segunda-feira, 3 de junho de 2013

A culpa é das estrelas- John Green- Parte 6- final

Depois que a Julie, a irmã dele, falou, a cerimônia foi encerrada com uma oração que falava sobre a união de Gus com Deus, e aí eu pensei no que ele tinha dito no Oranjee, que não acreditava em mansões e harpas, mas que acreditava, sim, em Algo com A maiúsculo, então tentei imaginá-lo em Algum lugar com A maiúsculo enquanto rezávamos, mas mesmo naquele momento não consegui me convencer direito de que nós dois ficaríamos juntos de novo. Eu já conhecia muitas pessoas mortas. Sabia que agora o tempo passaria para mim de um jeito diferente do que passaria para ele. Que eu, como todas as pessoas naquele ambiente, seguiria acumulando amores e perdas enquanto ele, não. E para mim aquela era a tragédia final e verdadeiramente insuportável: como todos os inumeráveis mortos, ele havia sido, de uma vez por todas, rebaixado de assombrado para assombração.
E aí um dos cunhados do Gus havia levado um aparelho de som portátil e eles botaram para tocar uma música que o Gus havia escolhido: uma canção triste e lenta do The Hectic Glow chamada ‚The New Partner‛. Sinceramente, tudo o que eu queria era ir para casa. Eu não conhecia quase nenhuma daquelas pessoas, e podia sentir os olhinhos do Peter Van Houten olhando detidamente para meus ombros expostos, mas, depois que a música terminou, todos tiveram de vir até mim e me dizer que o que eu falei foi lindo e que aquela tinha sido uma cerimônia adorável, o que era mentira: aquilo era uma cerimônia de enterro. E se parecia com qualquer outra cerimônia de enterro.
Os carregadores do caixão dele — alguns primos, o pai, um tio, amigos que eu nunca tinha visto — se aproximaram e o seguraram, e todos começaram a andar na direção do carro funerário.
Quando mamãe, papai e eu entramos no carro, falei:              
— Não quero ir. Estou cansada.
— Hazel — mamãe disse.
— Mãe, não vai ter lugar para sentar, vai durar horas e eu estou exausta.
— Hazel, nós temos que ir pelo Sr. e pela Sra. Waters — mamãe argumentou.
— É só que… — falei.
Eu me senti muito pequena no banco traseiro do carro, por algum motivo. Eu meio que queria ser pequena. Queria ter seis anos ou coisa parecida.
— Tá bem — falei.
Fiquei só olhando pela janela por um tempo. Eu realmente não queria ir. Não queria vê-los baixando o Gus para debaixo da terra, no local que ele havia escolhido com o pai; não queria ver os pais dele caindo de joelhos na grama úmida de orvalho e gemendo de dor, não queria ver a barriga alcoólatra do Peter Van Houten estufada no terno de linho, não queria chorar na frente de um monte de gente, não queria jogar um bocado de terra na sepultura dele, não queria que meus pais tivessem que ficar ali debaixo daquele céu azul e límpido com a luminosidade do entardecer e sua certa obliquidade, pensando que chegaria o dia deles, o da filha deles, do meu lote, do meu caixão e da minha terra.
Mas fiz tudo isso. Tudo isso e muito mais, porque mamãe e papai achavam que devíamos.
* * *
Assim que terminou, o Van Houten andou até onde eu estava, colocou a mão gorda no meu ombro e disse:
— Posso pegar uma carona com você? Deixei meu carro alugado lá no pé da ladeira.
Dei de ombros e ele abriu a porta de trás na mesma hora em que meu pai destrancou o carro.
Lá dentro, ele se inclinou entre os bancos da frente e disse:
— Peter Van Houten: Romancista Emérito e Desapontador Semiprofissional.
Meus pais se apresentaram. Ele os cumprimentou com um aperto de mão. Eu estava bastante surpresa pelo fato de o Peter Van Houten ter
voado meio mundo para comparecer a um enterro.
— Como é que você…. — comecei, mas ele me cortou.
— Utilizei sua Internet infernal para acompanhar o obituário de Indianápolis. — Ele colocou a mão dentro do terno de linho e tirou de lá uma garrafa de uísque de 750 ml.
— E simplesmente comprou uma passagem de avião e…
Ele me interrompeu de novo enquanto desenroscava a tampa.
— Paguei 15 mil por uma passagem de primeira classe, mas sou suficientemente capitalizado para me dar a esses luxos. E as bebidas no voo são de graça. Dependendo da sua ambição, dá quase para ficar no zero a zero.
O Van Houten deu uma golada no uísque e depois chegou o corpo para a frente, a fim de oferecê-lo ao meu pai, que reagiu dizendo:
— Ah, não, obrigado.
Em seguida, o Van Houten fez um gesto com a garrafa na minha direção. Eu a segurei.
— Hazel — minha mãe disse, mas eu desenrosquei a tampa e bebi um pouco. Aquilo fez meu estômago se sentir como meus pulmões.
Entreguei a garrafa de volta para o Van Houten, que entornou um bocado para dentro e falou:
— Então. Omnis cellula e cellula.
— Hein?
— Seu namorado Waters e eu nos correspondemos um pouquinho, e em sua última…
— Peraí, você lê cartas de fãs agora?
— Não, ele mandou a carta para a minha casa, e não através do meu editor. E eu não poderia chamá-lo de fã. Ele me desprezava. Mas, de qualquer forma, ele insistiu muito no fato de que eu seria absolvido de meu mau comportamento se comparecesse ao enterro dele e dissesse a você o que acontece com a mãe da Anna. Então, aqui estou, e eis sua resposta: Omnis cellula e cellula.
— O quê? — perguntei de novo.
— Omnis cellula e cellula — ele falou mais uma vez. — Toda célula
procede de outra célula. Toda célula nasce de uma que a antecede, que se formou a partir de uma anterior. A vida procede da vida. Vida gera vida gera vida gera vida gera vida.
Chegamos ao pé da ladeira.
— Tá. Então tá — falei.
Eu não estava com disposição para aturar aquilo. O Peter Van Houten não ia desviar todas as atenções para ele no enterro do Gus. Eu não o deixaria fazer isso.
— Obrigada — falei. — Bem, acho que já chegamos à base da ladeira.
— Você não quer ouvir uma explicação para isso? — ele perguntou.
— Não. Estou satisfeita. O que eu acho é que você é um alcoólatra patético que fala coisas difíceis para chamar a atenção como se fosse um garoto de onze anos precoce, e eu sinto muita pena de você. Mas, pois é, não, você não é mais o cara que escreveu Uma aflição imperial, por isso não poderia escrever a continuação dele mesmo se quisesse. Mas obrigada, mesmo assim. Tenha uma vida excelente.
— Mas…
— Obrigada pelo goró — falei. — Agora saia do carro.
Ele estava com aquela expressão de criança sendo repreendida. O papai havia parado o carro e nós ficamos ali parados abaixo do túmulo do Gus por um minuto até que o Van Houten abriu a porta e, finalmente em silêncio, saiu.
Enquanto nos afastávamos com o carro, olhei pela janela traseira e o vi dar um gole na bebida e levantar a garrafa na minha direção, como se estivesse brindando a mim. Os olhos dele estavam muito tristes. Tive um pouco de pena, para ser sincera.
* * *
Por fim, chegamos de volta à nossa casa perto das seis, e eu estava exausta. Só queria dormir, mas mamãe me fez comer um pouco de macarrão com queijo. Pelo menos ela deixou que eu comesse na cama. Dormi algumas horas com o BiPAP. Acordar foi um horror, porque, por um momento de
desorientação, tive a sensação de que tudo estava bem, mas logo depois me senti sendo esmagada de novo. Mamãe me tirou do BiPAP, eu me conectei a um cilindro portátil e segui aos trancos e barrancos até o meu banheiro para escovar os dentes.
Ao me olhar no espelho enquanto escovava os dentes, fiquei pensando que existiam dois tipos de adultos: os Peter Van Houtens — criaturas desprezíveis que varriam a Terra à procura de algo a que magoar, e pessoas como meus pais, que andavam de um lado para outro como zumbis, fazendo o que quer que tivessem de fazer para continuar andando de um lado para outro.
Nenhum desses futuros me pareceu particularmente almejável. Eu me sentia como se já tivesse visto tudo o que há de mais puro e bom no mundo e começava a suspeitar de que, mesmo se a morte não tivesse atrapalhado o andar da carruagem, o tipo de amor que eu e o Augustus compartilhamos não teria durado. Assim a aurora se transforma em dia, o poeta escreveu. Nada que é dourado fica. Alguém bateu na porta do banheiro.
— Está ocupado — falei.
— Hazel — meu pai disse. — Posso entrar?
Não respondi, mas depois de um tempo destranquei a porta. E me sentei no vaso sanitário com a tampa fechada. Por que o ato de respirar precisava ser tão trabalhoso? Papai se ajoelhou ao meu lado. Ele segurou minha cabeça, puxou-a até encostar no ombro dele, e disse:
— Sinto muito pela morte do Gus.
Eu me senti meio que sufocada pela camisa de malha dele, mas a sensação de ser segurada com tanta intensidade era boa demais, aninhada no cheiro familiar do meu pai. Era quase como se ele estivesse com raiva ou coisa assim, e gostei disso, porque eu também estava.
— É tudo uma grande palhaçada — ele disse. — A coisa toda. Uma taxa de sobrevivência de oitenta por cento e ele está nos vinte por cento? Palhaçada. Ele era um garoto tão brilhante! É uma palhaçada. Odeio isso. Mas com certeza foi um privilégio poder amar o Gus, não foi?
Fiz que sim com a cabeça, encostada na camisa dele.
— Isso lhe dá uma ideia de como me sinto em relação a você — ele disse.
Meu velho e amado pai. Sempre sabia a coisa certa a dizer.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
lguns dias depois, me levantei por volta do meio-dia e fui de carro até a casa do Isaac. Ele mesmo veio abrir a porta.
— Minha mãe levou o Graham ao cinema — ele disse.
— Nós deveríamos fazer alguma coisa — falei.
— Essa alguma coisa pode ser jogar videogames para cegos no sofá?
— É, essa é exatamente a alguma coisa que eu tinha em mente.
Então ficamos sentados ali umas duas horas juntos, falando com a tela, navegando por uma caverna labiríntica invisível sem um lúmen de luz sequer. A parte mais divertida do jogo era, de longe, tentar fazer o computador estabelecer um diálogo engraçado com a gente:
Eu: ‚Encoste na parede da caverna.‛
Computador: ‚Você encosta na parede da caverna. Ela está úmida.‛
Isaac: ‚Lamba a parede da caverna.‛
Computador: ‚Não compreendo. Fale de novo?‛
Eu: ‚Dê um amasso na parede úmida da caverna.‛
Computador: ‚Você tenta dar um passo. Você bate com a cabeça.‛
Isaac: ‚Não é dê um passo. É DÊ UM AMASSO.‛
Computador: ‚Não compreendo.‛
Isaac: ‚Cara, eu tenho estado sozinho nesta caverna escura há várias semanas e preciso me aliviar. DÊ UM AMASSO NA PAREDE DA CAVERNA.‛
Computador: ‚Sua tentativa de dar um pass…‛
Eu: ‚Pressione a pélvis com
tra a parede da caverna.‛
Computador: ‚Não com…‛
Isaac: ‚Faça amor com a caverna.‛
Computador: ‚Não com…‛
A
Eu: ‚TÁ BEM. Siga pelo ramo esquerdo.‛
Computador: ‚Você segue pelo ramo esquerdo. A passagem se estreita.‛
Eu: ‚Engatinhe.‛
Computador: ‚Você engatinha noventa metros. A passagem se estreita.‛
Eu: ‚Rasteje como uma cobra.‛
Computador: ‚Você rasteja como uma cobra por trinta metros. Um fio de água percorre seu corpo. Você alcança um monte de pedrinhas que bloqueiam o caminho.‛
Eu: ‚Posso dar um amasso na caverna agora?‛
Computador: ‚Você não pode dar um passo sem ficar de pé primeiro.‛
Isaac: ‚Eu não gosto de viver num mundo sem o Augustus Waters.‛
Computador: ‚Não compreendo…‛
Isaac: ‚Eu também não. Pausa.‛
* * *
Ele largou o controle no sofá, entre nós dois, e perguntou:
— Você sabe se ele sofreu, e tal? — Acho que fez um esforço enorme para respirar — falei — e acabou ficando inconsciente, mas parece que, é, não foi muito legal nem nada. Morrer é uma droga.
— É — o Isaac falou. E, depois de algum tempo: — É que parece tão impossível…
— Acontece o tempo todo — falei.
— Você está com raiva — ele disse.
— É.
Nós dois ficamos ali sentados por um bom tempo, numa boa, e eu fiquei pensando no início de tudo no Coração Literal de Jesus, quando o Gus nos disse que tinha medo do esquecimento e eu falei que ele estava com medo de algo universal e inevitável, e que, na verdade, o problema não é o sofrimento nem o esquecimento em si, mas a ausência imoral de sentido nisso tudo, o niilismo absolutamente inumano do sofrimento.
Pensei no meu pai me dizendo que o universo quer ser notado. Mas o que nós queremos é ser notados pelo universo, fazer com que o universo dê alguma bola para o que acontece com a gente — não a ideia coletiva de vida senciente, mas cada um de nós, como indivíduos.
— O Gus amava você de verdade, sabe — ele falou.
— Sei.
— Ele não conseguia parar de falar nisso.
— Eu sei.
— Era irritante.
— Eu não achava irritante — falei.
— Ele chegou a te dar aquela coisa que ele estava escrevendo?
— Que coisa?
— A continuação, ou sei lá o quê, daquele livro que você gostava. Eu me virei para o Isaac.
— O quê?
— Ele disse que estava escrevendo alguma coisa para você mas que não era bom escritor.
— Quando foi que ele disse isso?
— Sei lá. Foi, tipo, em algum momento depois da volta de Amsterdã.
— Em que momento? — pressionei-o.
Será que Gus não teve a chance de completar? Será que tinha terminado e deixado no computador ou algo assim?
— Humm — o Isaac suspirou.

— Humm. Não sei. Nós falamos disso aqui, uma vez. Ele estava aqui, tipo… é, nós mexemos na minha máquina de e-mails e eu tinha acabado de receber um e-mail da minha avó. Posso procurar na máquina se você…
— Tá, tá, cadê?
* * *
Ele tinha falado daquilo um mês atrás. Um mês! Não um bom mês, devo reconhecer, mas ainda assim um mês. Era tempo suficiente para ter conseguido escrever pelo menos alguma coisa. Ainda havia algo dele, ou
pelo menos feito por ele, flutuando por aí. E eu precisava daquilo.
— Vou até a casa dele — falei para o Isaac.
Andei apressada até a minivan e arrastei o carrinho do oxigênio para o banco do carona. Liguei o carro. Uma batida de hip-hop começou a tocar alto no som e, quando estiquei a mão para mudar de estação, alguém começou a cantarolar um rap. Em sueco.
Eu me virei e gritei quando vi o Van Houten no banco de trás.
— Peço desculpas por alarmá-la — o Peter Van Houten disse, sua voz se misturando com o som do rap.
Ele ainda estava com o terno que tinha usado no enterro, quase uma semana depois. Seu cheiro era de quem tinha álcool saindo pelos poros junto com o suor.
— Você pode ficar com o CD — ele disse. — É o Snook. Na Suécia ele é um dos maiores….
— Ai ai ai ai SAIA DO MEU CARRO.
Desliguei o rádio.
— Este carro é da sua mãe, se bem entendi — ele disse. — Além disso, não estava trancado.
— Ai, meu Deus! Saia do carro senão vou chamar a polícia. Cara, qual é o seu problema?
— Se pelo menos houvesse só um — ele divagou. — Só estou aqui para pedir desculpas. Você estava certa quando observou, anteriormente, que sou um homem patético e dependente do álcool. Uma conhecida minha só passava algum tempo comigo porque eu a pagava para fazê-lo. E o pior é que ela se demitiu, deixando-me, a alma rara que não consegue companhia nem mediante suborno. É tudo verdade, Hazel. Tudo isso e muito mais.
— Tá — falei.
Teria sido um discurso mais tocante se ele não tivesse engrolado as palavras.
— Você me lembra a Anna.
— Eu lembro muita gente a muita gente — respondi. — Realmente preciso ir.
— É só dirigir — ele disse.
— Saia.
— Não. Você me lembra a Anna — ele disse de novo.
Depois de um segundo, engatei a marcha à ré e comecei a andar com o carro. Eu não estava conseguindo fazê-lo sair, e não precisava continuar tentando. Iria até a casa do Gus e os pais do Gus o fariam ir embora.
— Obviamente você está familiarizada — o Van Houten disse — com Antonietta Meo.
— Não — falei.
Liguei o rádio e o hip-hop sueco tocou alto, mas o Van Houten gritou mais alto ainda.
— Ela poderá se tornar, em breve, a santa não mártir mais jovem a ser beatificada pela Igreja Católica. Teve o mesmo câncer que o Sr. Waters, osteossarcoma. Eles amputaram a perna direita dela. A dor era excruciante. Enquanto Antonietta Meo estava à beira da morte, na tenra idade de seis anos, por causa desse câncer agonizante, disse para o pai: ‚A dor é como um tecido. Quanto mais forte, mais valioso.‛ Isso é verdade, Hazel?
Eu não estava olhando diretamente para ele, mas para seu reflexo no espelho.
— Não — gritei mais alto que a música. — Isso é bobagem.
— Mas você não gostaria que fosse verdade? — ele gritou em resposta.
Eu desliguei o som.
— Sinto muito por ter estragado sua viagem. Vocês eram tão jovens… Vocês eram…
Ele começou a chorar. Como se tivesse algum direito de chorar pela morte do Gus. O Van Houten era apenas mais um dos diversos pranteadores que não o conheciam, mais um lamento que chegou tarde demais em seu mural.
— Você não estragou nossa viagem, seu filho da mãe convencido. Nossa viagem foi maravilhosa.
— Estou tentando — ele disse. — Estou tentando, juro.
Foi mais ou menos nessa hora que acabei me dando conta de que o Peter Van Houten tinha perdido alguém da família. Pensei na honestidade com a qual ele havia escrito a respeito de crianças com câncer; no fato de não ter conseguido falar comigo e só perguntado se eu tinha me vestido como a Anna de propósito; toda aquela baboseira que ele jogou para cima de mim e do Augustus; a pergunta dolorosa dele sobre a relação entre a gravidade da dor e seu valor. Ele chegou o corpo para trás e continuou sentado, bebendo, um velho que vinha bebendo havia vários anos. Lembrei de uma estatística que preferia não conhecer: metade dos casamentos terminam no ano que se segue à morte de um filho. Olhei para trás, para o Van Houten. Eu estava percorrendo a Avenida College, aí encostei atrás de uma fileira de carros estacionados e perguntei.
— Você teve um filho que morreu?
— Minha filha — ele disse. — Tinha oito anos. Sofreu lindamente. Nunca será beatificada.
— Ela teve leucemia? — perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Como a Anna — falei.
— Sim, exatamente como a Anna.
— Você era casado?
— Não. Bem, não quando ela morreu. Eu me tornei uma pessoa insuportável muito antes de nós a perdermos. A tristeza não nos muda, Hazel. Ela nos revela.
— Você morava com ela?
— Não, não no início, embora no fim nós a tenhamos levado para Nova York, onde eu estava morando, para uma série de torturas experimentais que aumentaram o sofrimento de seus dias sem aumentá-los em número.
Depois de um segundo, eu falei:
— Então é como se você tivesse dado a ela uma segunda vida na qual conseguiu chegar à adolescência.
— Suponho que essa seja uma avaliação razoável — ele disse, e então logo acrescentou:
— Presumo que você esteja familiarizada com o exercício mental de Philippa Foot intitulado ‚dilema do bonde‛?
— E aí eu apareço na sua casa, vestida como a menina que você esperava que ela viveria para se tornar, e você fica, tipo, desconcertado.
— Em determinada linha, há um bonde desgovernado — ele disse.
— Não dou a mínima para o seu exercício mental idiota — falei.
— É o exercício da Philippa Foot, na verdade.
— Bem, nem para o dela.
— Ela não entendia por que aquilo estava acontecendo — ele disse. — Tive de contar para ela que iria morrer. A assistente social falou que eu precisava contar. Precisei lhe dizer que iria morrer, então falei que ela iria para o céu. Ela perguntou se eu estaria lá, então respondi que não, não naquele momento. Mas algum dia, ela quis saber, e prometi que sim, claro, muito em breve. E falei que naquele ínterim haveria uma ótima família lá em cima que tomaria conta dela. Ela me perguntou quando eu iria para lá, e respondi que seria logo. Vinte e dois anos atrás.
— Sinto muito.
— Eu também.
Depois de um tempo, perguntei:
— O que aconteceu com a mãe dela?
Ele sorriu.
— Você ainda está em busca de uma continuação, sua danadinha.
Sorri também.
— Você deveria voltar para casa — falei para ele. — Fique sóbrio. Escreva outro livro. Faça aquilo no qual você é bom. Nem todo mundo tem essa sorte de ser bom em alguma coisa. Ele ficou olhando fixamente para mim pelo espelho durante um bom tempo.
— Certo — ele disse. — Está bem. Você tem razão. Você tem razão. Mas, mesmo ao dizer isso, tirou do bolso a garrafa de uísque quase vazia. Bebeu, recolocou a tampa na garrafa e abriu a porta.
— Tchau, Hazel. — Fique bem, Van Houten.
Ele se sentou no meio-fio atrás do carro. Enquanto eu o via encolher pelo espelho retrovisor, ele pegou a garrafa e por um instante pareceu que
iria deixá-la no meio-fio. Mas então tomou outro gole.
* * *
Era uma tarde quente em Indianápolis, o ar carregado e estático como se estivéssemos dentro de uma nuvem. Era o pior tipo de ar para mim, e tentei me convencer de que era só o ar quando a caminhada da entrada de veículos até a porta da casa do Gus pareceu infinita. Toquei a campainha e a mãe dele abriu a porta.
— Ah, Hazel — ela disse, e me abraçou chorando.
Ela me fez acompanhá-la e ao pai do Gus comendo um pouco de lasanha de berinjela — acho que muita gente tinha levado comida até lá, e tal.
— Como você está?
— Sinto falta dele.
— É.
Eu não sabia bem o que dizer. Tudo o que queria era ir lá embaixo e procurar o que quer que ele tivesse escrito para mim. Além disso, o silêncio naquele ambiente realmente me incomodava. Queria que eles estivessem conversando um com o outro, se consolando ou de mãos dadas ou sei lá. Mas eles só ficavam lá sentados, comendo porções muito pequenas de lasanha, sem nem se dirigir o olhar.
— O céu precisava de um anjo — o pai dele disse depois de um tempo.
— Eu sei — falei.
Aí as irmãs dele e seus filhos bagunceiros chegaram e invadiram a cozinha. Eu me levantei e as abracei, e depois fiquei vendo as crianças correrem pela cozinha com seu excesso extremamente necessário de barulho e movimento, moléculas excitadas se chocando umas contra as outras e gritando:
Tá com você não tá com você não estava comigo mas aí eu peguei você você não me pegou você nem chegou a encostar em mim então estou pegando você agora não seu bundão porque agora nós estamos dando um
tempo DANIEL NÃO CHAME SEU IRMÃO DE BUNDÃO Mãe se eu não posso dizer essa palavra por que você acabou de falar bundão bundão — e então, em coro, bundão bundão bundão bundão, e, à mesa, os pais do Gus estavam agora de mãos dadas, o que me fez sentir um pouco melhor.
— O Isaac me disse que o Gus estava escrevendo uma coisa, uma coisa para mim — falei.
As crianças ainda estavam cantando o melô do bundão.
— Podemos dar uma olhada no computador dele — a mãe do Gus disse.
— Ele não usou muito o computador nas últimas semanas — falei.
— É verdade. Não tenho nem certeza se o trouxemos aqui para cima. Ainda está no porão, Mark?
— Não faço ideia.
— Bem — falei —, será que posso…
Fiz um gesto com a cabeça na direção do porão.
— Ainda não estamos preparados — o pai dele disse. — Mas, claro que sim, Hazel. É claro que você pode.
* * *
Andei até lá embaixo, passei pela cama desarrumada, pelas poltronas do videogame abaixo da TV. O computador dele ainda estava ligado. Cliquei no mouse para ativá-lo e então procurei pelos arquivos editados mais recentemente. Nada no último mês. A coisa mais recente era uma resenha do livro O olho mais azul, de Toni Morrison.
Talvez ele tivesse escrito algo à mão. Andei até as prateleiras de livros, procurando um diário ou bloco ou caderno. Nada. Folheei o exemplar dele do Uma aflição imperial. O Gus não havia deixado uma marquinha sequer no livro. Em seguida andei até a mesa de cabeceira. Mayhem infinito, o nono volume da série ‚O preço do alvorecer‛, estava em cima da mesa ao lado do abajur, a página 138 com uma orelha dobrada.
Ele nem conseguiu chegar ao fim do livro.
— Para acabar com o suspense: o Mayhem sobrevive — falei alto,
caso ele conseguisse me ouvir.
E aí eu deitei na cama desarrumada, me enrolando no edredom como um casulo, me envolvendo no cheiro dele. Tirei a cânula para poder sentir melhor aquele cheiro, inspirando e expirando o Gus, o aroma já se dissipando mesmo enquanto eu ainda estava deitada lá, meu peito queimando até eu não poder diferenciar as dores.
Eu me sentei na cama depois de um tempo, reinseri minha cânula e respirei por alguns minutos antes de subir as escadas. Só o que fiz foi balançar a cabeça negativamente em resposta aos olhares de expectativa dos pais dele. As crianças passaram por mim correndo. Uma das irmãs do Gus, eu não sabia ainda dizer quem era quem, falou:
— Mãe, você quer que eu os leve para o parque ou algo assim?
— Não, não, está tudo bem.
— Há algum outro lugar no qual o Gus possa ter colocado um bloco ou caderno? Tipo, ao lado da cama de hospital, quem sabe? A cama já tinha sido retirada de lá, como requisitado pelo hospital.
— Hazel — o pai dele falou —, você esteve aqui conosco todos os dias… ele não ficava muito tempo sozinho, querida. Não teria tido tempo de escrever nada. Sei que você quer… Quero isso também. Mas as mensagens que ele nos deixa agora estão vindo lá de cima, Hazel.
Ele apontou para o teto, como se o Gus estivesse pairando sobre a casa. Talvez estivesse. Não sei. Mas não conseguia sentir a presença dele.
— É — falei.
Prometi visitá-los novamente dali a alguns dias.
Nunca mais senti o cheiro dele de novo.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
rês dias depois, no terceiro dia DG, o pai do Gus me ligou de manhã. Eu ainda estava conectada ao BiPAP, por isso não atendi, mas ouvi o recado deixado na caixa postal assim que o celular apitou avisando do recebimento.
‚Hazel, oi, aqui é o pai do Gus. Eu achei um Moleskine preto no revisteiro que estava do lado da cama de hospital, acho que próximo o suficiente para ele alcançá-lo. Infelizmente não há nada escrito nele. As páginas estão todas em branco. Mas as primeiras, acho que umas três ou quatro, foram arrancadas. Vasculhamos a casa toda à procura delas, mas não as encontramos. Por isso não sei o que pensar. Mas talvez fosse a essas páginas que o Isaac estava se referindo. De qualquer forma, espero que esteja bem. Você está em nossas orações todos os dias, Hazel. Então, tá. Um beijo. Tchau.‛
Três ou quatro páginas arrancadas de um Moleskine e que não estavam mais na casa do Augustus Waters. Onde ele as teria deixado para mim? Presas com fita adesiva nos Ossos Maneiros? Não, ele não estava em condições de ir até lá. O Coração Literal de Jesus. Talvez ele tivesse deixado as páginas lá para mim no seu Último Dia Bom.
Por causa disso, saí para ir ao Grupo de Apoio no dia seguinte vinte minutos mais cedo. Fui dirigindo até a casa do Isaac, ele entrou no carro e nós seguimos para o Coração Literal de Jesus com as janelas da minivan abertas, ouvindo o novo álbum do The Hectic Glow, recentemente disponibilizado na rede. Que o Gus nunca ouviria.
Pegamos o elevador. Guiei o Isaac até uma cadeira na Roda da Esperança e depois fui percorrendo vagarosamente todo o Coração Literal. Olhei em todos os lugares: debaixo das cadeiras, em volta do púlpito atrás do qual eu tinha ficado enquanto lia meu elogio fúnebre, debaixo da mesa
T
de biscoitos, no quadro de avisos cheio de desenhos do amor divino feitos pelas crianças que frequentavam a escola dominical. Nada. Aquele foi o único lugar onde tínhamos estado juntos nos últimos dias, além da casa dele. Ou as páginas não estavam ali ou eu estava esquecendo de procurar em algum lugar. Talvez ele as tivesse deixado para mim no hospital, mas, se fosse esse o caso, elas com certeza foram jogadas fora depois da morte dele.
Eu estava realmente sem fôlego quando, por fim, me sentei numa cadeira ao lado do Isaac, e me dediquei, durante todo o depoimento da ausência de bolas do Patrick, a dizer a meus pulmões que eles estavam bem, que podiam respirar, que havia oxigênio suficiente. O líquido deles havia sido drenado uma semana antes da morte do Gus. Fiquei vendo a água cancerosa cor de âmbar pingar para fora de mim pelo tubo. E mesmo assim tinha a sensação de que estavam cheios de novo. Fiquei tão concentrada em dizer a mim mesma para respirar que, num primeiro momento, não reparei que o Patrick tinha dito o meu nome. Retomei a atenção num estalo.
— Sim? — perguntei.
— Como você está?
— Estou bem, Patrick. Um pouco sem fôlego.
— Gostaria de compartilhar com o grupo uma lembrança que tem do Augustus?
— Eu só queria poder morrer, Patrick. Alguma vez você já sentiu vontade de simplesmente morrer?
— Já — o Patrick disse, sem fazer a pausa costumeira. — Já, é claro. Então por que você não morre?
Pensei naquilo. Minha resposta, retirada de um estoque antigo, era que eu queria continuar viva pelos meus pais, porque eles ficariam arrasados e sem filhos depois de mim, e aquilo ainda era meio verdade, mas não era bem isso, exatamente.
— Não sei.
— Porque você tem esperança de melhorar?
— Não — falei. — Não, não é isso. Eu realmente não sei. Isaac? —
passei a bola.
Estava cansada de falar.
O Isaac começou a falar do amor verdadeiro. Eu não poderia dizer a eles o que tinha em mente porque soava brega, mas o que eu estava pensando era no universo querendo ser notado e em como eu havia reparado nele da melhor forma possível. Eu me sentia em dívida com o universo, uma dívida que só a minha atenção poderia saldar, e, além disso, me sentia em dívida com todo mundo que deixou de ser uma pessoa e com todo mundo que ainda não tinha chegado a ser uma pessoa. Tudo o que meu pai tinha me dito, basicamente.
Fiquei em silêncio até o fim da reunião do Grupo de Apoio, o Patrick me dedicou uma oração especial, o nome do Gus foi adicionado à longa lista de mortos — quatorze para cada um de nós — todos prometemos viver o melhor da nossa vida hoje, e aí eu levei o Isaac para o carro.
* * *
Quando cheguei de volta à minha casa, mamãe e papai estavam à mesa de jantar, cada um com seu laptop, e assim que entrei pela porta mamãe fechou a tampa do dela.
— O que tem no computador?
— Só algumas receitas antioxidantes. Preparada para o BiPAP e para o America’s Next Top Model? — ela perguntou.
— Só vou me deitar um minuto.
— Você está bem?
— Estou, só um pouco cansada.
— Bem, você precisa comer antes de…
— Mãe, eu não estou com a menor fome.
Dei um passo na direção da porta, mas ela me parou.
— Hazel, você precisa comer. Só um pouco de…
— Não. Estou indo deitar.
— Não — mamãe falou. — Você não vai. Olhei para o meu pai, que só deu de ombros.
— É a minha vida — falei.
— Você não vai ficar com fome até morrer só porque o Augustus se foi. Você vai jantar.
Fiquei muito irritada, por algum motivo.
— Eu não consigo comer, mãe. Não consigo. Tá?
Tentei passar por ela, mas a mamãe me segurou pelos ombros e disse:
— Hazel, você vai jantar. Você precisa se manter saudável.
— NÃO! — gritei. — Não vou jantar e não posso me manter saudável porque não sou saudável. Estou morrendo, mãe. Vou morrer e deixar você aqui sozinha, e você não vai mais ter uma ‚eu‛ para pairar em torno, e você não vai mais ser mãe, e eu sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer a respeito, tá?!
Eu me arrependi de ter dito aquilo assim que fechei a boca. — Você ouviu o que eu disse.
— O quê?
— Você ouviu quando eu disse isso ao seu pai? — Ela arregalou os olhos. — Você escutou? — Eu fiz que sim. — Ai, meu Deus, Hazel. Sinto muito. Eu estava errada, querida. Aquilo não era verdade. Eu falei num momento de desespero. Não é algo em que eu acredite. — ela disse e se sentou, e eu me sentei junto.
Fiquei pensando que deveria simplesmente ter vomitado algum macarrão por ela, em vez de ter ficado tão irritada.
— Em que você acredita, então? — perguntei.
— Enquanto uma de nós estiver viva, eu serei sua mãe — ela falou. — Mesmo se você morrer, eu…
— Quando — falei.
Ela assentiu com a cabeça.
— Mesmo quando você morrer, eu ainda serei sua mãe, Hazel. Não vou deixar de ser sua mãe. Você deixou de amar o Gus?
Balancei a cabeça negativamente.
— Bem, então como eu poderia deixar de amar você?
— Tá — falei. Meu pai começou a chorar.
— Eu quero que vocês vivam a vida de vocês — continuei. — Eu fico
com medo de vocês não terem uma vida para viver, de ficarem sentados aqui o dia todo sem um ‚eu‛ para cuidar, olhando para as paredes, querendo dar o fora.
Depois de um minuto, a mamãe disse:
— Eu estou fazendo um curso. A distância, da Universidade de Indiana. Para obter um diploma de mestrado em serviço social. Na verdade, eu não estava lendo receitas de antioxidantes; estava fazendo um trabalho do curso.
— Sério?
— Não quero que pense que estou imaginando um mundo sem você. Mas se conseguir o mestrado poderei ajudar famílias que estejam em momentos difíceis ou liderar grupos que lidam com as doenças dos familiares deles ou…
— Peraí, você vai virar um Patrick?
— Bem, não exatamente. Existem vários tipos de trabalho de assistência social.
Papai falou:
— Nós dois ficamos preocupados achando que você poderia se sentir abandonada. É importante que você saiba que sempre estaremos aqui para você, Hazel. Sua mãe não vai a lugar algum.
— Não, isso é ótimo. Isso é fantástico! — Eu estava sorrindo de verdade. — A mamãe vai virar um Patrick. Ela vai ser um ótimo Patrick! Ela vai ser tão melhor nisso que o Patrick!
— Obrigada, Hazel. Isso significa muito para mim.
Eu balancei a cabeça. E comecei a chorar. Não consegui conter a felicidade que estava sentindo, chorando lágrimas verdadeiras de felicidade pela primeira vez em sei lá quanto tempo, imaginando minha mãe como um Patrick. Aquilo me fez pensar na mãe da Anna. Ela também teria dado uma ótima assistente social. Depois de um tempo, ligamos a TV e assistimos ao ANTM. Mas dei uma pausa no programa cinco segundos após o início porque tinha várias perguntas a fazer para a mamãe.
— Quanto falta para você terminar o curso?
— Se eu for a Bloomington e passar uma semana lá nesse verão, pode
ser que consiga terminar em dezembro.
— Há quanto tempo exatamente você vem escondendo isso de mim?
— Há um ano.
— Mãe.
— Eu não queria magoar você, Hazel. Incrível.
— Então, quando você está esperando por mim do lado de fora do MCC ou do Grupo de Apoio ou sei lá o quê, você está sempre…
— Estou. Fazendo trabalhos ou lendo.
— Isso é tão maravilhoso! Quando eu morrer, quero que você saiba que estarei suspirando para você lá do céu cada vez que pedir a alguém que compartilhe seus sentimentos.
Meu pai riu.
— E eu vou estar com você, filha — ele me garantiu.
Por fim, assistimos ao ANTM. O papai fez um esforço enorme para não morrer de tédio e toda hora confundia quem era quem entre as garotas, e perguntava:
— Nós gostamos dessa?
— Não, não. Nós odiamos a Anastasia. Nós gostamos da Antonia, a outra loira — a mamãe explicou.
— Elas todas são altas e horríveis — papai retrucou. — Perdão por não conseguir distingui-las.
Papai esticou o braço por cima do meu colo para pegar a mão da mamãe.
— Vocês acham que vão continuar juntos se eu morrer? — perguntei. — Hazel, o quê? Querida. — A mamãe procurou o controle remoto e deu uma pausa na TV de novo. — O que a preocupa?
— É só que, vocês acham que vão continuar juntos?
— Sim, é claro. É claro — o papai disse. — Sua mãe e eu nos amamos, e se perdermos você, vamos enfrentar isso juntos.
— Jure por Deus — falei.
— Eu juro por Deus — ele disse.
Olhei para a mamãe.
— Juro por Deus — ela concordou. — Mas por que é que você está
preocupada com isso?
— Só não quero estragar a vida de vocês nem nada.
A mamãe se inclinou para a frente e encostou o rosto no meu cabelo bagunçado, me beijando no alto da cabeça.
Falei para o papai:
— Não quero que você se torne um alcoólatra desempregado e patético ou coisa assim.
Minha mãe sorriu.
— Seu pai não é o Peter Van Houten, Hazel. Você, mais que qualquer pessoa, sabe que é possível conviver com a dor.
— É, tá — falei, e mamãe me abraçou, e eu deixei que ela fizesse isso, mesmo, no fundo, não querendo.
— Tá, você pode dar play agora — falei.
A Anastasia foi eliminada. Ela fez um escândalo. Foi incrível. Comi um pouco no jantar, farfalle com molho pesto, e consegui fazer com que a comida continuasse dentro de mim.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
cordei na manhã seguinte em pânico porque tinha sonhado que estava sozinha, dentro de um lago enorme, sem um barco. Levantei no susto, puxando o BiPAP com força para a frente, e senti a mão da mamãe em mim.
— Oi, você está bem?
Meu coração estava disparado, mas fiz que sim com a cabeça. Mamãe falou:
— A Kaitlyn está ao telefone e quer falar com você.
Apontei para o BiPAP. Ela me ajudou a tirá-lo e me conectou ao Felipe. Só então peguei o celular da mão da mamãe e disse:
— Oi, Kaitlyn.                        
— Só liguei para saber como está tudo — ela disse. — Para ver como você está indo.
— Ah, obrigada. Estou indo bem.
— Você simplesmente teve um azar enorme, amada. Isso é tão desarrazoado!
— Talvez — falei.
Eu não pensava muito mais na minha sorte ou no meu azar. Na verdade, não queria falar com a Kaitlyn sobre nada, mas ela insistia em puxar assunto.
— E então, como foi? — ela perguntou.
— Como foi a morte do meu namorado? Humm, uma droga.
— Não — ela falou. — Estar apaixonada.
— Ah — falei. — Ah. Foi… foi legal passar um tempo com alguém tão interessante. Nós éramos muito diferentes, e discordávamos em muitas coisas, mas ele era sempre tão interessante, sabe?
— Ai de mim, não sei. Os garotos que eu conheço são extremamente
A
desinteressantes.
— Ele não era perfeito nem nada. Ele não era um príncipe encantado de conto de fadas, e tal. Tentava ser assim às vezes, mas eu gostava mais dele quando essas coisas desapareciam.
— Você tem, tipo, um álbum com as fotos e as cartas que ele escreveu?
— Tenho algumas fotos, mas ele nunca chegou a me escrever nenhuma carta. Exceto, bem, há algumas páginas faltando no caderninho dele que podem ter sido algo para mim, mas acho que ele as jogou fora ou elas se perderam ou coisa assim.
— Talvez ele tenha mandado essas páginas pelo correio para você — ela disse.
— Não, elas já teriam sido entregues aqui.
— Então talvez não tenham sido escritas para você — ela falou. — Talvez… Quer dizer, não quero deixar você deprimida nem nada, mas talvez ele as tenha escrito para outra pessoa e colocado no correio…
— VAN HOUTEN! — gritei.
— Você está bem? Isso foi uma tosse?
— Kaitlyn, eu te amo. Você é um gênio. Tenho que ir agora.
Desliguei o telefone, rolei para o lado, peguei o laptop, apertei o botão de ligar e então escrevi um e-mail endereçado a Lidewij Vliegenthart.
Lidewij,
Acredito que o Augustus Waters tenha enviado algumas páginas do caderninho dele para o Peter Van Houten logo antes de ele (o Augustus) morrer. É muito importante para mim que alguém leia essas páginas. Eu quero lê-las, claro, mas talvez elas não tenham sido escritas para mim. De qualquer forma têm de ser lidas. Precisam ser lidas.
Você poderia me ajudar com isso?
Hazel Grace Lancaster
Ela respondeu no fim daquela tarde.
Querida Hazel,
Eu não sabia que o Augustus tinha morrido. Fiquei muito triste ao saber do acontecido. Ele era um jovem muito carismático. Sinto tanto. Estou tão triste. Não falei com o Peter desde que me demiti, naquele dia em que nos conhecemos. Está muito tarde aqui agora, mas irei até a casa dele amanhã cedo a fim de procurar essa carta e forçá-lo a lê-la. As manhãs costumavam ser a melhor hora para falar com ele. Sua amiga,
Lidewij Vliegenthart
PS: Levarei meu namorado comigo, para o caso de termos de conter o Peter fisicamente.
* * *
Fiquei me perguntando por que ele teria escrito para o Van Houten naqueles últimos dias em vez de para mim, dito que ele só seria absolvido se me desse a minha continuação. Talvez as páginas do caderninho só repetissem seu pedido ao Van Houten. Fazia sentido, o Gus usando sua terminalidade para realizar meu sonho: a continuação da história era um algo muito pequeno pelo qual morrer, mas foi o maior que restou à sua disposição. Atualizei meus e-mails sem parar aquela noite, dormi algumas horas, e então comecei a atualizar de novo lá pelas cinco da manhã. Mas não chegou nada.
Tentei ver TV para me distrair, mas minha cabeça ficava viajando de volta a Amsterdã, imaginando a Lidewij Vliegenthart e o namorado percorrendo a cidade de bicicleta numa louca missão à procura da última correspondência de um garoto morto. Como seria divertido ir sacudindo na traseira da bicicleta da Lidewij Vliegenthart pelas ruas de paralelepípedo, seu cabelo vermelho e ondulado sendo soprado em meu rosto, o cheiro dos canais e da fumaça dos cigarros, todas aquelas pessoas sentadas do lado de fora dos cafés bebendo cerveja, falando suas letras ‚R‛ e ‚G‛ de um jeito que eu jamais aprenderia…
Eu sentia falta do futuro. É claro que eu sabia, muito mesmo antes da recorrência dele, que nunca envelheceria ao lado do Augustus Waters. Mas ao pensar na Lidewij e em seu namorado, eu me senti roubada. Era muito provável que eu nunca mais fosse ver o oceano de uma altura de trinta mil pés de novo, uma distância tão grande que não dá nem para distinguir as ondas, nem nenhum barco, de um jeito que faz o oceano parecer um enorme e infinito monólito. Eu poderia imaginá-lo. Eu poderia me lembrar dele. Mas não poderia vê-lo de novo, e me ocorreu que a ambição voraz dos seres humanos nunca é saciada quando os sonhos são realizados, porque há sempre a sensação de que tudo poderia ter sido feito melhor e ser feito outra vez.
E mesmo se você conseguir chegar aos noventa anos, deve dar essa mesma sensação — embora eu inveje as pessoas que têm a oportunidade de comprovar isso. Mas, pensando bem, eu já tinha vivido o dobro do tempo que a filha do Van Houten. O que ele não teria dado para ter uma filha morta aos dezesseis anos…
De repente, a mamãe estava de pé entre mim e a TV, as mãos cruzadas nas costas.
— Hazel — ela disse.
Seu tom de voz era tão grave que achei que algo estava errado.
— Sim?
— Você sabe que dia é hoje?
— Não é meu aniversário, é?
Ela riu.
— Ainda não. Hoje é dia quatorze de julho, Hazel.
— É o seu aniversário?
— Não… — É o aniversário do Harry Houdini?
— Não…
— Cansei de tentar adivinhar, sério.
— É O DIA EM QUE SE COMEMORA A QUEDA DA BASTILHA!
Ela levou os braços à frente do corpo, revelando duas bandeirinhas de plástico da França e agitando-as entusiasticamente.
— Isso parece coisa inventada. Tipo o Dia da Consciência do Cólera.
— Garanto a você, Hazel: o dia da Queda da Bastilha não é uma invenção. Você sabia que há exatamente duzentos e vinte e três anos o povo da França invadiu a prisão da Bastilha para se armar e lutar por sua liberdade?
— Uau — falei. — Nós deveríamos mesmo comemorar esta data tão importante.
— Acontece que eu acabei de combinar com seu pai um piquenique no Holliday Park.
Ela nunca se cansava de tentar, a minha mãe. Empurrei o sofá com a mão e me levantei. Juntas reunimos alguns ingredientes para sanduíches e achamos uma cesta de piquenique empoeirada no armário do corredor.
* * *
O dia estava, tipo, lindo, finalmente verão de verdade em Indianápolis, quente e úmido — o tipo de clima que fazia você se lembrar, depois de um longo inverno, que ainda que o mundo não tivesse sido feito para os seres humanos, nós tínhamos sido feitos para o mundo. O papai estava esperando por nós, de terno bege, de pé na vaga para pessoas com deficiência, digitando em seu smartphone. Ele acenou para nós enquanto estacionávamos e depois me abraçou.
— Que dia! — ele disse. — Se morássemos na Califórnia, todos os dias seriam assim.
— É, mas aí você não daria valor a eles — minha mãe falou.
Ela estava errada, mas eu não a corrigi.
Acabamos colocando nossa toalha ao lado das Ruínas, o estranho retângulo de ruínas romanas plantado no meio de um campo em Indianápolis. Não são ruínas de verdade: são, tipo, uma recriação escultural de ruínas construída oitenta anos atrás, mas tinham sido tão malcuidadas que acabaram meio que virando ruínas de verdade por acidente. O Van Houten iria gostar das Ruínas. O Gus também.
Então nos sentamos à sombra das Ruínas e fizemos uma ‚boquinha‛.
— Você quer passar filtro solar? — a mamãe perguntou.
— Não, obrigada.
Dava para ouvir o vento balançando as folhas, e naquele vento viajavam os gritos das crianças no playground, a distância, descobrindo como continuar vivas, como percorrer um mundo que não foi feito para elas ao percorrer um playground que foi.
O papai me viu observando-as e perguntou:
— Você sente saudade de correr de um lado para outro desse jeito?
— Acho que sim, às vezes.
Mas não era nisso que eu estava pensando. Só estava tentando reparar em todos os detalhes: a luz nas Ruínas arruinadas, a criancinha que mal conseguia andar descobrindo um graveto no canto do playground, minha infatigável mãe ziguezagueando a mostarda no sanduíche de peru dela, meu pai dando batidinhas no smartphone no bolso e resistindo à tentação de dar uma espiada, um cara jogando um frisbee que seu cachorro ficava correndo para alcançar e depois levar de volta para ele.
Quem sou eu para dizer que essas coisas podem não durar para sempre? Quem é o Peter Van Houten para afirmar como verdade a conjectura de que nossa labuta é temporária? Tudo o que eu sei sobre o paraíso e tudo o que eu sei sobre a morte está naquele parque: um universo elegante em movimento constante, pululando com ruínas arruinadas e crianças estridentes. Meu pai começou a balançar a mão na frente do meu rosto.
— Sintonize, Hazel. Você está aí?
— Foi mal, é, o quê?
— A mamãe sugeriu que fôssemos ver o Gus.
— Ah. Tá — falei.
* * *
Então, depois do nosso almoço no parque, fomos de carro até o Cemitério Crown Hill, o último e derradeiro local de descanso de três vice-presidentes, de um presidente, e do Augustus Waters. Subimos a ladeira e
estacionamos. Os carros passavam atrás de nós na Rua 38. Foi fácil achar o túmulo do Gus: era o mais novo. A terra ainda estava amontoada. Nada de lápide por enquanto.
Não senti como se ele estivesse ali nem nada, mas, mesmo assim, peguei uma das bandeirinhas ridículas da mamãe e enfiei-a no chão, ao pé do túmulo. Talvez quem passasse por ali pensasse que o Gus tinha sido um integrante da legião estrangeira francesa ou algum mercenário heroico.
* * *
A Lidewij finalmente escreveu logo depois das seis da tarde, enquanto eu estava no sofá assistindo ao mesmo tempo à televisão e a alguns vídeos no meu laptop. Imediatamente pude ver que havia quatro arquivos anexados ao e-mail e quis abri-los primeiro, mas resisti à tentação e li a mensagem.
Querida Hazel,
O Peter estava muito bêbado quando chegamos à casa dele esta manhã, mas, de alguma forma, isso acabou tornando o nosso trabalho mais fácil. Bas (meu namorado) o distraiu enquanto eu vasculhava o saco de lixo no qual ele guarda as cartas dos fãs, mas aí eu me dei conta de que o Augustus sabia o endereço do Peter. Havia uma enorme pilha de cartas na mesa de jantar, onde logo encontrei a do Augustus. Abri o envelope e vi que estava endereçada ao Peter, por isso pedi a ele que a lesse.
Ele se recusou.
Fiquei com muita raiva naquela hora, Hazel, mas não gritei com o Peter. Em vez disso, falei que ele devia à filha morta a leitura da carta escrita por um garoto morto. Entreguei a carta ao Peter, ele leu tudo e disse — e aqui o cito fielmente, palavra por palavra: ‚Mande a carta para a menina e diga a ela que não tenho nada a acrescentar.‛
Eu não li a carta, embora meu olhar tenha capturado algumas frases enquanto escaneava as páginas. Eu as anexei a este e-mail e depois vou enviá-las pelo correio para a sua casa; seu endereço ainda é o mesmo?
Que Deus te abençoe e te guarde, Hazel.
Sua amiga,
Lidewij Vliegenthart
Cliquei e abri os quatro arquivos anexados. A letra dele estava confusa, inclinada, o tamanho variando, a cor da caneta mudando. Ele tinha escrito a carta durante vários dias, em graus de consciência variados.
Van Houten,
Sou uma pessoa boa, mas um escritor de merda. Você é uma pessoa de merda, mas um bom escritor. Nós formaríamos uma bela equipe. Não quero lhe pedir nenhum favor, mas, se tiver tempo — e pelo que vi, você tem tempo de sobra —, fiquei me perguntando se poderia escrever um elogio fúnebre para a Hazel. Tenho algumas anotações e tudo mais, mas se você pudesse transformá-las num texto completo e coerente, e tal… Ou então só me dizer o que eu deveria escrever de forma diferente.
O bom da Hazel é o seguinte: quase todo mundo é obcecado por deixar uma marca no mundo. Transmitir um legado. Sobreviver à morte. Todos queremos ser lembrados. Eu também.
É isso o que me incomoda mais, ser mais uma vítima esquecida na guerra milenar e inglória contra a doença.
Eu quero deixar uma marca.
Mas, Van Houten: as marcas que os seres humanos deixam são, com frequência, cicatrizes. Você constrói um shopping center medonho ou dá um golpe de Estado ou tenta se tornar um astro do rock e pensa: ‚Eles vão se lembrar de mim agora‛, mas: (a) eles não se lembram de você, e (b) tudo o que você deixa para trás são mais cicatrizes. Seu golpe de Estado se transforma numa ditadura. Seu shopping center acaba dando prejuízo.
(Tá, talvez eu não seja um escritor tão de merda assim. Mas não consigo organizar minhas ideias, Van Houten. Meus pensamentos são estrelas que eu não consigo arrumar em constelações.)
Nós somos como um bando de cães mijando em hidrantes. Nós envenenamos as águas subterrâneas com nosso mijo tóxico, marcando tudo
como MEU numa tentativa ridícula de sobreviver à morte. Eu não consigo parar de mijar em hidrantes. Sei que é tolice e inútil — epicamente inútil em meu estado atual —, mas sou um animal como qualquer outro.
A Hazel é diferente. Ela anda suavemente, meu velho. Ela anda suavemente sobre a Terra. A Hazel sabe qual é a verdade: é tão provável que nós consigamos ferir o universo quanto é provável que nós o ajudemos, e é improvável que façamos qualquer uma dessas duas coisas.
As pessoas vão dizer que é triste o fato de ela deixar uma cicatriz menor, que menos pessoas se lembrem dela, que ela tenha sido muito amada mas não por muita gente. Mas isso não é triste, Van Houten. É triunfante. É heroico. Não é esse o verdadeiro heroísmo? Como dizem os médicos: em primeiro lugar, não cause dano ou mal a alguém.
Os verdadeiros heróis, no fim das contas, não são as pessoas que realizam certas coisas; os verdadeiros heróis são as que REPARAM nas coisas. O cara que inventou a vacina contra varíola não inventou nada, na verdade. Ele só reparou que as pessoas que tinham varíola bovina não pegavam varíola.
Depois que a minha tomografia acendeu como uma árvore de natal, eu entrei furtivamente na UTI e vi a Hazel quando ainda estava inconsciente. Entrei andando atrás de uma enfermeira de crachá e consegui me sentar ao lado da Hazel por, tipo, uns dez minutos antes de ser pego. Eu realmente achei que ela fosse morrer antes que eu pudesse lhe contar que também ia morrer. Foi brutal: o arengar mecanizado incessante da terapia intensiva. Havia uma água cancerosa escura pingando do peito dela. Os olhos fechados. Entubada. Mas a mão dela ainda era a mão dela, ainda quente, as unhas pintadas de um azul-escuro quase preto, e eu simplesmente segurei sua mão e tentei imaginar o mundo sem nós, e por mais ou menos um segundo fui uma pessoa boa o suficiente para torcer que ela morresse e nunca ficasse sabendo que eu também ia morrer. Mas aí eu quis mais tempo para que pudéssemos nos apaixonar. Creio que meu desejo foi realizado. Eu deixei a minha cicatriz.
Um enfermeiro chegou e me disse que eu precisava me retirar, que visitas não eram permitidas, e eu perguntei se ela estava melhorando. O
cara disse: ‚Ela ainda está fazendo água.‛ Bênção do deserto, maldição do oceano.
O que mais? Ela é tão linda! Não me canso de olhar para ela. Não me preocupo se ela é mais inteligente que eu: sei que é. É engraçada sem nunca ser má. Eu a amo. Sou muito sortudo por amá-la, Van Houten. Não dá para escolher se você vai ou não vai se ferir neste mundo, meu velho, mas é possível escolher quem vai feri-lo. Eu aceito as minhas escolhas. Espero que a Hazel aceite as dela.
Eu aceito, Augustus.
Eu aceito.

A culpa é das estrelas- John Green- Parte 5

CAPÍTULO QUINZE
lguns dias depois, na casa do Gus, os pais dele, os meus pais, o Gus e eu estávamos todos espremidos à mesa de jantar, comendo pimentões recheados sobre uma toalha que, de acordo com o pai do Gus, tinha sido usada pela última vez no século passado.
Meu pai: ‚Emily, este risoto…‛
Minha mãe: ‚Está uma delícia.‛
Mãe do Gus: ‚Ah, obrigada. Terei o maior prazer em dar a receita para você.‛
Gus, engolindo uma garfada: ‚Sabe, o gosto que estou sentindo é não Oranjee.‛
Eu: ‚Bem observado, Gus. Esta comida, mesmo deliciosa, não tem o mesmo gosto da comida do Oranjee.‛
Minha mãe: ‚Hazel.‛
Gus: ‚Tem gosto de…‛
Eu: ‚Comida.‛
Gus: ‚É, exatamente. Tem gosto de comida, muito bem preparada. Mas o gosto não parece… como posso dizer isso de um jeito delicado…?‛
Eu: ‚Não parece que Deus, em pessoa, preparou o paraíso numa série de cinco pratos, os quais lhe foram servidos acompanhados de várias bolhas luminosas de plasma fermentado e espumante, enquanto pétalas de flores verdadeiras e literais flutuavam por toda a superfície do canal ao lado da sua mesa de jantar.‛
Gus: ‚Bem colocado.‛
Pai do Gus: ‚Nossos filhos são estranhos.‛ Meu pai: ‚Bem colocado.‛
* * *
A
Uma semana depois do nosso jantar, o Gus foi parar na Emergência com dores no peito e acabou sendo internado no meio da noite. Fui de carro até o Memorial na manhã seguinte e o visitei no quarto andar. Eu não ia ao Memorial desde a visita ao Isaac. Ali não havia nenhuma parede pintada com cores exageradamente vivas nem as pinturas emolduradas de cães ao volante de veículos que se via no Hospital Pediátrico, mas a esterilidade completa do lugar me fez sentir saudade daquela aura boba de ‚criança feliz‛. O Memorial era tão funcional… Era tipo um depósito. Um prematório.
Quando as portas do elevador se abriram no quarto andar, vi a mãe do Gus andando de um lado para outro na sala de espera, falando ao celular. Ela desligou rapidamente e me abraçou, se oferecendo para carregar meu carrinho.
— Não precisa, obrigada — falei. — Como está o Gus?
— Ele teve uma noite ruim, Hazel — ela respondeu. — O coração dele está sobrecarregado. O Gus precisa diminuir o ritmo. Daqui para a frente é só cadeira de rodas. Ele está sendo medicado com uma substância nova que deve funcionar melhor no combate à dor. As irmãs dele acabaram de parar o carro no estacionamento.
— Tá — falei. — Posso ver o Gus?
Ela colocou o braço no meu ombro e apertou-o com a mão. A sensação foi esquisita.
— Você sabe que nós a amamos, Hazel, mas nesse momento precisamos ficar apenas em família. O Gus concorda com isso. Tudo bem?
— Tudo — respondi.
— Vou dizer a ele que você esteve aqui.
— Tá — falei. — Só vou ficar por aí lendo um pouco, acho.
* * *
Ela andou até o fim do corredor, de volta ao lugar onde ele estava. Eu compreendia, mas ainda assim sentia falta dele e imaginava que talvez estivesse perdendo a última chance de ver o Gus, de me despedir, ou sei
lá. A sala de espera era toda forrada de carpete marrom e mobiliada com estofados de tecido marrom. Eu me sentei num sofá por um tempo, o carrinho do oxigênio enfiado debaixo dos meus pés. Eu tinha colocado meus Chuck Taylors e minha camiseta do Ceci n’est pas une pipe, o mesmo figurino que usei duas semanas antes no fim de tarde do diagrama de Venn, e ele nem ia ver. Comecei a olhar as fotos do meu celular, um álbum de trás para a frente dos últimos meses, começando com ele e o Isaac do lado de fora da casa da Monica, e terminando com a primeira foto que tirei dele, a caminho dos Ossos Maneiros. Parecia que tinha sido, tipo, há uma eternidade, como se tivéssemos vivido uma breve, mas infinita, eternidade. Alguns infinitos são maiores que outros.
* * *
Duas semanas depois, fui empurrando a cadeira de rodas do Gus pelo parque atrás do museu, em direção aos Ossos Maneiros, com uma garrafa cheia de um champanhe muito caro e meu cilindro de oxigênio no colo dele. O champanhe tinha sido doado por um dos médicos do Gus, o Gus sendo o tipo de pessoa que inspira médicos a darem suas garrafas de champanhe mais especiais para crianças. Ficamos ali sentados, ele na cadeira e eu na grama úmida, o mais perto dos Ossos Maneiros que conseguimos chegar com a cadeira de rodas. Apontei para as crianças que encorajavam umas às outras a pular da caixa torácica até o ombro, e o Gus fez um comentário, a voz dele alta só o suficiente para que eu conseguisse escutá-lo com todo aquele barulho.
— Da última vez me imaginei como sendo uma das crianças. Dessa vez sou o esqueleto.
Nós bebemos o champanhe em copos de papel do Ursinho Pooh.
CAPÍTULO DEZESSEIS
sse foi um dia típico com o Gus em estágio terminal:
Fui até a casa dele por volta do meio-dia, depois de ele ter tomado e vomitado o café da manhã. Ele abriu a porta para mim, de cadeira de rodas, não mais aquele garoto musculoso e lindo que me encarou no Grupo de Apoio, mas ainda com o sorriso torto nos lábios, fumando o cigarro apagado, os olhos azuis intensos e vívidos.
Almoçamos com os pais dele à mesa de jantar. Sanduíches de manteiga de amendoim e geleia, mais os aspargos da noite anterior. O Gus não comeu. Perguntei como ele estava se sentindo.
— Maravilha — ele disse. — E você?
— Estou bem. O que você fez ontem à noite?
— Dormi um bocado. Quero escrever a continuação do livro para você, Hazel Grace, mas estou sempre tão cansado o tempo todo…
— Você pode simplesmente me contar o que tem em mente — falei.
— Bem, eu continuo fiel à minha análise, anterior ao encontro com o Van Houten, sobre o Homem das Tulipas Holandês. Ele não é um vigarista, mas também não é rico como as fazia acreditar.
— E a mãe da Anna?
— Ainda não formei uma opinião a respeito dela. Paciência, Gafanhoto. — O Augustus sorriu.
Os pais dele estavam em silêncio, observando o filho sem desviar o olhar, como se quisessem curtir ao máximo o Show do Gus Waters enquanto ainda estava em cartaz.
— Às vezes sonho que estou escrevendo minha autobiografia. Um livro como esse seria a melhor forma de me perpetuar no coração e na memória do público que me idolatra.
— Por que você precisa desse público quando tem a mim? —
E
perguntei.
— Hazel Grace, quando se é charmoso e fisicamente atraente como eu, é fácil demais seduzir quem você conhece. Mas fazer com que completos desconhecidos o amem… isso sim é um desafio.
Revirei os olhos.
* * *
Depois do almoço, saímos para o quintal. Ele ainda tinha força para impulsionar sozinho a cadeira de rodas, levantando um pouquinho as rodinhas da frente a fim de transpor a saliência da passagem da porta. Ainda atlético, apesar de tudo, dotado de equilíbrio e reflexos ágeis que nem mesmo aquela grande quantidade de analgésicos conseguia anular por completo.
Os pais dele ficaram dentro de casa, mas toda vez que eu olhava para a sala de jantar, os dois estavam sempre nos observando.
Ficamos sentados lá fora em silêncio por um minuto e então o Gus disse:
— Às vezes eu gostaria que ainda tivéssemos aquele balanço.
— Aquele do meu quintal?
— É. Minha nostalgia é tanta que consigo sentir saudade de um balanço no qual a minha bunda nunca encostou de fato.
— A nostalgia é um efeito colateral do câncer — falei para ele.
— Não… A nostalgia é um efeito colateral de se estar morrendo — ele retrucou.
Acima de nós, o vento soprava e as sombras das árvores andavam pela nossa pele. O Gus apertou a minha mão.
— É uma vida boa, Hazel Grace.
* * *
Entramos quando ele precisou tomar remédios, que eram injetados com a ajuda de um líquido de nutrição através do tubo de alimentação, um tubo de plástico que desaparecia dentro da barriga. Ele ficou em silêncio por um tempo, fora do ar. A mãe quis que ele tirasse uma soneca, mas o
Gus sempre balançava a cabeça negativamente quando ela sugeria isso, então nós simplesmente o deixamos ficar ali sentado na cadeira, meio sonolento, por alguns instantes.
Os pais dele assistiram a um vídeo antigo do Gus com as irmãs — elas tinham mais ou menos a minha idade, e o Gus, uns cinco anos. Estavam jogando basquete na entrada de veículos de uma outra casa e, mesmo o Gus sendo pequeno, conseguia driblá-las como se tivesse nascido fazendo aquilo, correndo em círculos em volta das irmãs enquanto elas riam. Era a primeira vez que eu o via jogar basquete.
— Ele era bom — falei.
— Você devia ter visto ele no ensino médio — o pai disse. — Começou a jogar no time da escola quando ainda era calouro.
O Gus balbuciou:
— Posso ir lá para baixo?
A mãe e o pai empurraram a cadeira de rodas até o porão com o Gus ainda em cima dela, sacudindo loucamente de um jeito que teria sido considerado perigoso se o perigo ainda tivesse sua relevância, e depois nos deixaram sozinhos. Ele foi para a cama e nós ficamos deitados ali juntos, debaixo das cobertas, eu de lado e o Gus de costas, minha cabeça apoiada no ombro ossudo dele, seu calor irradiando para a minha pele através da camisa polo, meus pés entrelaçados ao pé de verdade dele, minha mão em sua bochecha.
Quando o rosto dele ficava bem perto do meu, meu nariz encostando nele de tal maneira que só dava para ver seus olhos, era impossível dizer que estava doente. Nós nos beijamos por um tempo e então ficamos ali, juntos, deitados, ouvindo o álbum epônimo do The Hectic Glow, e acabamos pegando no sono daquele jeito, um emaranhado quântico de tubos e corpos.
* * *
Acordamos algumas horas depois e arrumamos uma armada de travesseiros para que ele pudesse se sentar confortavelmente apoiado na beira da cama
e jogar Counterinsurgence 2: O preço do alvorecer. Eu era uma negação jogando aquilo, claro, mas meu péssimo desempenho tinha uma utilidade: tornava mais fácil para ele morrer lindamente, pular na frente do projétil disparado por um atirador de elite e se sacrificar por mim, ou então matar uma sentinela que estava prestes a me acertar. Como ele se divertia me salvando! O Gus gritou:
— Você não vai matar minha namorada hoje, Terrorista Internacional de Nacionalidade Indefinida!
Passou pela minha cabeça simular um engasgo ou algo do gênero, para que ele pudesse aplicar a manobra de Heimlich em mim. Talvez assim o Gus conseguisse se livrar do medo de sua vida não ter sido vivida nem perdida a serviço de um bem maior. Mas aí levei em conta o fato de que ele talvez não fosse ser fisicamente capaz de realizar a manobra de Heimlich, o que me faria ter de revelar que tudo não passava de encenação, e a isso se seguiria um sentimento de humilhação mútua.
* * *
É difícil como os diabos manter a dignidade quando a luz do sol nascente é forte demais em seus olhos que perecem, e era nisso que eu estava pensando enquanto íamos atrás dos caras maus nas ruínas de uma cidade que não existia.
Por fim, o pai dele desceu e empurrou o Gus de volta para o andar de cima e, na entrada da casa, abaixo de um Encorajamento que me dizia que Amigos São Para Sempre, me abaixei para dar um beijo de boa-noite nele. Fui para casa e jantei com meus pais, deixando o Gus sozinho para comer (e vomitar) seu próprio jantar.
Depois de assistir a um pouco de TV, fui dormir.
Acordei.
Por volta do meio-dia, fui até lá de novo.
CAPÍTULO DEZESSETE
erta manhã, um mês depois do retorno de Amsterdã, fui dirigindo até a casa dele. Seus pais me disseram que ele ainda estava dormindo lá embaixo, então bati na porta do porão antes de entrar e falei:
— Gus?
Encontrei-o balbuciando um idioma de sua própria criação. Tinha mijado na cama. Foi horrível. Não consegui nem olhar, sério. Só gritei pelos pais dele, que foram até lá embaixo, e subi as escadas enquanto o secavam e limpavam.
Quando voltei ao porão ele estava despertando gradualmente do efeito dos analgésicos para mais um dia excruciante. Arrumei os travesseiros para que pudéssemos jogar Counterinsurgence no colchão sem lençóis, mas ele estava tão cansado e desconcentrado que teve um desempenho ruim como o meu, e não conseguimos passar cinco minutos sem que ambos acabássemos morrendo. E também não eram mortes heroicas nem elaboradas. Só mortes negligentes.
Não falei nada para o Gus. Quase desejei que ele esquecesse que eu estava lá, acho, e esperava que não lembrasse que eu havia encontrado o garoto que eu amo mostrando sinais de demência deitado numa poça de seu próprio mijo. Fiquei meio que esperando que ele fosse olhar para mim e dizer: ‚Ah, Hazel Grace. Como você chegou até aqui?‛
Mas, infelizmente, ele lembrava.
— A cada minuto que passa estou desenvolvendo uma simpatia mais profunda pela palavra mortificado — ele disse, por fim.
— Eu já fiz xixi na cama, Gus, acredite. Não é nada demais.
— Você costumava — ele falou, e então suspirou profundamente — me chamar de Augustus.
C
* * *
— Sabe — ele disse depois de um tempo —, isso é coisa de criança, mas sempre imaginei que meu obituário sairia impresso em todos os jornais, que eu teria uma história digna de ser contada. Sempre suspeitei secretamente que eu fosse especial.
— Você é — falei.
— Você sabe o que eu quero dizer — ele retrucou.
Eu sabia o que ele queria dizer. Só não concordava com aquilo.
— Não estou nem aí se o New York Times vai redigir um obituário para mim. Só quero que seja você a escrever — falei. — Você diz que não é especial porque o mundo não sabe da sua existência, mas isso é um insulto à minha pessoa. Eu sei da sua existência.
— Não acho que eu vá sobreviver para escrever seu obituário — ele disse, em vez de pedir desculpas.
Fiquei muito frustrada.
— Só o que eu quero é ser o suficiente para você, mas nunca consigo. Isso aqui nunca chega a ser o suficiente para você. Mas é isso o que você tem. Você tem a mim, tem sua família e tem este mundo. Esta é a sua vida. Sinto muito se é uma droga. Mas você não vai ser o primeiro homem a pisar em Marte, não vai ser um astro da NBA e não vai caçar nazistas. Quer dizer, dê uma olhada em você, Gus. — Ele não disse nada. — Eu não quero dizer… — comecei.
— Ah, você quis dizer, sim — ele me interrompeu.
Comecei a me desculpar e ele disse:
— Não, foi mal. Você está certa. Vamos só jogar.
Então nós só jogamos.
CAPÍTULO DEZOITO
cordei com meu telefone tocando uma música do The Hectic Glow. A preferida do Gus. Aquilo significava que era ele quem estava me ligando… ou que alguém estava me ligando do celular dele. Dei uma olhada no relógio: 2h35 da manhã. Ele se foi, pensei enquanto tudo dentro de mim colapsava para uma singularidade.
Mal consegui dizer:
— Alô?
Esperei pelo som da voz devastada de um pai ou uma mãe.
— Hazel Grace — o Augustus disse baixinho.
— Ai, graças a Deus é você. Oi. Oi, eu te amo.
— Hazel Grace, estou no posto de gasolina. Tem alguma coisa errada. Você precisa me ajudar.
— O quê? Onde você está exatamente?
— Na esquina da Rua 86 com a Avenida Ditch. Eu fiz alguma besteira com o tubo de alimentação e não sei o que foi e…
— Vou ligar para uma ambulância — falei.
— Não não não não não, eles vão me levar para um hospital. Hazel, preste atenção. Não ligue para uma ambulância nem para os meus pais, eu nunca vou perdoar você, não faça isso, só venha aqui, por favor, e conserte a desgraça do meu tubo de alimentação. É só que, cara, isso é a maior estupidez. Não quero que meus pais saibam que saí. Por favor. Estou com o remédio aqui; só não consigo colocá-lo para dentro. Por favor. Ele estava chorando. Nunca o tinha ouvido chorar daquele jeito, exceto quando eu estava do lado de fora da casa dele antes de Amsterdã.
— Tá — falei. — Estou indo agora.
Removi o BiPAP e me conectei a um cilindro de oxigênio. Coloquei-o no carrinho, calcei um tênis que combinava com a calça de pijama de
A
algodão cor-de-rosa e com a camiseta de malha do time de basquete da Universidade de Butler, que tinha sido do Gus. Peguei as chaves na gaveta da cozinha onde mamãe as guardava e escrevi um bilhete para o caso de os dois acordarem enquanto eu estivesse fora.
Fui ver o Gus.
É importante. Foi mal.
Com amor, H
Enquanto eu percorria de carro os poucos quilômetros até o posto de gasolina, despertei o suficiente para tentar imaginar por que o Gus tinha saído de casa no meio da noite. Talvez ele estivesse tendo alucinações, ou suas fantasias de martírio o tivessem derrotado.
Pisei fundo na Avenida Ditch passando por sinais de trânsito que piscavam no amarelo, indo rápido demais meio que para chegar logo e meio que na esperança de que um policial fosse me fazer encostar o carro e me dar um motivo para dizer a alguém que meu namorado moribundo estava empacado num posto de gasolina com um tubo de alimentação defeituoso. Mas nenhum policial apareceu para tomar aquela decisão por mim.
* * *
Só havia dois carros estacionados em frente à loja de conveniência do posto. Parei o meu ao lado do dele. Abri a porta. A luz interna se acendeu. O Augustus estava sentado no banco do motorista, coberto de vômito, as mãos pressionando a barriga no local onde o tubo de alimentação entrava.
— Oi — ele murmurou.
— Ai, meu Deus, Augustus, nós temos que ir para um hospital.
— Dê só uma olhada aqui, por favor.
Tive ânsia de vômito mas me inclinei a fim de checar o local acima do umbigo onde o tubo havia sido cirurgicamente instalado. A pele estava quente e muito vermelha.
— Gus, acho que infeccionou. Não vou conseguir resolver. Por que você está aqui? Por que não está em casa?
Ele vomitou, sem energia nem para virar o rosto e poupar seu colo.
— Ah, meu amor — falei.
— Eu queria comprar um maço de cigarros — ele balbuciou. — Perdi o meu. Ou então esconderam de mim. Não sei. Eles disseram que iam me comprar outro, mas eu quis… fazer isso sozinho. Fazer uma coisa simples sem ajuda. Ele estava olhando fixamente para a frente. Devagarinho, peguei meu celular e olhei para o teclado a fim de discar 911.
— Sinto muito — falei para ele. Nove-um-um, qual é a sua emergência?
— Oi, eu estou na esquina da Rua 86 com a Avenida Ditch e preciso de uma ambulância. O amor da minha vida está com um tubo de alimentação defeituoso.
* * *
Ele levantou os olhos para me olhar. Foi horrível. Eu mal conseguia encará-lo. O Augustus Waters dos sorrisos tortos e dos cigarros apagados já era, substituído por uma criatura deploravelmente humilhada sentada ali abaixo de mim.
— É o fim. Não consigo nem mais não fumar.
— Gus, eu te amo.
— Onde está a minha chance de ser o Peter Van Houten de alguém? — O Gus bateu sem força no volante, o carro buzinando enquanto ele chorava. Inclinou a cabeça para trás, olhando para cima. — Eu me odeio eu me odeio eu odeio isso eu odeio isso eu tenho nojo de mim eu odeio isso eu odeio isso eu odeio isso deixe eu morrer de uma vez.
De acordo com as convenções do gênero, o Augustus Waters manteve o senso de humor até o fim, nem por um momento abandonou sua coragem, e seu espírito elevou-se como uma águia indomável até que o mundo em si não conseguiu conter sua alma repleta de júbilo.
Mas essa era a verdade: um garoto digno de pena que queria
desesperadamente não ser digno de pena, gritava e chorava, sendo envenenado pelo tubo de alimentação infectado que o mantinha vivo, mas não o suficiente.
Limpei o queixo dele e segurei seu rosto nas minhas mãos, me ajoelhando a fim de poder ver seus olhos, que ainda tinham vida.

— Sinto muito. Queria que fosse como naquele filme, com os persas e os espartanos.
— Eu também — ele disse.
— Mas não é — falei.
— Eu sei — ele completou.
— Não tem nenhum cara do mal aqui.
— É.
— Nem o câncer é um bandido de verdade: o câncer só quer viver.
— É.
— Está tudo bem — falei para ele.
E pude ouvir as sirenes.
— Tudo bem — ele falou.
Estava perdendo a consciência.
— Gus, você tem que me prometer que não vai fazer mais isso. Eu compro cigarros para você, tá? — Ele me olhou. Seus olhos nadavam nas órbitas. — Você tem que me prometer.
Ele fez que sim com a cabeça, de leve, e então fechou os olhos, a cabeça pendendo do pescoço.
— Gus — falei. — Fique aqui comigo.
— Leia alguma coisa para mim — ele disse, enquanto a desgraça da ambulância passava direto por nós.
Então, enquanto eu esperava que eles dessem a volta e nos encontrassem, recitei o único poema que me veio à cabeça: ‚O Carrinho de Mão Vermelho‛, de William Carlos Williams.
tanta coisa depende
de um
carrinho de mão
vermelho
esmaltado de água de
chuva
ao lado das galinhas
brancas.
Williams era médico. Aquele parecia, para mim, um poema de médico. Tinha acabado, mas a ambulância ainda se afastava de nós, então fui compondo o poema.
* * *
E tanta coisa depende, falei para o Augustus, de um céu azul descortinado pelos galhos das árvores. Tanta coisa depende do tubo de alimentação transparente erupcionando das vísceras do garoto de lábios cianóticos. Tanta coisa depende desse observador do universo.
Só metade consciente, ele olhou para mim e murmurou:
— E você ainda diz que não escreve poesia.
CAPÍTULO DEZENOVE
le saiu do hospital e foi para casa alguns dias depois, final e irrevogavelmente esvaziado de suas ambições. Passou a precisar de mais remédios para acabar com a dor. Ele se mudou para o andar de cima permanentemente, para uma cama de hospital colocada perto da janela da sala de estar.
Aqueles foram dias de pijamas e barba por fazer, de murmúrios, de pedidos e do Gus agradecendo sem parar a todo mundo por tudo o que estavam fazendo por ele. Uma tarde, ele apontou vagamente para o cesto de roupa suja no canto do cômodo e me perguntou:
— O que é aquilo?
— O cesto de roupa suja?
— Não, ao lado dele.
— Não vejo nada ao lado dele.
— Meu último resquício de dignidade. É muito pequeno.
* * *
No dia seguinte, entrei sem bater. Eles não queriam mais que eu tocasse a campainha porque isso poderia acordar o Gus. As irmãs dele estavam lá com os maridos banqueiros e três crianças, todas meninos, que correram até mim e cantaram quem é você quem é você quem é você, correndo em círculos pelo hall de entrada como se a capacidade pulmonar fosse um recurso renovável. Eu já havia sido apresentada às irmãs, mas nunca às crianças ou aos pais delas.
— Meu nome é Hazel — falei.
— Gus tem namorada — um dos meninos disse.
— Eu sei que o Gus tem namorada — falei.
E
— Ela tem peito — um dos outros disse.
— Mesmo?
— Por que você carrega isso? — o primeiro perguntou, apontando para o carrinho do oxigênio.
— Ele me ajuda a respirar — respondi. — O Gus está acordado?
— Não, ele está dormindo.
— Ele está morrendo — falou outro.
— Ele está morrendo — confirmou o terceiro, repentinamente sério.
Tudo ficou em silêncio por alguns instantes e eu fiquei tentando imaginar o que deveria dizer, mas então um deles chutou o do lado e os três saíram de novo em disparada, um caindo por cima do outro num furacão que migrava para a cozinha.
Segui até a sala de estar para ver os pais do Gus e conheci os cunhados, Chris e Dave.
Eu não tinha chegado a conhecer as meias-irmãs direito, mas ambas me abraçaram mesmo assim. A Julie estava sentada na beira da cama, falando com um Gus adormecido exatamente com o mesmo tom de voz que alguém usaria para falar para uma criança que ela era adorável, dizendo:
— Ah, Gussy Gussy, nosso pequeno Gussy Gussy.
Nosso Gussy? Elas tinham comprado ele?
— E aí, Augustus? — falei, tentando reproduzir um modelo de comportamento apropriado.
— Nosso belo Gussy — disse a Martha, se inclinando para a frente, mais para perto dele.
Comecei a me perguntar se o Gus estava dormindo de verdade ou se tinha pressionado sem parar a bombinha que liberava os analgésicos a fim de evitar o Ataque das Irmãs Bem-intencionadas.
* * *
Ele acordou depois de um tempo e a primeira coisa que disse foi:
— Hazel.
O que, tenho de admitir, me deixou feliz, como se eu também fizesse parte da família dele, talvez.
— Lá fora — ele falou, baixinho. — Podemos ir?
Fomos todos: a mãe empurrando a cadeira de rodas, as irmãs, os cunhados, o pai, os sobrinhos e eu seguindo em procissão. O dia estava nublado, ainda, e quente, pois o verão havia chegado de vez. O Gus estava com uma camiseta de manga comprida azul-marinho e calça de moletom. Por algum motivo, sentia frio o tempo todo. Ele pediu água, então seu pai foi e buscou um copo cheio.
A Martha tentou puxar conversa com ele, ajoelhando-se a seu lado, dizendo:
— Você sempre teve olhos tão bonitos.
Ele assentiu com a cabeça, devagarinho.
Um dos maridos colocou um dos braços no ombro do Gus e falou:
— O que está achando desse ar puro?
O Gus deu de ombros.
— Você quer seus remédios? — a mãe dele perguntou, se juntando à roda de pessoas ajoelhadas à sua volta.
Dei um passo atrás, vendo os sobrinhos destruírem um canteiro de flores a caminho do pequeno gramado no quintal do Gus. Eles começaram imediatamente a brincar de jogar um ao outro no chão.
— Crianças! — a Julie gritou sem muita convicção. — Só espero — ela disse, se virando de novo para o Gus — que eles cresçam e sejam o tipo de jovem atencioso e inteligente que você se tornou.
Resisti à vontade de fingir que ia enfiar o dedo na garganta.
— Ele não é tão inteligente assim — falei para a Julie.
— Ela tem razão. É só que a maioria das pessoas muito bonitas é burra, por isso eu supero as expectativas.
— É isso aí. Ele é basicamente sensual — falei.
— A minha sensualidade pode meio que cegar — ele disse.
— Como de fato cegou o nosso amigo Isaac — falei.
— Uma tragédia sem precedentes, aquela. Mas dá para eu conter a minha beleza mortal?
— Não, não dá.
— É minha sina, esse rosto lindo.
— Isso sem falar no seu corpo.
— Na moral, não vou nem começar a falar do meu corpo sexy. Você não ia querer me ver nu, Dave. Na verdade, me ver pelado foi o que fez a Hazel Grace perder o ar — ele falou, fazendo um gesto com a cabeça na direção do cilindro de oxigênio.
— Tá, já chega — o pai do Gus disse, e então, do nada, me abraçou e beijou a minha cabeça, sussurrando:
— Eu agradeço a Deus todos os dias por você existir, menina.
Bem, de qualquer jeito, aquele foi o último dia bom que passei com o Gus até o Último Dia Bom.
CAPÍTULO VINTE
ma das convenções menos sem sentido do tipo criança com câncer é a do Último Dia Bom, quando a vítima do câncer se vê vivendo horas imprevistas nas quais parece que, de repente, o declínio inexorável atingiu um nível estável, quando a dor é suportável por um momento. O problema, obviamente, é que não dá para saber que seu último dia bom é o seu Último Dia Bom. Na hora, ele é só um dia bom como outro qualquer.
Eu não tinha ido visitar o Augustus naquele dia porque eu mesma não estava me sentindo muito bem: nada especialmente sério, só estava cansada. Foi um dia de não fazer nada, e quando o Augustus ligou logo depois das cinco da tarde eu já estava conectada ao BiPAP, que tínhamos arrastado até a sala de estar para que eu pudesse ver televisão com a mamãe e o papai.
— Oi, Augustus — falei.
Ele respondeu com a voz pela qual eu tinha me apaixonado.
— Boa tarde, Hazel Grace. Por acaso você acha que poderia dar uma chegada no Coração Literal de Jesus lá pelas oito da noite?
— Humm… sim.
— Excelente. E também, se não for pedir demais, você poderia preparar um elogio fúnebre, por favor?
— Humm — falei.
— Eu te amo — ele disse.
— Eu também — completei, e ele desligou o telefone.
— Humm — comecei. — Preciso ir ao Grupo de Apoio hoje, às oito da noite. Sessão de emergência.
Minha mãe tirou o som da TV.
— Está tudo bem?
U
Olhei para ela por um segundo, a sobrancelha arqueada.
— Imagino que essa seja uma pergunta retórica.
— Mas por que haveria…
— Porque, por algum motivo, o Gus precisa de mim. Está tudo bem. Posso ir dirigindo.
Fiquei brincando com o BiPAP para que a mamãe pudesse me ajudar a tirá-lo, mas ela nem se mexeu.
— Hazel — ela falou —, seu pai e eu estamos com a sensação de que não a vemos mais.
— Principalmente aqueles de nós que trabalham a semana toda — papai disse.
— Ele precisa de mim — falei, finalmente tirando o BiPAP sozinha.
— Nós também precisamos de você, filha — meu pai falou.
Ele me segurou firme pelo pulso, como se eu fosse uma garotinha de dois anos prestes a sair correndo pela rua.
— Bem, pai, arrume uma doença terminal, e aí eu fico mais em casa.
— Hazel — minha mãe falou.
— Era você quem não queria que eu fosse uma reclusa — falei para ela. Papai ainda estava segurando o meu braço. — E agora quer que ele vá e morra para que eu volte a ficar aprisionada aqui, deixando que você tome conta de mim como sempre deixei. Mas eu não preciso disso, mãe. Não preciso de você como precisava antes. É você quem precisa viver a sua vida.
— Hazel! — o papai falou, apertando ainda mais o meu pulso. — Peça desculpas à sua mãe.
Eu estava puxando meu braço, mas ele não me soltava, e eu não conseguia colocar a cânula só com uma das mãos. Era de dar nos nervos. Tudo o que eu queria era um rompante adolescente à moda antiga, sair como um furacão, bater a porta do meu quarto, botar o The Hectic Glow bem alto para tocar e escrever freneticamente um elogio fúnebre. Mas eu não podia fazer isso porque não conseguia respirar.
— A cânula — eu me queixei. — Preciso dela.
Meu pai me soltou imediatamente e se apressou em me conectar com
o oxigênio. Pude ver a culpa em seus olhos, mas ele ainda estava com raiva.
— Hazel, peça desculpas para sua mãe.
— Tá bem, foi mal, só me deixem fazer isso, por favor.
Eles não disseram nada. Mamãe continuou sentada com os braços cruzados, sem nem olhar para mim. Depois de um tempo eu me levantei e fui para o quarto a fim de escrever sobre o Augustus.
Tanto a mamãe quanto o papai bateram na minha porta algumas vezes, e tal, e eu só respondi dizendo que estava fazendo uma coisa importante. Levei uma eternidade para descobrir o que gostaria de dizer, e mesmo depois não fiquei muito satisfeita com o resultado. Antes de dar o texto por encerrado, tecnicamente falando, reparei que eram 7h40, o que significava que eu chegaria atrasada mesmo se não trocasse de roupa, então, no fim das contas, fui com a calça do pijama de algodão azul-bebê, um par de chinelos e a camiseta do time da Butler, do Gus.
Saí do quarto e tentei passar direto por eles, mas meu pai disse:
— Você não pode sair desta casa sem permissão.
— Ai, meu Deus, pai. O Gus queria que eu escrevesse um elogio fúnebre para ele, tá? Eu vou ficar em casa todo. Raio. De. Noite. Começando qualquer dia a partir de amanhã, tudo bem?
Aquilo finalmente os fez calar a boca.
* * *
Só me acalmei da discussão com meus pais quando já estava chegando lá. Dei a volta na parte de trás da igreja e estacionei na entrada de veículos semicircular, atrás do carro do Augustus. A porta dos fundos estava aberta, presa por uma pedra do tamanho de um punho. Lá dentro, considerei a possibilidade de descer de escada, mas decidi esperar pelo velho elevador.
Quando a porta do elevador se abriu eu me vi na sala de reunião do Grupo de Apoio, as cadeiras arrumadas na mesma roda de sempre. Mas agora o que enxerguei foi só o Gus numa cadeira de rodas, morbidamente magro. Ele me encarava do meio do círculo. Tinha ficado esperando a
porta do elevador se abrir.
— Hazel Grace — ele disse —, você está estonteante.
— Estou, não estou?
Ouvi um barulho vindo de um canto escuro do cômodo. O Isaac estava de pé atrás de um pequeno púlpito de madeira, apoiando-se nele.
— Você quer se sentar? — perguntei para o Isaac.
— Não. Estou prestes a começar um elogio fúnebre. Você está atrasada.
— Você… eu… o quê?
O Gus fez um gesto para eu me sentar. Puxei uma cadeira até o meio da roda, para perto dele, e ele girou a cadeira de rodas para ficar de frente para o Isaac.
— Quero comparecer ao meu enterro — o Gus disse. — A propósito, você vai dizer algumas palavras no meu enterro?
— Humm, claro, vou sim — falei, deixando minha cabeça repousar no ombro dele.
Estendi os braços por suas costas e abracei tanto o Gus quanto a cadeira de rodas. Ele fez uma careta. Eu o larguei.
— Beleza — ele falou. — Tenho esperança de poder comparecer como fantasma, mas, só para garantir, pensei que talvez… bem, não é que eu queira deixar vocês numa situação difícil nem nada, mas esta tarde tive a ideia de organizar um pré-enterro, e deduzi que, já que estou me sentindo relativamente bem, não há momento melhor que o presente.
— Como é que você conseguiu entrar aqui? — perguntei.
— Você acredita que eles deixam a porta aberta a noite toda?
— Humm… não — respondi.
— E não deveria mesmo — o Gus sorriu. — Bem, de qualquer forma, sei que isso é um pouco autoengrandecedor.
— Ei, você está roubando meu elogio fúnebre — o Isaac disse. — A primeira parte fala de como você era um filho da mãe autoengrandecedor.
Eu ri.
— Tá, tá — o Gus disse. — Quando quiser.
O Isaac limpou a garganta.
— O Augustus Waters era um filho da mãe autoengrandecedor. Mas nós o perdoamos. Nós o perdoamos não porque seu coração figurativo era tão bom quanto o coração literal era ruim, nem porque ele sabia segurar um cigarro melhor que qualquer outro não fumante na história, nem porque ele viveu dezoito anos quando deveria ter vivido mais.
— Dezessete — o Gus corrigiu.
— Estou presumindo que você ainda tenha algum tempo de vida, seu filho da mãe que só sabe interromper os outros. Vou dizer uma coisa para vocês — o Isaac continuou —, o Augustus Waters falava tanto que seria capaz de interromper a pessoa falando em seu próprio enterro. E ele era pretensioso: Meu Jesus Cristo, aquele garoto nunca mijava sem ponderar a respeito das ressonâncias metafóricas abundantes na produção de dejetos humanos. E ele era vaidoso: não creio ter conhecido uma pessoa mais atraente fisicamente que tivesse uma consciência tão profunda de sua própria atratividade física. Mas só digo uma coisa: quando os cientistas do futuro aparecerem na minha casa com olhos robóticos e me disserem para experimentá-los, vou mandar eles se foderem, porque não quero ver um mundo sem o Augustus.
Eu estava meio que chorando a essa altura.
— E aí, depois de ter defendido meu argumento retórico, vou colocar os olhos robóticos, porque, quer dizer, com olhos robóticos pode ser que eu consiga ver através das camisetas das garotas, e tal. Augustus, meu amigo, que bons ventos o levem.
O Augustus balançou a cabeça por alguns instantes, os lábios franzidos, e então fez um sinal de positivo com o polegar para o Isaac. Depois de recuperar a compostura, comentou:
— Eu deixaria de fora a parte sobre ver através das camisetas das garotas.
O Isaac ainda estava apoiado no púlpito. E começou a chorar. Apoiou a testa com o rosto virado para o pódio e eu fiquei vendo seus ombros tremerem.
Por fim, ele falou:
— Porra, Augustus, editando seu próprio elogio fúnebre…
— Não fale palavrão no Coração Literal de Jesus — o Gus disse.
— Porra — o Isaac repetiu. Ele levantou a mão e engoliu em seco. — Hazel, você poderia me dar uma mãozinha aqui?
Tinha me esquecido de que ele não conseguia voltar para a roda sozinho. Eu me levantei, coloquei a mão dele no meu braço e o guiei lentamente até a cadeira ao lado do Gus, onde estivera sentada. Aí andei até o pódio e desdobrei o pedaço de papel no qual havia impresso meu elogio fúnebre.
— Meu nome é Hazel. O Augustus Waters foi o grande amor estrela-cruzada da minha vida. Nossa história de amor foi épica, e não serei capaz de falar mais de uma frase sobre isso sem me afogar numa poça de lágrimas. O Gus sabia. O Gus sabe. Não vou falar da nossa história de amor para vocês porque, como todas as histórias de amor de verdade, ela vai morrer com a gente, como deve ser. Eu tinha a expectativa de que ele é quem estaria fazendo o meu elogio fúnebre, porque não há ninguém que eu quisesse tanto que…. — Comecei a chorar. — Tá, como não chorar. Como é que eu… tá. Tá.
Respirei fundo algumas vezes e retomei a leitura.
— Não posso falar da nossa história de amor, então vou falar de matemática. Não sou formada em matemática, mas sei de uma coisa: existe uma quantidade infinita de números entre 0 e 1. Tem o 0,1 e o 0,12 e o 0,112 e uma infinidade de outros. Obviamente, existe um conjunto ainda maior entre o 0 e o 2, ou entre o 0 e o 1 milhão. Alguns infinitos são maiores que outros. Um escritor de quem costumávamos gostar nos ensinou isso. Há dias, muitos deles, em que fico zangada com o tamanho do meu conjunto ilimitado. Queria mais números do que provavelmente vou ter, e, por Deus, queria mais números para o Augustus Waters do que os que ele teve. Mas, Gus, meu amor, você não imagina o tamanho da minha gratidão pelo nosso pequeno infinito. Eu não o trocaria por nada nesse mundo. Você me deu uma eternidade dentro dos nossos dias numerados, e sou muito grata por isso.
CAPÍTULO VINTE E UM
Augustus Waters morreu oito dias depois do seu pré-enterro, no Memorial, na UTI, quando o câncer, que era feito dele, finalmente parou seu coração, que também era feito dele. Ele estava com a mãe, o pai e as irmãs. A mãe do Gus me ligou às três e meia da madrugada. Eu já sabia, obviamente, que ele estava para partir. Tinha falado com o pai dele antes de dormir, e ele me disse: ‚É possível que não passe de hoje‛, mas, ainda assim, quando peguei o celular da mesa de cabeceira e vi Mãe do Gus na identificação da chamada, tudo dentro de mim desmoronou. Ela só chorava do outro lado da linha, e me disse que sentia muito, eu disse que sentia muito também, e ela me contou que ele havia ficado inconsciente por algumas horas antes de morrer.
Meus pais entraram no meu quarto nessa hora, me olhando na expectativa, e eu simplesmente assenti com a cabeça. Eles se abraçaram, sentindo, tenho certeza, o terror harmônico que viria direcionado especificamente para eles dali a algum tempo.
Liguei para o Isaac, que xingou a vida, o universo e até o próprio Deus, e perguntou onde estavam os raios dos troféus para se quebrar quando mais se precisava deles. Foi então que me dei conta de que não havia mais ninguém para quem ligar, o que era muito triste. A única pessoa com quem eu queria falar sobre a morte do Augustus Waters era o Augustus Waters. Meus pais ficaram comigo no quarto por uma eternidade, até quando já era de manhã e o papai finalmente perguntou:
— Você quer ficar sozinha?
Eu fiz que sim com a cabeça e a mamãe completou:
— Estaremos logo ali atrás da porta. E eu pensei: não duvido nada.
* * *
O
Foi insuportável. A coisa toda. Cada segundo pior que o anterior. Eu só ficava pensando em ligar para ele, tentando imaginar o que aconteceria, se alguém atenderia o celular. Nas últimas semanas, nós nos limitamos a passar o nosso tempo juntos relembrando o passado, mas isso não significava mais nada: o prazer de lembrar tinha sido tirado de mim, porque não havia mais ninguém com quem compartilhar as lembranças. Parecia que a perda do colembrador representava a perda da própria memória, como se as coisas que tínhamos feito juntos fossem menos reais e importantes do que eram algumas horas antes.
Quando você chega à Emergência de um hospital, uma das primeiras coisas que eles pedem é que você dê uma nota para a sua dor numa escala de um a dez. A partir daí eles decidem que medicamentos prescrever e a velocidade com que têm de ser administrados. Passei por essa situação centenas de vezes no decorrer dos anos, e me lembro de uma vez, logo no início, em que eu não estava conseguindo respirar e parecia que meu peito pegava fogo, as chamas lambendo meu tórax por dentro, tentando encontrar um jeito de sair e queimar o lado de fora, e meus pais me levaram para a Emergência. Uma enfermeira me perguntou sobre a dor e eu não conseguia nem falar, então mostrei nove dedos.
Depois, quando eles já tinham me dado alguma coisa, a enfermeira voltou e ficou meio que acariciando minha mão enquanto media a minha pressão arterial, então disse: ‚Sabe como eu sei que você é guerreira? Você chamou um dez de nove.‛
Mas não foi exatamente o que aconteceu. Eu chamei aquilo de nove porque estava poupando o meu dez. E aqui estava ele, o grande e terrível dez me açoitando sem parar, e eu ali sozinha, deitada na minha cama, olhando fixamente para o teto, as ondas me jogando de encontro às pedras e depois me puxando de volta para o mar a fim de poderem me lançar mais uma vez na face chanfrada do penhasco, me abandonando na água, boiando, o rosto virado para cima sem me afogar.
Acabei ligando para ele. O telefone tocou cinco vezes e a caixa postal atendeu. ‚Esta é a caixa postal do Augustus Waters‛, ele disse, a voz de
clarim pela qual eu tinha me apaixonado. ‚Deixe uma mensagem.‛ E o bipe. O silêncio na linha era muito horripilante. Eu só queria voltar com ele para aquela terceira dimensão secreta e pós-terrestre que visitávamos quando falávamos ao telefone. Esperei por aquele sentimento, mas não veio: o silêncio na linha não me trouxe nenhum conforto, e, por fim, desliguei.
Peguei meu laptop, que estava debaixo da cama, apertei o botão de ligar e fui direto no perfil dele, onde as mensagens de pêsames já inundavam o mural. A mais recente dizia:
Eu te amo, irmão. Te vejo do outro lado.
…Escrita por alguém de quem eu nunca tinha ouvido falar. Na verdade, quase todos os posts no mural dele, que chegavam quase na mesma velocidade que eu levava para acabar de ler cada um, foram escritos por pessoas que não conheci e das quais ele nunca tinha falado, pessoas que estavam exaltando as diversas virtudes dele agora, depois de morto, mesmo eu tendo certeza de que não viam o Gus havia vários meses e nem tinham feito qualquer esforço para visitá-lo. Fiquei tentando imaginar se meu mural ficaria assim quando eu morresse, ou se eu já tinha ficado longe da escola e da vida tempo suficiente para escapar da memorialização generalizada. Continuei lendo.
Já sinto saudade de você, irmão.
Eu te amo, Augustus.
Deus te abençoe e te guarde.
Você vai viver para sempre em nossos corações, grande.
(Essa, em particular, me irritou, porque implicava a imortalidade daqueles que ficaram para trás: você vai viver para sempre na minha memória, porque eu vou viver para sempre! EU SOU SEU DEUS AGORA, GAROTO MORTO! EU POSSUO VOCÊ! Achar que você não vai morrer é, também, mais um efeito colateral de se estar morrendo.)
Você sempre foi um amigo tão legal que sinto muito por não ter te visto mais depois que saiu da escola, irmão. Aposto que já está batendo uma bola no paraíso.
Imaginei qual seria a análise do Augustus Waters àquele comentário. Se estou jogando basquete no paraíso, isso implica a existência física de um paraíso contendo bolas de basquete físicas? Quem faz as bolas de basquete em questão? Existem almas menos afortunadas no paraíso que trabalham numa fábrica de bolas de basquete celestial para que eu possa jogar? Ou será que foi um Deus onipotente que criou as bolas de basquete a partir do vácuo no espaço? Este paraíso fica localizado em algum tipo de universo não observável no qual as leis da física não se aplicam? Caso isso seja verdade, por que raios eu estaria jogando basquete quando poderia estar voando, lendo, admirando pessoas bonitas ou fazendo qualquer outra coisa de que realmente gosto? É quase como se o modo como você imagina meu ‚eu‛ morto dissesse mais sobre você do que sobre a pessoa que eu era ou sobre o que quer que eu seja agora.
* * *
Os pais dele ligaram por volta do meio-dia para dizer que o enterro estava marcado para dali a cinco dias, no sábado. Imaginei uma igreja cheia de pessoas que achavam que ele gostava de basquete e quis vomitar, mas sabia que precisava ir, já que teria de falar, e tudo mais. Quando desliguei o telefone, voltei a ler o mural:
Acabei de saber que o Gus Waters morreu depois de uma longa batalha contra o câncer.
Descanse em paz, cara.
Eu sabia que aquelas pessoas estavam sinceramente tristes e que eu não estava com raiva delas de verdade. Estava com raiva era do universo.
Mesmo assim, aquilo me deixou furiosa: você ganha todos esses amigos justo quando não precisa mais. Escrevi um comentário àquele post:
Nós vivemos num universo dedicado à criação e à erradicação da consciência. Augustus Waters não morreu depois de uma longa batalha contra o câncer. Ele morreu depois de uma longa batalha contra a consciência humana, uma vítima — como você será — da necessidade do universo de fazer e desfazer tudo o que é possível.
Postei aquilo e esperei que alguém respondesse, atualizando a página várias vezes. Nada. Meu comentário se perdeu na nevasca dos novos posts. Todo mundo ia sentir muita falta dele. Todos estavam rezando pela família dele. Eu me lembrei da carta do Van Houten: A escrita não ressuscita. Ela enterra.
* * *
Depois de um tempo, fui para a sala de estar a fim de me sentar com meus pais e ver TV. Não sabia dizer que programa era aquele, mas, num determinado momento, minha mãe disse:
— Hazel, há alguma coisa que possamos fazer por você? — Só balancei a cabeça. E comecei a chorar de novo. — O que podemos fazer? — ela insistiu.
Eu dei de ombros.
Mas ela continuou perguntando, como se houvesse algo que pudesse fazer, até que, por fim, eu meio que me arrastei pelo sofá para o colo dela, e meu pai chegou mais para perto e segurou minhas pernas com firmeza. Eu abracei minha mãe pela cintura e eles ficaram me segurando horas enquanto a maré se avolumava sobre mim.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
ssim que chegamos lá eu me sentei no fundo da sala de visitas da igreja, um cômodo pequeno de paredes de pedra ao lado do santuário na igreja do Coração Literal de Jesus. Havia mais ou menos umas oitenta cadeiras dispostas pela sala, que estava dois terços cheia, mas a sensação era de que estava um terço vazia.
Por um tempo, fiquei só olhando as pessoas indo até o caixão em cima de um tipo de carrinho coberto com um pano roxo. Todas aquelas pessoas que eu nunca tinha visto se ajoelhavam ao lado dele ou paravam ao lado dele e o olhavam por alguns instantes, umas chorando, outras dizendo alguma coisa, e então todas colocavam a mão no caixão, em vez de nele, porque ninguém quer tocar os mortos.
A mãe e o pai do Gus estavam em pé ao lado do caixão, abraçando as pessoas conforme iam passando, mas aí me viram, sorriram e vieram até mim. Eu me levantei e abracei primeiro o pai, depois a mãe, que me deu um abraço bem forte, como o Gus costumava fazer, apertando minhas clavículas. Os dois pareciam muito envelhecidos — os olhos fundos, a pele flácida dos rostos exaustos. Eles também haviam chegado ao fim de uma corrida com obstáculos.
— Ele amava tanto você… — a mãe do Gus disse. — Ele a amava de verdade. Não era um amor qualquer de adolescente — ela acrescentou, como se eu não soubesse.
— Ele também amava muito você — falei baixinho. É difícil explicar, mas ao falar com os pais do Gus parecia que eu estava dando uma facada neles e eles, em mim. — Sinto muito — eu disse.
E então os pais dele foram falar com os meus pais, a conversa limitada a gestos de cabeça e lábios apertados. Olhei para o caixão e vi que não havia ninguém em volta, então decidi andar até lá. Tirei a cânula das
A
narinas e levantei o cilindro de oxigênio, entregando-o para o papai. Eu queria que fôssemos só eu e só ele. Peguei minha bolsinha de mão e andei pelo corredor criado pelas fileiras de cadeiras.
A caminhada parecia longa, mas fiquei dizendo aos meus pulmões para se comportarem, que eles eram fortes, que podiam fazer aquilo. Pude ver o Gus ao me aproximar do caixão: o cabelo estava perfeitamente repartido do lado esquerdo, de um jeito que ele teria achado absolutamente horrível, e seu rosto parecia plastificado. Mas ainda era o Gus. Meu magro e belo Gus.
Quis usar o vestido preto que havia comprado para minha festa de aniversário de quinze anos, meu vestido mortuário, mas não cabia mais, então usei um vestido preto liso que ia até o joelho. O Augustus estava com o mesmo terno de lapela fina que havia usado no Oranjee.
Quando ajoelhei, percebi que eles haviam fechado seus olhos, claro que tinham feito isso, e que eu nunca mais veria aqueles olhos azuis.
— Eu te amo no presente do indicativo — sussurrei, e coloquei minha mão no meio do peito dele. — Está tudo bem, Gus. Tudo bem. Está. Está tudo bem, ouviu? — Não tinha, e não tenho, absolutamente nenhuma esperança de que ele pudesse me ouvir. Eu me inclinei para a frente e beijei a bochecha dele. — O.k. — falei. — O.k.
De repente me dei conta de que havia várias pessoas nos olhando, e que, na última vez em que tantas pessoas viram um beijo nosso, nós estávamos na casa da Anne Frank. Mas não havia mais, por assim dizer, um ‚nós‛ para se ver. Só um ‚eu‛.
Abri a bolsinha, enfiei a mão nela e tirei de lá um maço de Camel Lights. Num gesto rápido, que, eu esperava, ninguém atrás de mim ia reparar, enfiei-o no espaço entre o corpo dele e o forro de plush prateado do caixão.
— Você pode acender esses — sussurrei. — Não vou me importar.
* * *
Enquanto eu falava com ele, a mamãe e o papai haviam se deslocado para
a segunda fileira de cadeiras com meu cilindro, para que eu não tivesse de andar muito ao voltar. O papai me deu um lenço de papel quando me sentei. Assoei o nariz, ajeitei os tubos nas orelhas e reinseri os cateteres nasais.
Achei que iríamos até o santuário propriamente dito para a cerimônia, mas tudo aconteceu naquela pequena sala lateral, a Mão Literal de Jesus, acho — a parte da cruz na qual ele fora pregado. Um pastor se posicionou atrás do caixão, quase como se o caixão fosse um púlpito, e tal, e falou um pouco sobre como o Augustus havia enfrentado uma batalha corajosa e como o heroísmo dele diante da doença foi uma inspiração para todos nós, e eu já estava começando a ficar irritada com o homem quando ele disse: ‚No paraíso, o Augustus vai, finalmente, ser curado e ficar inteiro‛, o que implicava que ele tinha sido menos inteiro que as outras pessoas por lhe faltar uma perna, e eu meio que não consegui evitar um suspiro de repulsa. Meu pai colocou a mão na minha perna, logo acima do joelho, e me lançou um olhar de desaprovação, mas da fileira logo atrás de mim alguém resmungou perto do meu ouvido, tão baixo que quase não deu para escutar:
— Quanta baboseira, hein, garota?
Eu me virei.
O Peter Van Houten usava um terno de linho branco, feito sob medida para abarcar sua rotundidade, uma camisa azul-claro e uma gravata verde. Parecia que estava vestido para uma ocupação colonial do Panamá, não para um enterro. O pastor falou:
— Oremos. Mas enquanto todo mundo baixava a cabeça, eu só conseguia olhar boquiaberta para aquela visão do Peter Van Houten.
Depois de alguns segundos, ele sussurrou:
— Temos de fingir que estamos orando — e baixou a cabeça.
Tentei tirá-lo da cabeça e só rezar para o Augustus. Decidi prestar atenção ao que o pastor estava falando e não olhar para trás.
O pastor chamou o Isaac, que estava muito mais sério do que no pré-enterro.
— O Augustus Waters era o prefeito da Cidade Secreta de
Cancervânia, e ele não é substituível — o Isaac começou. — Outras pessoas poderão contar histórias engraçadas sobre o Gus, porque ele era um cara engraçado, mas vou contar uma história séria: um dia depois de arrancarem meu olho, o Gus apareceu no hospital. Eu estava cego, com o coração partido e não queria fazer nada. Ele entrou como um furacão no meu quarto e gritou: ‚Trago ótimas notícias!‛ E eu falei, tipo: ‚Não estou a fim de ouvir ótimas notícias agora‛, e o Gus disse: ‚Essas são ótimas notícias que você vai querer ouvir‛, e perguntei para ele: ‚Tá, o que é?‛, e ele respondeu: ‚Você vai viver uma vida boa e duradoura cheia de momentos maravilhosos e terríveis que você ainda não tem nem como imaginar como serão!‛
O Isaac não conseguiu continuar, ou então aquilo era tudo o que tinha escrito.
* * *
Depois que um amigo da escola contou algumas histórias sobre os talentos consideráveis do Gus no basquete e suas muitas qualidades como companheiro de equipe, o pastor disse:
— Agora vamos ouvir algumas palavras de uma amiga especial do Augustus.
Amiga especial?
Algumas risadinhas foram ouvidas entre o público presente, então achei que não haveria problema se eu começasse dizendo para o pastor:
— Eu era a namorada dele.
Aquilo provocou algumas risadas. E então comecei a ler o papel com o elogio fúnebre que eu tinha escrito.
— Há uma citação muito boa na casa do Gus, uma que tanto ele quanto eu achamos muito reconfortante: Sem dor, não poderíamos reconhecer o prazer.
Prossegui citando vários Encorajamentos de merda enquanto os pais do Gus, de braços dados, se abraçavam e anuíam com a cabeça a cada palavra. Cheguei a uma conclusão: cerimônias como essa são para os vivos.
* * *