através de um bloco de nuvens baixas endireitei as costas para ver a Holanda. A terra parecia afundada no oceano, pequenos retângulos de verde rodeados de canais por todos os lados. Na verdade, nós aterrissamos numa pista paralela a um canal, como se houvesse duas delas: uma para nós e outra para as aves aquáticas.
Depois de pegar nossa bagagem e passar pela alfândega, nos amontoamos num táxi dirigido por um homem careca e rechonchudo que falava inglês perfeitamente — tipo, melhor que eu.
— Hotel Filosoof? — falei.
E ele perguntou:
— Vocês são americanos?
— Sim — mamãe respondeu. — Somos de Indiana.
— Indiana — ele falou. — Eles roubam a terra dos índios e deixam o nome, é?
— Mais ou menos isso — mamãe respondeu.
O taxista se embrenhou pelo tráfego e seguimos em direção a uma estrada que continha várias placas azuis com palavras de vogais dobradas: Oosthuizen, Haarlem. Ao lado, uma planície desocupada se estendia por vários quilômetros, interrompida por uma ou outra sede gigantesca de alguma empresa. Resumindo, a Holanda se parecia com Indianápolis, só que com carros menores.
— Isso aqui é Amsterdã? — perguntei ao motorista de táxi.
— Sim e não — ele respondeu. — Amsterdã é como os anéis de uma árvore: fica mais velha conforme você vai chegando perto do centro.
A
Aconteceu tudo de repente: saímos da estrada e vimos as casas geminadas da minha imaginação repousando precariamente sobre os canais, bicicletas onipresentes, e cafés anunciando: SALÃO DE FUMO. O táxi passou por cima de um canal e eu pude ver, do alto da ponte, várias casas flutuantes atracadas. Não se parecia em nada com os Estados Unidos da América. Parecia uma pintura antiga, só que real — tudo dolorosamente idílico à luz da manhã —, e eu pensei em como seria maravilhosamente estranho morar num lugar onde quase tudo havia sido construído por pessoas mortas.
— Essas casas são muito antigas? — perguntou minha mãe.
— Muitas das casas do canal datam da Idade de Ouro, o século dezessete — ele disse. — Nossa cidade tem uma história riquíssima, embora muitos turistas só queiram ver o Bairro da Luz Vermelha. — Ele fez uma pausa.
— Alguns turistas acham que Amsterdã é a cidade do pecado, mas a verdade é que ela é a cidade da liberdade. E é na liberdade que a maioria das pessoas encontra o pecado.
* * *
Todos os quartos do Hotel Filosoof haviam sido batizados em homenagem a filósofos: mamãe e eu ficamos no térreo, no Kierkegaard; o Augustus estava um andar acima, no Heidegger. Nosso quarto era pequeno: uma cama de casal encostada numa das paredes com a minha máquina BiPAP, um concentrador de oxigênio e vários cilindros recarregáveis ao pé da cama. Passado o equipamento, havia uma cadeira Paisley velha e empoeirada com o assento afundado, uma mesa e uma prateleira acima da cama contendo a coleção completa dos livros de Søren Kierkegaard. Na mesa encontramos uma cesta de vime cheia de presentes enviados pelos Gênios: tamancos de madeira, uma camiseta cor de laranja da Holanda, chocolates e vários outros itens.
O Filosoof ficava ao lado do Vondelpark, o parque mais famoso de Amsterdã. Mamãe quis sair para passear, mas eu estava supercansada,
então ela colocou o BiPAP para funcionar e ajeitou a máscara em mim. Eu odiava falar com aquela coisa no nariz, mas:
— Vá passear no parque que eu ligo para você quando acordar.
— Está bem — ela disse. — Durma bem, querida.
* * *
Mas, quando acordei algumas horas depois, ela estava sentada na velha cadeira no canto, lendo um guia turístico.
— Bom dia — eu disse.
— Na verdade, é fim de tarde — ela comentou, levantando da cadeira com um suspiro. Andou até a cama, colocou um cilindro no carrinho e o conectou ao tubo enquanto eu tirava a máscara do BiPAP do rosto e inseria o cateter no nariz. Ela programou o cilindro para 2,5 litros por minuto, seis horas até que eu precisasse que ele fosse trocado, e só aí levantei. — Como está se sentindo? — ela perguntou.
— Bem — respondi. — Ótima. Como foi lá no Vondelpark?
— Não cheguei a ir — respondeu. — Mas li tudo sobre ele no guia turístico.
— Mãe — falei —, você não precisava ter ficado aqui. Ela deu de ombros.
— Sei disso. Mas eu quis ficar. Gosto de ver você dormindo.
— Disse a criatura maníaco-obsessiva. — Ela riu, mas ainda assim me senti mal. — Só quero que você se divirta, sabe?
— Está bem. Vou me divertir hoje à noite, combinado? Vou cometer loucuras por aí enquanto você e o Augustus saem para jantar.
— Sem você? — perguntei.
— É. Sem mim. Para falar a verdade, vocês já têm uma reserva num lugar chamado Oranjee — ela disse. — A assistente do Sr. Van Houten organizou tudo. O restaurante fica num bairro chamado Jordaan. Muito chique, segundo o guia turístico. Há uma estação de bonde logo depois da curva. O Augustus tem as instruções de como chegar lá. Vocês podem comer ao ar livre e ver os barcos passando. Vai ser um programa adorável.
Bastante romântico.
— Mãe.
— Só estou falando — ela disse. — Você deveria se arrumar. O vestido de alcinha, talvez?
A insanidade daquela situação seria de deixar qualquer um embasbacado: a mãe manda a filha de dezesseis anos sozinha com um garoto de dezessete para um programa numa cidade estrangeira famosa por sua permissividade. Mas isso, também, era um efeito colateral de se estar morrendo: eu não podia correr nem dançar nem comer alimentos ricos em nitrogênio, mas na cidade da liberdade eu estava entre os residentes mais liberados de lá. Usei mesmo o vestido de alcinha — um modelo azul com estampa floral e que ia até o joelho, da Forever 21 — com meia-calça e sapatos boneca, porque eu gostava de ser bem mais baixa que ele. Entrei no banheiro ridiculamente pequeno e lutei com meus cabelos despenteados durante algum tempo até que tudo parecesse o mais próximo possível com a Natalie Portman de 2005, 2006. Às seis da tarde em ponto (meio-dia em casa), houve uma batida à porta.
— Oi? — eu disse, sem abrir. Não havia olho-mágico no Hotel Filosoof.
— O.k. — respondeu o Augustus.
Pelo som da voz dele deu para perceber que estava com o cigarro na boca. Dei uma olhada em mim. O vestido de alcinha deixava à mostra muito mais do que o que o Augustus já tinha visto da minha caixa torácica e das minhas clavículas. Não era obsceno nem nada, mas era o mais perto que eu havia chegado de mostrar a pele na minha vida inteira.
(Minha mãe tinha um lema com o qual eu concordava: ‚Lancaster que é Lancaster não anda por aí de barriga de fora.‛)
Abri a porta. O Augustus estava de terno preto, as lapelas estreitas, o caimento perfeito, com uma camisa social azul-clara e uma gravata-borboleta fina. O cigarro pendia do canto da boca.
— Hazel Grace — ele disse —, você está linda.
— Eu — falei. Fiquei achando que o resto da frase surgiria só por ter ar passando pelas minhas cordas vocais, mas nada aconteceu. Por fim,
acabei dizendo: — Estou me sentindo malvestida.
— Ah, essa coisa velha? — ele falou, sorrindo para mim.
— Augustus — minha mãe disse atrás de mim —, você está extremamente bonito.
— Obrigado, senhora — ele disse, me oferecendo o braço.
Apoiei a mão nele e olhei para trás, para a mamãe.
— Vejo vocês às onze — ela disse.
Esperando pelo bonde número um numa larga avenida com tráfego intenso, falei para o Augustus:
— Esse é o terno que você usa em enterros?
— Na verdade, não — ele disse. — O outro não é nem de longe tão bonito.
O bonde azul e branco chegou e o Augustus entregou nossos cartões para o motorista, que explicou que precisávamos passá-los por cima de um sensor circular. Enquanto atravessávamos o bonde lotado, um senhor se levantou para podermos sentar juntos e eu tentei dizer para ele continuar sentado, mas o homem fez um gesto insistente em direção ao assento. Andamos de bonde por três paradas, eu me apoiando no Gus para que pudéssemos olhar pela janela ao mesmo tempo.
O Augustus apontou para o alto, para as árvores, e perguntou:
— Viu aquilo?
Eu vi. Havia olmos por todo lado pelos canais, e algumas sementes estavam sendo carregadas pelo vento. Mas não pareciam sementes. Pareciam, precisamente, pétalas de rosa descoloridas e em miniatura. Essas pétalas claras se juntavam no vento como pássaros voando em bando — milhares deles, como uma tempestade de neve na primavera.
O senhor que nos deu o lugar reparou que estávamos observando aquilo e disse, em inglês:
— É primavera em Amsterdã. Os iepen jogam confete para dar as boas-vindas à primavera. Trocamos de bonde e depois de quatro outras paradas chegamos a uma rua dividida por um lindo canal, os reflexos da antiga ponte e das pitorescas casas do canal ondulando na água.
O Oranjee ficava a alguns passos. O restaurante era num lado da rua
e as mesas ao ar livre, no outro, em cima de uma extensão de concreto bem à margem do canal. Os olhos da recepcionista brilharam quando o Augustus e eu andamos na direção dela.
— Sr. e Sra. Waters?
— Pois não? — falei.
— Sua mesa — ela disse, apontando para o outro lado da rua, para uma mesinha a alguns centímetros do canal. — O champanhe é cortesia da casa.
O Gus e eu nos entreolhamos, sorrindo. Depois que atravessamos, ele puxou a cadeira para mim e me ajudou a chegar para a frente com ela. De fato havia duas taças de champanhe na mesa coberta por uma toalha branca. O leve frescor no ar era magnificamente contrabalançado pelo calor da luz do sol; de um lado, ciclistas passavam pedalando — homens e mulheres bem-vestidos voltando do trabalho a caminho de casa, loiras inacreditavelmente atraentes sentadas de lado na garupa da bicicleta de alguma amiga, crianças bem pequenas de capacete sacolejando em cadeirinhas de plástico atrás de seus pais. E, do outro lado, a água do canal saturada pelos milhões de sementes-confete. Pequenos barcos estavam atracados aos muros de tijolos, com água da chuva até a metade, alguns quase naufragando. Um pouco mais adiante dava para ver casas flutuantes em pontões e, no meio do canal, um barco com o fundo plano, todo aberto, repleto de espreguiçadeiras e com um aparelho de som portátil vinha na nossa direção. O Augustus ergueu a taça de champanhe. Ergui a minha, mesmo sem nunca ter bebido nada alcoólico — fora as vezes que dei umas bicadinhas na cerveja do meu pai.
— O.k. — ele disse.
— O.k. — falei, e fizemos tintim com as taças. Tomei um gole. As bolinhas se desmancharam na minha boca e viajaram em direção ao norte, para dentro da cabeça. Doce. Frisante. Delicioso.
— Isso é muito bom — falei. — Nunca tinha bebido champanhe.
Um jovem garçom, os cabelos loiros e ondulados, apareceu. Acho que era ainda mais alto que o Augustus.
— Vocês sabem o que Dom Pérignon disse depois de inventar o
champanhe? — ele perguntou com um sotaque delicioso.
— Não? — falei.
— Ele chamou os outros monges e disse: ‚Venham depressa! Estou bebendo estrelas.‛ Bem-vindos a Amsterdã. Vocês gostariam de olhar o cardápio ou preferem a sugestão do chef?
Olhei para o Augustus e ele, para mim.
— A sugestão do chef parece ótima, mas a Hazel é vegetariana.
Eu só havia falado disso com o Augustus uma vez, no dia em que nos conhecemos.
— Isso não é problema — disse o garçom.
— Beleza. E será que poderíamos tomar um pouco mais disso? — o Gus perguntou, falando do champanhe.
— Claro — respondeu nosso garçom. — Nós engarrafamos todas as estrelas esta noite, jovens amigos. Ai, esse confete! — ele falou e deu uma espanada de leve numa semente que havia pousado no meu ombro nu. — Há tempos não caíam tantos assim. Estão em todo lugar. Isso é muito irritante.
O garçom desapareceu. Ficamos olhando o confete caindo do céu, rolando pelo chão com a brisa e terminando no canal.
— É meio difícil de acreditar que alguém possa achar isso irritante — o Augustus disse depois de um tempo.
— As pessoas sempre acabam ficando insensíveis à beleza.
— Eu ainda não fiquei insensível a você — ele retrucou, sorrindo. Fiquei vermelha. — Obrigado por vir a Amsterdã.
— Obrigada por me deixar sequestrar seu desejo — falei.
— Obrigado por usar esse vestido que é, tipo, ‚uau‛.
Balancei a cabeça, tentando não sorrir. Eu não queria ser uma granada. Mas, para falar a verdade, ele sabia o que estava fazendo, não sabia? Era uma questão de escolha para ele também.
— Ei, como termina aquele poema? — ele perguntou.
— Hein?
— Aquele que você recitou para mim no avião.
— Ah, o ‚Prufrock‛? Acaba assim: ‚Tardamos nas câmaras do mar /
Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas / Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.‛
O Augustus tirou um cigarro do maço e bateu com o filtro na mesa.
— Essas estúpidas vozes humanas sempre estragando tudo.
O garçom chegou com mais duas taças de champanhe e com o que chamou de ‚Aspargos brancos belgas com infusão de lavanda‛.
— Eu também nunca tinha bebido champanhe — o Gus disse depois que o garçom se afastou. — Caso você tenha ficado se perguntando isso, e tal. E também nunca tinha comido aspargos brancos.
Eu estava no meio da primeira garfada.
— É fantástico — garanti.
Ele deu uma garfada, engoliu.
— Céus. Se os aspargos tivessem sempre esse gosto eu também seria vegetariano.
Algumas pessoas num barco de madeira envernizada se aproximaram lá embaixo no canal. Uma delas, uma loira de cabelos cacheados, com uns trinta anos, talvez, ergueu seu copo de cerveja na nossa direção e gritou algo.
— Nós não falamos holandês — o Gus gritou para ela.
Uma das outras gritou uma tradução:
— O casal bonito é bonito.
* * *
A comida era tão boa que a cada prato nossa conversa recaía em mais exaltações fragmentadas daquela deliciosidade: ‚Eu quero que esse risoto de cenoura roxa se transforme numa pessoa para que eu possa levá-la até Las Vegas e me casar com ela.‛ ‚Sorbet de ervilha-de-cheiro, você é tão surpreendentemente magnífico.‛ Queria estar com mais fome.
Depois do nhoque de alho verde com folhas de mostarda vermelha, o garçom disse:
— A sobremesa já está a caminho. Gostariam de beber mais estrelas antes?
Balancei a cabeça negativamente. Duas taças eram o bastante para mim. O champanhe não era exceção à minha alta resistência a calmantes e analgésicos; eu estava alegre, mas não bêbada. E nem pretendia ficar. Noites como aquela não aconteciam com frequência, e eu queria me lembrar dela.
— Humm — falei depois que o garçom saiu, e o Augustus deu aquele sorriso torto, olhando para um lado do canal enquanto eu olhava para o outro.
Nós tínhamos muito o que ver, e por isso aquele silêncio não era estranho, de verdade, mas eu queria que tudo fosse perfeito. E era perfeito, acho, só que dava a impressão de que alguém tinha tentado encenar a Amsterdã da minha imaginação, o que tornou mais difícil esquecer que aquele jantar, assim como a viagem em si, eram um Privilégio do Câncer. Eu só queria que ficássemos conversando e rindo confortavelmente, como fazíamos no sofá lá em casa, mas alguma tensão permeava aquilo tudo.
— Não é o terno que eu uso em enterros — ele disse após alguns minutos. — Quando descobri que estava doente, eles me disseram que minha chance de cura era de oitenta e cinco por cento. Sei que essa é uma probabilidade favorável, mas não pude deixar de pensar que estava numa roleta-russa. Quer dizer, eu teria que passar o maior sufoco por um tempo, de seis meses a um ano, e perder minha perna, e, no fim, aquilo ainda assim poderia não funcionar, sabe?
— Sei — falei, mesmo não sabendo.
Não de verdade. Eu nunca fui outra coisa a não ser uma paciente terminal; todo o meu tratamento tinha como objetivo estender a minha vida, e não curar o câncer. O Falanxifor havia introduzido um grau de ambiguidade à história, mas eu era diferente do Augustus: meu capítulo final foi escrito no momento do diagnóstico. O Gus, como a maioria dos sobreviventes do câncer, vivia na incerteza.
— Certo — ele disse. — Então passei por todo um processo de querer estar preparado. Compramos um lote em Crown Hill, e eu fui lá um dia com meu pai e escolhi um local. Planejei todo o meu enterro e tudo mais,
e então, logo antes da cirurgia, perguntei a meus pais se poderia comprar um terno, tipo, um terno dos bons, só para o caso de eu bater as botas. No fim das contas, nunca tive oportunidade de usá-lo. Até hoje.
— Então este é o seu terno mortuário.
— Exatamente. Você não tem uma roupa para o seu enterro?
— Tenho — respondi. — É um vestido que comprei para o meu aniversário de quinze anos. Mas não uso esse vestido em encontros românticos.
Os olhos dele brilharam.
— Nós estamos num encontro romântico?
Olhei para o chão, envergonhada.
— Não force a barra.
* * *
Ambos estávamos totalmente satisfeitos, mas a sobremesa — um opulento e suculento cremeaux rodeado de maracujá — era boa demais para não provarmos pelo menos um pouquinho, então protelamos o pedido por um tempo, tentando ficar com fome de novo. O sol era uma criança pequena se recusando terminantemente a ir para a cama: já eram mais de oito e meia da noite e o céu ainda estava claro.
Do nada, o Augustus perguntou:
— Você acredita em vida após a morte?
— Eu acho que a eternidade é um conceito errôneo — respondi. Ele sorriu de um jeito afetado.
— Você é um conceito errôneo.
— Eu sei. E é por isso que estou sendo retirada da rotação.
— Isso não é engraçado — ele disse, olhando para a rua.
Duas meninas passaram numa bicicleta, uma sentada de lado em cima da roda traseira, de carona.
— Peraí — falei. — Eu só estava brincando.
— Não tem a menor graça para mim imaginar você sendo retirada da rotação — ele disse. — Agora, sério: e a vida após a morte?
— Não — falei, e depois me corrigi. — Bem, para falar a verdade, eu não diria um ‚não‛ tão categórico assim, talvez. E você?
— Eu acredito — ele disse, confiante. — Acredito, com certeza. Não num paraíso onde você anda de unicórnio, toca harpa e vive numa mansão feita de nuvem. Mas, sim, eu acredito em Algo com A maiúsculo. Sempre acreditei.
— Sério? — perguntei.
Aquilo me surpreendeu. Eu sempre relacionei a crença no paraíso com, sendo bem sincera, um tipo de limitação intelectual. Mas o Gus não era burro.
— É — ele respondeu baixinho. — Eu acredito naquela frase de Uma aflição imperial. ‚A luz do sol nascente forte demais em seus olhos que perecem.‛ Acho que o sol nascente é Deus, e a luz do sol é muito forte e os olhos dela estão perecendo, mas não estão perdidos. Eu não acredito que retornamos para assombrar ou consolar os vivos nem nada, mas acho que nos transformamos em alguma coisa.
— Mas você tem medo do esquecimento.
— Sim, eu tenho medo do esquecimento terreno. Mas, quer dizer, não quero parecer meu pai nem minha mãe falando, mas acredito que os seres humanos têm alma, e acredito na manutenção da alma. O medo do esquecimento é outra coisa, o medo de não ser capaz de dar a minha vida em troca de nada. Se você não vive uma vida a serviço de um bem maior, precisa pelo menos morrer uma morte a serviço de um bem maior, sabe? E eu tenho medo de não ter nem uma vida nem uma morte que signifique alguma coisa.
Eu balancei a cabeça.
— O que foi? — ele perguntou.
— A sua obsessão por, tipo, morrer por alguma coisa, ou por deixar para trás algum símbolo memorável do seu heroísmo, e tal. É estranho.
— Todo mundo quer ter uma vida extraordinária.
— Nem todo mundo — falei, sem conseguir disfarçar minha irritação.
— Ficou chateada?
— É só que — falei, mas não consegui terminar a frase. — Só que —
falei de novo. Entre nós dois, a luz de uma vela tremulava. — É muita maldade sua dizer que as únicas vidas que importam são aquelas vividas por alguma coisa ou mortas por alguma coisa. É muita maldade dizer uma coisa dessas para mim.
Por algum motivo me senti como uma criancinha, e dei uma colherada na sobremesa para fazer parecer que aquilo não tinha tanta importância assim.
— Foi mal — ele disse. — Não foi a minha intenção. Eu só estava pensando em mim mesmo.
— É, estava — falei.
Não dava para terminar de comer a sobremesa. Meu estômago estava cheio demais. Fiquei com medo de vomitar, na verdade, porque de vez em quando eu vomitava depois de comer. (Nada a ver com bulimia, só câncer.) Empurrei o prato de sobremesa na direção do Gus, mas ele sacudiu a cabeça.
— Foi mal — falou de novo, esticando o braço sobre a mesa para pegar a minha mão.
Deixei que ele a pegasse.
— Eu poderia ser pior, sabe?
— Como? — perguntei, em tom de desafio.
— Quer dizer, eu tenho uma frase escrita à mão acima da minha privada que diz: ‚Banhe-se Diariamente no Consolo das Palavras de Deus‛, Hazel. Eu poderia ser muito pior.
— Isso não parece nada higiênico — falei.
— Eu poderia ser pior.
— Você poderia ser pior. — Sorri.
Ele gostava mesmo de mim. Talvez eu fosse um pouco narcisista, e tal, mas quando percebi isso naquele momento no Oranjee, passei a gostar mais ainda dele.
Quando nosso garçom apareceu para levar os pratos de sobremesa, anunciou:
— Sua refeição foi paga pelo Sr. Peter Van Houten.
O Augustus sorriu.
— Esse tal de Peter Van Houten não é tão mau assim.
* * *
Andávamos pela margem do canal quando começou a escurecer. À distância de um quarteirão do Oranjee, paramos num banco de praça rodeado de bicicletas velhas e enferrujadas presas com cadeado a racks e umas às outras. Nós nos sentamos lado a lado, os quadris encostados, de frente para o canal, e ele colocou o braço nos meus ombros.
Dava para ver a luminosidade vinda do Bairro da Luz Vermelha. Mesmo sendo o Bairro da Luz Vermelha, o brilho que vinha de lá tinha um misterioso tom de verde. Imaginei milhares de turistas se embebedando, se drogando e passando de mão em mão por aquelas ruas estreitas.
— Nem acredito que ele vai nos contar tudo amanhã — falei. — Peter Van Houten vai nos contar o famoso fim não publicado do melhor livro do mundo.
— Além de ter pago o nosso jantar — o Augustus disse.
— Fico fantasiando que ele vai nos revistar à procura de gravadores antes de nos contar. E aí vai se sentar no meio de nós no sofá da sala de estar dele e sussurrar a resposta para a pergunta que fiz sobre a mãe da Anna ter se casado ou não com o Homem das Tulipas Holandês.
— Não se esqueça do Sísifo, o hamster — o Augusto acrescentou.
— Certo, e também, é claro, sobre que destino aguardou Sísifo, o hamster. — Eu me inclinei para a frente, para olhar a água do canal. Havia uma quantidade exagerada daquelas pétalas de olmo desbotadas. — Uma continuação que só vai existir para nós — falei.
— Qual é o seu palpite? — ele perguntou.
— Não sei. De verdade. Já pensei nisso tudo, de trás para a frente e da frente para trás, umas mil vezes. Cada vez que releio o livro, penso diferente, sabe?
Ele assentiu com a cabeça.
— Você tem uma teoria? — perguntei.
— Tenho. Eu não acho que o Homem das Tulipas Holandês seja
vigarista, mas também não é rico como as faz acreditar. E acho que depois que a Anna morre, a mãe vai para a Holanda com ele pensando que vão morar lá para sempre, mas não dá certo, porque ela quer ficar perto de onde a filha viveu.
Eu não tinha me dado conta de que ele pensava tanto assim no livro, que o Gus se importava com o Uma aflição imperial independentemente de se importar comigo.
A água banhava silenciosa os muros de pedra do canal abaixo de nós; um grupo de amigos passou em bando, de bicicleta, gritando uns para os outros num holandês gutural e acelerado; os barquinhos, pouco maiores que eu, estavam metade submersos no canal; o cheiro de água muito parada por muito tempo; o braço dele me puxando para perto; a perna de verdade dele encostando na minha perna de verdade do quadril até o pé. Cheguei um pouco mais perto do corpo dele. Ele se retraiu.
— Foi mal. Você está bem?
Ele murmurou um sim em resposta, claramente sentindo alguma dor.
— Foi mal — falei de novo. — Ombro ossudo.
— Está tudo bem — ele disse. — Lindo, na verdade.
Ficamos sentados ali por um bom tempo. A mão dele acabou abandonando meu ombro e pousou no encosto do banco de praça. Basicamente nós só olhávamos fixamente para o canal. Eu estava pensando bastante a respeito de como tinham feito aquele lugar existir mesmo devendo estar submerso, e em como eu era, para a Dra. Maria, um tipo de Amsterdã, uma anomalia parcialmente submersa, e aquilo me fez pensar na morte.
— Posso fazer uma pergunta sobre a Caroline Mathers?
— E você ainda diz que não existe vida após a morte — ele respondeu sem olhar para mim. — Mas pode, claro. O que você quer saber?
Eu queria saber se ele ficaria bem se eu morresse. Queria não ser uma granada, não ser uma força malévola nas vidas das pessoas que eu amava.
— Só, tipo, o que aconteceu.
Ele suspirou, soltando o ar por tanto tempo que, para os meus pulmões de araque, parecia que ele estava se gabando. E colocou um
cigarro novo na boca.
— Você sabe que não há no mundo lugar menos frequentado que o playground de um hospital, não sabe?
Eu fiz que sim com a cabeça.
— Bem, eu passei algumas semanas no Memorial quando eles amputaram a minha perna, e tal. Fiquei internado no quinto andar e meu quarto dava vista para o playground, que obviamente ficava sempre em total abandono. Eu estava submerso na ressonância metafórica do playground vazio no pátio do hospital. Mas aí uma garota começou a aparecer todos os dias ali, sozinha. Sentava no balanço e se balançava, sem ninguém por perto, como numa cena de filme. Então eu pedi para uma das minhas enfermeiras mais legais me contar o que sabia sobre ela, e a mulher a levou lá em cima para uma visita, e era a Caroline, e eu usei o meu carisma imenso para conquistá-la.
O Gus fez uma pausa, então resolvi dizer alguma coisa.
— Você não é tão carismático assim.
Ele fez pouco caso, duvidando da veracidade do meu comentário.
— Você é basicamente só gato — expliquei.
Ele riu disso.
— O problema com os mortos — disse, e então parou. — O problema é que você acaba sendo considerado um crápula se não romantizar os mortos, mas a verdade é… complicada, acho. Tipo, você está familiarizada com a imagem da vítima de câncer estoica e determinada que luta heroicamente contra a doença com uma força sobre-humana e nunca reclama nem para de sorrir, nem mesmo em seus últimos instantes de vida, etcetera?
— Se estou — falei. — São aquelas almas bondosas e generosas cujos gestos são uma Inspiração para Todos Nós. Elas são tão fortes! Nós as admiramos tanto!
— Certo, mas na verdade, quer dizer, além de nós dois, obviamente, as crianças com câncer não são estatisticamente mais propensas a serem incríveis, nem compassivas, nem perseverantes, nem nada. A Caroline estava sempre de mau humor e infeliz, mas eu gostava daquilo. Gostava de
achar que a Caroline tinha me escolhido como a única pessoa no mundo que não ia odiar, e assim nós passávamos o tempo todo juntos tirando sarro com a cara dos outros, sabe? Zombando das enfermeiras, das outras crianças, das nossas famílias e de quem quer que fosse. Mas não sei se isso era ela ou o tumor. Quer dizer, uma das enfermeiras dela me disse, certa vez, que o tipo de tumor que a Caroline tinha é conhecido entre os médicos como o Tumor dos Imbecis, porque ele simplesmente transforma a pessoa num monstro. Então lá estava aquela menina sem um quinto do cérebro e que acabara de ter uma recorrência do Tumor dos Imbecis, e ela não era o protótipo do heroísmo estoico da criança com câncer. Ela era… Quer dizer, para ser honesto, ela era uma megera. Mas não dá para dizer isso, porque ela carregava aquele tumor e também porque ela está, quer dizer, ela está morta. Ela tinha vários motivos para ser desagradável, sabe?
Eu sabia.
— Você se lembra daquela parte do Uma aflição imperial quando a Anna está atravessando o campo de futebol para ir para a aula de educação física, e tal, e cai de cara na grama, e é assim que ela sabe que o câncer voltou e que está no seu sistema nervoso, e ela não consegue se levantar, e a cara dela está a, tipo, dois centímetros da grama do campo de futebol, e ela simplesmente fica ali imóvel olhando para a grama tão próxima, analisando a forma como a luz incide sobre ela e… Eu não me lembro direito da frase, mas é algo que diz que a Anna tem uma epifania whitmanesca e, com isso, define a humanidade como a oportunidade de se maravilhar com a grandiosidade da criação, e tal. Você se lembra dessa parte?
— Eu me lembro dessa parte — falei.
— Então, depois, quando eu estava sendo estripado pela quimioterapia, por algum motivo resolvi ficar esperançoso de verdade. Não quanto à sobrevivência, especificamente, mas eu me senti como a Anna se sente no livro, aquela sensação de empolgação e gratidão por simplesmente ser capaz de se maravilhar com tudo.
‚Mas, nesse meio tempo, a Caroline foi ficando pior a cada dia. Ela teve alta depois de um período e houve momentos em que achei que
poderíamos ter, tipo, um relacionamento normal, mas não podíamos, na verdade, porque ela não possuía qualquer mecanismo de filtragem entre pensamento e fala, o que era triste, desagradável e muitas vezes doloroso. Mas, quer dizer, não se pode terminar o namoro com uma menina que sofre de câncer cerebral. Os pais dela gostavam de mim, e ela tinha um irmão menor que é uma criança muito maneira. Quer dizer, como eu poderia terminar o namoro? Ela estava morrendo.
‚Demorou muito. Levou quase um ano, e foi um ano durante o qual eu convivi com uma garota que, tipo, do nada começava a rir, apontando para a minha prótese e me chamando de perneta.‛
— Não — falei.
— É. Quer dizer, era o tumor. Ele se alimentava do cérebro dela, sabe? Ou então não era o tumor. Não tenho como saber porque ela e o tumor não podiam ser desassociados. Mas conforme ela foi ficando mais doente, quer dizer, ela sempre repetia as mesmas histórias e ria dos próprios comentários, mesmo que já tivesse falado a mesma coisa umas cem vezes naquele dia. Tipo, ela repetiu a mesma brincadeira durante várias semanas: ‚O Gus tem pernas lindas. Quer dizer, perna.‛ E aí ria enlouquecidamente.
— Ah, Gus — falei. — Isso é…
Eu não sabia o que dizer. Ele não estava olhando para mim, e tive a sensação de que ia invadir sua privacidade se o encarasse. Senti o corpo dele chegar para a frente. O Gus tirou o cigarro da boca e olhou para ele, rolando-o com o polegar e o indicador, e então levou-o de volta à boca.
— Bem — ele disse —, para falar a verdade, eu tenho mesmo uma perna linda.
— Sinto muito — falei. — Sinto mesmo.
— Está tudo bem, Hazel Grace. Mas, só para esclarecer, quando eu achei que tinha visto o fantasma de Caroline Mathers no Grupo de Apoio, não fiquei de todo feliz. Eu estava encarando você, mas não estava ansioso por conhecê-la, se é que você me entende.
Ele tirou o maço do bolso e colocou o cigarro de volta lá dentro.
— Sinto muito — falei de novo.
— Eu também — ele disse.
— Não quero nunca fazer uma coisa dessas com você — falei para ele.
— Ah, eu não ia me importar, Hazel Grace. Seria uma honra ter o coração partido por você.

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