Depois que a Julie, a irmã dele, falou, a cerimônia foi
encerrada com uma oração que falava sobre a união de Gus com Deus, e aí eu
pensei no que ele tinha dito no Oranjee, que não acreditava em mansões e
harpas, mas que acreditava, sim, em Algo com A maiúsculo, então tentei
imaginá-lo em Algum lugar com A maiúsculo enquanto rezávamos, mas mesmo naquele
momento não consegui me convencer direito de que nós dois ficaríamos juntos de
novo. Eu já conhecia muitas pessoas mortas. Sabia que agora o tempo passaria
para mim de um jeito diferente do que passaria para ele. Que eu, como todas as
pessoas naquele ambiente, seguiria acumulando amores e perdas enquanto ele,
não. E para mim aquela era a tragédia final e verdadeiramente insuportável:
como todos os inumeráveis mortos, ele havia sido, de uma vez por todas,
rebaixado de assombrado para assombração.
E aí um dos cunhados do Gus havia levado um aparelho de som
portátil e eles botaram para tocar uma música que o Gus havia escolhido: uma
canção triste e lenta do The Hectic Glow chamada ‚The New Partner‛.
Sinceramente, tudo o que eu queria era ir para casa. Eu não conhecia quase
nenhuma daquelas pessoas, e podia sentir os olhinhos do Peter Van Houten
olhando detidamente para meus ombros expostos, mas, depois que a música terminou,
todos tiveram de vir até mim e me dizer que o que eu falei foi lindo e que
aquela tinha sido uma cerimônia adorável, o que era mentira: aquilo era uma
cerimônia de enterro. E se parecia com qualquer outra cerimônia de enterro.
Os carregadores do caixão dele — alguns primos, o pai, um
tio, amigos que eu nunca tinha visto — se aproximaram e o seguraram, e todos
começaram a andar na direção do carro funerário.
Quando mamãe, papai e eu entramos
no carro, falei:
— Não quero ir. Estou cansada.
— Hazel — mamãe disse.
— Mãe, não vai ter lugar para sentar, vai durar horas e eu
estou exausta.
— Hazel, nós temos que ir pelo Sr. e pela Sra. Waters —
mamãe argumentou.
— É só que… — falei.
Eu me senti muito pequena no banco traseiro do carro, por
algum motivo. Eu meio que queria ser pequena. Queria ter seis anos ou coisa
parecida.
— Tá bem — falei.
Fiquei só olhando pela janela por um tempo. Eu realmente não
queria ir. Não queria vê-los baixando o Gus para debaixo da terra, no local que
ele havia escolhido com o pai; não queria ver os pais dele caindo de joelhos na
grama úmida de orvalho e gemendo de dor, não queria ver a barriga alcoólatra do
Peter Van Houten estufada no terno de linho, não queria chorar na frente de um
monte de gente, não queria jogar um bocado de terra na sepultura dele, não
queria que meus pais tivessem que ficar ali debaixo daquele céu azul e límpido
com a luminosidade do entardecer e sua certa obliquidade, pensando que chegaria
o dia deles, o da filha deles, do meu lote, do meu caixão e da minha terra.
Mas fiz tudo isso. Tudo isso e muito mais, porque mamãe e
papai achavam que devíamos.
* * *
Assim que terminou, o Van Houten andou até onde eu estava,
colocou a mão gorda no meu ombro e disse:
— Posso pegar uma carona com você? Deixei meu carro alugado
lá no pé da ladeira.
Dei de ombros e ele abriu a porta de trás na mesma hora em que
meu pai destrancou o carro.
Lá dentro, ele se inclinou entre os bancos da frente e
disse:
— Peter Van Houten: Romancista Emérito e Desapontador
Semiprofissional.
Meus pais se apresentaram. Ele os cumprimentou com um aperto
de mão. Eu estava bastante surpresa pelo fato de o Peter Van Houten ter
voado meio mundo para comparecer a um enterro.
— Como é que você…. — comecei, mas ele me cortou.
— Utilizei sua Internet infernal para acompanhar o obituário
de Indianápolis. — Ele colocou a mão dentro do terno de linho e tirou de lá uma
garrafa de uísque de 750 ml.
— E simplesmente comprou uma passagem de avião e…
Ele me interrompeu de novo enquanto desenroscava a tampa.
— Paguei 15 mil por uma passagem de primeira classe, mas sou
suficientemente capitalizado para me dar a esses luxos. E as bebidas no voo são
de graça. Dependendo da sua ambição, dá quase para ficar no zero a zero.
O Van Houten deu uma golada no uísque e depois chegou o
corpo para a frente, a fim de oferecê-lo ao meu pai, que reagiu dizendo:
— Ah, não, obrigado.
Em seguida, o Van Houten fez um gesto com a garrafa na minha
direção. Eu a segurei.
— Hazel — minha mãe disse, mas eu desenrosquei a tampa e
bebi um pouco. Aquilo fez meu estômago se sentir como meus pulmões.
Entreguei a garrafa de volta para o Van Houten, que entornou
um bocado para dentro e falou:
— Então. Omnis cellula e cellula.
— Hein?
— Seu namorado Waters e eu nos correspondemos um pouquinho,
e em sua última…
— Peraí, você lê cartas de fãs agora?
— Não, ele mandou a carta para a minha casa, e não através
do meu editor. E eu não poderia chamá-lo de fã. Ele me desprezava. Mas, de
qualquer forma, ele insistiu muito no fato de que eu seria absolvido de meu mau
comportamento se comparecesse ao enterro dele e dissesse a você o que acontece
com a mãe da Anna. Então, aqui estou, e eis sua resposta: Omnis cellula e
cellula.
— O quê? — perguntei de novo.
— Omnis cellula e cellula — ele falou mais uma vez. — Toda
célula
procede de outra célula. Toda célula nasce de uma que a
antecede, que se formou a partir de uma anterior. A vida procede da vida. Vida
gera vida gera vida gera vida gera vida.
Chegamos ao pé da ladeira.
— Tá. Então tá — falei.
Eu não estava com disposição para aturar aquilo. O Peter Van
Houten não ia desviar todas as atenções para ele no enterro do Gus. Eu não o
deixaria fazer isso.
— Obrigada — falei. — Bem, acho que já chegamos à base da
ladeira.
— Você não quer ouvir uma explicação para isso? — ele
perguntou.
— Não. Estou satisfeita. O que eu acho é que você é um
alcoólatra patético que fala coisas difíceis para chamar a atenção como se
fosse um garoto de onze anos precoce, e eu sinto muita pena de você. Mas, pois
é, não, você não é mais o cara que escreveu Uma aflição imperial, por isso não poderia
escrever a continuação dele mesmo se quisesse. Mas obrigada, mesmo assim. Tenha
uma vida excelente.
— Mas…
— Obrigada pelo goró — falei. — Agora saia do carro.
Ele estava com aquela expressão de criança sendo
repreendida. O papai havia parado o carro e nós ficamos ali parados abaixo do
túmulo do Gus por um minuto até que o Van Houten abriu a porta e, finalmente em
silêncio, saiu.
Enquanto nos afastávamos com o carro, olhei pela janela
traseira e o vi dar um gole na bebida e levantar a garrafa na minha direção,
como se estivesse brindando a mim. Os olhos dele estavam muito tristes. Tive um
pouco de pena, para ser sincera.
* * *
Por fim, chegamos de volta à nossa casa perto das seis, e eu
estava exausta. Só queria dormir, mas mamãe me fez comer um pouco de macarrão
com queijo. Pelo menos ela deixou que eu comesse na cama. Dormi algumas horas
com o BiPAP. Acordar foi um horror, porque, por um momento de
desorientação, tive a sensação de que tudo estava bem, mas
logo depois me senti sendo esmagada de novo. Mamãe me tirou do BiPAP, eu me
conectei a um cilindro portátil e segui aos trancos e barrancos até o meu
banheiro para escovar os dentes.
Ao me olhar no espelho enquanto escovava os dentes, fiquei
pensando que existiam dois tipos de adultos: os Peter Van Houtens — criaturas
desprezíveis que varriam a Terra à procura de algo a que magoar, e pessoas como
meus pais, que andavam de um lado para outro como zumbis, fazendo o que quer
que tivessem de fazer para continuar andando de um lado para outro.
Nenhum desses futuros me pareceu particularmente almejável.
Eu me sentia como se já tivesse visto tudo o que há de mais puro e bom no mundo
e começava a suspeitar de que, mesmo se a morte não tivesse atrapalhado o andar
da carruagem, o tipo de amor que eu e o Augustus compartilhamos não teria
durado. Assim a aurora se transforma em dia, o poeta escreveu. Nada que é
dourado fica. Alguém bateu na porta do banheiro.
— Está ocupado — falei.
— Hazel — meu pai disse. — Posso entrar?
Não respondi, mas depois de um tempo destranquei a porta. E
me sentei no vaso sanitário com a tampa fechada. Por que o ato de respirar
precisava ser tão trabalhoso? Papai se ajoelhou ao meu lado. Ele segurou minha
cabeça, puxou-a até encostar no ombro dele, e disse:
— Sinto muito pela morte do Gus.
Eu me senti meio que sufocada pela camisa de malha dele, mas
a sensação de ser segurada com tanta intensidade era boa demais, aninhada no
cheiro familiar do meu pai. Era quase como se ele estivesse com raiva ou coisa
assim, e gostei disso, porque eu também estava.
— É tudo uma grande palhaçada — ele disse. — A coisa toda.
Uma taxa de sobrevivência de oitenta por cento e ele está nos vinte por cento?
Palhaçada. Ele era um garoto tão brilhante! É uma palhaçada. Odeio isso. Mas
com certeza foi um privilégio poder amar o Gus, não foi?
Fiz que sim com a cabeça, encostada na camisa dele.
— Isso lhe dá uma ideia de como me sinto em relação a você —
ele disse.
Meu velho e amado pai. Sempre sabia a coisa certa a dizer.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
lguns dias depois, me levantei por volta do meio-dia e fui
de carro até a casa do Isaac. Ele mesmo veio abrir a porta.
— Minha mãe levou o Graham ao cinema — ele disse.
— Nós deveríamos fazer alguma coisa — falei.
— Essa alguma coisa pode ser jogar videogames para cegos no
sofá?
— É, essa é exatamente a alguma coisa que eu tinha em mente.
Então ficamos sentados ali umas duas horas juntos, falando
com a tela, navegando por uma caverna labiríntica invisível sem um lúmen de luz
sequer. A parte mais divertida do jogo era, de longe, tentar fazer o computador
estabelecer um diálogo engraçado com a gente:
Eu: ‚Encoste na parede da caverna.‛
Computador: ‚Você encosta na parede da caverna. Ela está
úmida.‛
Isaac: ‚Lamba a parede da caverna.‛
Computador: ‚Não compreendo. Fale de novo?‛
Eu: ‚Dê um amasso na parede úmida da caverna.‛
Computador: ‚Você tenta dar um passo. Você bate com a
cabeça.‛
Isaac: ‚Não é dê um passo. É DÊ UM AMASSO.‛
Computador: ‚Não compreendo.‛
Isaac: ‚Cara, eu tenho estado sozinho nesta caverna escura
há várias semanas e preciso me aliviar. DÊ UM AMASSO NA PAREDE DA CAVERNA.‛
Computador: ‚Sua tentativa de dar um pass…‛
Eu: ‚Pressione a pélvis com
tra a parede da caverna.‛
Computador: ‚Não com…‛
Isaac: ‚Faça amor com a caverna.‛
Computador: ‚Não com…‛
A
Eu: ‚TÁ BEM. Siga pelo ramo esquerdo.‛
Computador: ‚Você segue pelo ramo esquerdo. A passagem se
estreita.‛
Eu: ‚Engatinhe.‛
Computador: ‚Você engatinha noventa metros. A passagem se
estreita.‛
Eu: ‚Rasteje como uma cobra.‛
Computador: ‚Você rasteja como uma cobra por trinta metros.
Um fio de água percorre seu corpo. Você alcança um monte de pedrinhas que
bloqueiam o caminho.‛
Eu: ‚Posso dar um amasso na caverna agora?‛
Computador: ‚Você não pode dar um passo sem ficar de pé
primeiro.‛
Isaac: ‚Eu não gosto de viver num mundo sem o Augustus
Waters.‛
Computador: ‚Não compreendo…‛
Isaac: ‚Eu também não. Pausa.‛
* * *
Ele largou o controle no sofá, entre nós dois, e perguntou:
— Você sabe se ele sofreu, e tal? — Acho que fez um esforço
enorme para respirar — falei — e acabou ficando inconsciente, mas parece que,
é, não foi muito legal nem nada. Morrer é uma droga.
— É — o Isaac falou. E, depois de algum tempo: — É que
parece tão impossível…
— Acontece o tempo todo — falei.
— Você está com raiva — ele disse.
— É.
Nós dois ficamos ali sentados por um bom tempo, numa boa, e
eu fiquei pensando no início de tudo no Coração Literal de Jesus, quando o Gus
nos disse que tinha medo do esquecimento e eu falei que ele estava com medo de
algo universal e inevitável, e que, na verdade, o problema não é o sofrimento
nem o esquecimento em si, mas a ausência imoral de sentido nisso tudo, o
niilismo absolutamente inumano do sofrimento.
Pensei no meu pai me dizendo que o universo quer ser notado.
Mas o que nós queremos é ser notados pelo universo, fazer com que o universo dê
alguma bola para o que acontece com a gente — não a ideia coletiva de vida
senciente, mas cada um de nós, como indivíduos.
— O Gus amava você de verdade, sabe — ele falou.
— Sei.
— Ele não conseguia parar de falar nisso.
— Eu sei.
— Era irritante.
— Eu não achava irritante — falei.
— Ele chegou a te dar aquela coisa que ele estava
escrevendo?
— Que coisa?
— A continuação, ou sei lá o quê, daquele livro que você
gostava. Eu me virei para o Isaac.
— O quê?
— Ele disse que estava escrevendo alguma coisa para você mas
que não era bom escritor.
— Quando foi que ele disse isso?
— Sei lá. Foi, tipo, em algum momento depois da volta de Amsterdã.
— Em que momento? — pressionei-o.
Será que Gus não teve a chance de completar? Será que tinha
terminado e deixado no computador ou algo assim?
— Humm — o Isaac suspirou.
— Humm. Não sei. Nós falamos disso aqui, uma vez. Ele estava
aqui, tipo… é, nós mexemos na minha máquina de e-mails e eu tinha acabado de
receber um e-mail da minha avó. Posso procurar na máquina se você…
— Tá, tá, cadê?
* * *
Ele tinha falado daquilo um mês atrás. Um mês! Não um bom
mês, devo reconhecer, mas ainda assim um mês. Era tempo suficiente para ter
conseguido escrever pelo menos alguma coisa. Ainda havia algo dele, ou
pelo menos feito por ele, flutuando por aí. E eu precisava
daquilo.
— Vou até a casa dele — falei para o Isaac.
Andei apressada até a minivan e arrastei o carrinho do
oxigênio para o banco do carona. Liguei o carro. Uma batida de hip-hop começou
a tocar alto no som e, quando estiquei a mão para mudar de estação, alguém
começou a cantarolar um rap. Em sueco.
Eu me virei e gritei quando vi o Van Houten no banco de
trás.
— Peço desculpas por alarmá-la — o Peter Van Houten disse,
sua voz se misturando com o som do rap.
Ele ainda estava com o terno que tinha usado no enterro,
quase uma semana depois. Seu cheiro era de quem tinha álcool saindo pelos poros
junto com o suor.
— Você pode ficar com o CD — ele disse. — É o Snook. Na
Suécia ele é um dos maiores….
— Ai ai ai ai SAIA DO MEU CARRO.
Desliguei o rádio.
— Este carro é da sua mãe, se bem entendi — ele disse. —
Além disso, não estava trancado.
— Ai, meu Deus! Saia do carro senão vou chamar a polícia.
Cara, qual é o seu problema?
— Se pelo menos houvesse só um — ele divagou. — Só estou
aqui para pedir desculpas. Você estava certa quando observou, anteriormente,
que sou um homem patético e dependente do álcool. Uma conhecida minha só
passava algum tempo comigo porque eu a pagava para fazê-lo. E o pior é que ela
se demitiu, deixando-me, a alma rara que não consegue companhia nem mediante
suborno. É tudo verdade, Hazel. Tudo isso e muito mais.
— Tá — falei.
Teria sido um discurso mais tocante se ele não tivesse
engrolado as palavras.
— Você me lembra a Anna.
— Eu lembro muita gente a muita gente — respondi. —
Realmente preciso ir.
— É só dirigir — ele disse.
— Saia.
— Não. Você me lembra a Anna — ele disse de novo.
Depois de um segundo, engatei a marcha à ré e comecei a
andar com o carro. Eu não estava conseguindo fazê-lo sair, e não precisava
continuar tentando. Iria até a casa do Gus e os pais do Gus o fariam ir embora.
— Obviamente você está familiarizada — o Van Houten disse —
com Antonietta Meo.
— Não — falei.
Liguei o rádio e o hip-hop sueco tocou alto, mas o Van
Houten gritou mais alto ainda.
— Ela poderá se tornar, em breve, a santa não mártir mais
jovem a ser beatificada pela Igreja Católica. Teve o mesmo câncer que o Sr.
Waters, osteossarcoma. Eles amputaram a perna direita dela. A dor era
excruciante. Enquanto Antonietta Meo estava à beira da morte, na tenra idade de
seis anos, por causa desse câncer agonizante, disse para o pai: ‚A dor é como
um tecido. Quanto mais forte, mais valioso.‛ Isso é verdade, Hazel?
Eu não estava olhando diretamente para ele, mas para seu
reflexo no espelho.
— Não — gritei mais alto que a música. — Isso é bobagem.
— Mas você não gostaria que fosse verdade? — ele gritou em
resposta.
Eu desliguei o som.
— Sinto muito por ter estragado sua viagem. Vocês eram tão
jovens… Vocês eram…
Ele começou a chorar. Como se tivesse algum direito de
chorar pela morte do Gus. O Van Houten era apenas mais um dos diversos
pranteadores que não o conheciam, mais um lamento que chegou tarde demais em
seu mural.
— Você não estragou nossa viagem, seu filho da mãe
convencido. Nossa viagem foi maravilhosa.
— Estou tentando — ele disse. — Estou tentando, juro.
Foi mais ou menos nessa hora que acabei me dando conta de
que o Peter Van Houten tinha perdido alguém da família. Pensei na honestidade
com a qual ele havia escrito a respeito de crianças com câncer; no fato de não
ter conseguido falar comigo e só perguntado se eu tinha me vestido como a Anna
de propósito; toda aquela baboseira que ele jogou para cima de mim e do
Augustus; a pergunta dolorosa dele sobre a relação entre a gravidade da dor e
seu valor. Ele chegou o corpo para trás e continuou sentado, bebendo, um velho
que vinha bebendo havia vários anos. Lembrei de uma estatística que preferia
não conhecer: metade dos casamentos terminam no ano que se segue à morte de um
filho. Olhei para trás, para o Van Houten. Eu estava percorrendo a Avenida College,
aí encostei atrás de uma fileira de carros estacionados e perguntei.
— Você teve um filho que morreu?
— Minha filha — ele disse. — Tinha oito anos. Sofreu
lindamente. Nunca será beatificada.
— Ela teve leucemia? — perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Como a Anna — falei.
— Sim, exatamente como a Anna.
— Você era casado?
— Não. Bem, não quando ela morreu. Eu me tornei uma pessoa
insuportável muito antes de nós a perdermos. A tristeza não nos muda, Hazel.
Ela nos revela.
— Você morava com ela?
— Não, não no início, embora no fim nós a tenhamos levado
para Nova York, onde eu estava morando, para uma série de torturas
experimentais que aumentaram o sofrimento de seus dias sem aumentá-los em
número.
Depois de um segundo, eu falei:
— Então é como se você tivesse dado a ela uma segunda vida
na qual conseguiu chegar à adolescência.
— Suponho que essa seja uma avaliação razoável — ele disse,
e então logo acrescentou:
— Presumo que você esteja familiarizada com o exercício
mental de Philippa Foot intitulado ‚dilema do bonde‛?
— E aí eu apareço na sua casa, vestida como a menina que
você esperava que ela viveria para se tornar, e você fica, tipo, desconcertado.
— Em determinada linha, há um bonde desgovernado — ele
disse.
— Não dou a mínima para o seu exercício mental idiota —
falei.
— É o exercício da Philippa Foot, na verdade.
— Bem, nem para o dela.
— Ela não entendia por que aquilo estava acontecendo — ele
disse. — Tive de contar para ela que iria morrer. A assistente social falou que
eu precisava contar. Precisei lhe dizer que iria morrer, então falei que ela
iria para o céu. Ela perguntou se eu estaria lá, então respondi que não, não
naquele momento. Mas algum dia, ela quis saber, e prometi que sim, claro, muito
em breve. E falei que naquele ínterim haveria uma ótima família lá em cima que
tomaria conta dela. Ela me perguntou quando eu iria para lá, e respondi que
seria logo. Vinte e dois anos atrás.
— Sinto muito.
— Eu também.
Depois de um tempo, perguntei:
— O que aconteceu com a mãe dela?
Ele sorriu.
— Você ainda está em busca de uma continuação, sua
danadinha.
Sorri também.
— Você deveria voltar para casa — falei para ele. — Fique
sóbrio. Escreva outro livro. Faça aquilo no qual você é bom. Nem todo mundo tem
essa sorte de ser bom em alguma coisa. Ele ficou olhando fixamente para mim
pelo espelho durante um bom tempo.
— Certo — ele disse. — Está bem. Você tem razão. Você tem
razão. Mas, mesmo ao dizer isso, tirou do bolso a garrafa de uísque quase
vazia. Bebeu, recolocou a tampa na garrafa e abriu a porta.
— Tchau, Hazel. — Fique bem, Van Houten.
Ele se sentou no meio-fio atrás do carro. Enquanto eu o via
encolher pelo espelho retrovisor, ele pegou a garrafa e por um instante pareceu
que
iria deixá-la no meio-fio. Mas então tomou outro gole.
* * *
Era uma tarde quente em Indianápolis, o ar carregado e
estático como se estivéssemos dentro de uma nuvem. Era o pior tipo de ar para
mim, e tentei me convencer de que era só o ar quando a caminhada da entrada de
veículos até a porta da casa do Gus pareceu infinita. Toquei a campainha e a
mãe dele abriu a porta.
— Ah, Hazel — ela disse, e me abraçou chorando.
Ela me fez acompanhá-la e ao pai do Gus comendo um pouco de
lasanha de berinjela — acho que muita gente tinha levado comida até lá, e tal.
— Como você está?
— Sinto falta dele.
— É.
Eu não sabia bem o que dizer. Tudo o que queria era ir lá
embaixo e procurar o que quer que ele tivesse escrito para mim. Além disso, o
silêncio naquele ambiente realmente me incomodava. Queria que eles estivessem
conversando um com o outro, se consolando ou de mãos dadas ou sei lá. Mas eles
só ficavam lá sentados, comendo porções muito pequenas de lasanha, sem nem se
dirigir o olhar.
— O céu precisava de um anjo — o pai dele disse depois de um
tempo.
— Eu sei — falei.
Aí as irmãs dele e seus filhos bagunceiros chegaram e
invadiram a cozinha. Eu me levantei e as abracei, e depois fiquei vendo as
crianças correrem pela cozinha com seu excesso extremamente necessário de
barulho e movimento, moléculas excitadas se chocando umas contra as outras e
gritando:
Tá com você não tá com você não estava comigo mas aí eu
peguei você você não me pegou você nem chegou a encostar em mim então estou
pegando você agora não seu bundão porque agora nós estamos dando um
tempo DANIEL NÃO CHAME SEU IRMÃO DE BUNDÃO Mãe se eu não
posso dizer essa palavra por que você acabou de falar bundão bundão — e então,
em coro, bundão bundão bundão bundão, e, à mesa, os pais do Gus estavam agora
de mãos dadas, o que me fez sentir um pouco melhor.
— O Isaac me disse que o Gus estava escrevendo uma coisa,
uma coisa para mim — falei.
As crianças ainda estavam cantando o melô do bundão.
— Podemos dar uma olhada no computador dele — a mãe do Gus
disse.
— Ele não usou muito o computador nas últimas semanas —
falei.
— É verdade. Não tenho nem certeza se o trouxemos aqui para
cima. Ainda está no porão, Mark?
— Não faço ideia.
— Bem — falei —, será que posso…
Fiz um gesto com a cabeça na direção do porão.
— Ainda não estamos preparados — o pai dele disse. — Mas,
claro que sim, Hazel. É claro que você pode.
* * *
Andei até lá embaixo, passei pela cama desarrumada, pelas
poltronas do videogame abaixo da TV. O computador dele ainda estava ligado.
Cliquei no mouse para ativá-lo e então procurei pelos arquivos editados mais
recentemente. Nada no último mês. A coisa mais recente era uma resenha do livro
O olho mais azul, de Toni Morrison.
Talvez ele tivesse escrito algo à mão. Andei até as
prateleiras de livros, procurando um diário ou bloco ou caderno. Nada. Folheei
o exemplar dele do Uma aflição imperial. O Gus não havia deixado uma marquinha
sequer no livro. Em seguida andei até a mesa de cabeceira. Mayhem infinito, o
nono volume da série ‚O preço do alvorecer‛, estava em cima da mesa ao lado do
abajur, a página 138 com uma orelha dobrada.
Ele nem conseguiu chegar ao fim do livro.
— Para acabar com o suspense: o Mayhem sobrevive — falei
alto,
caso ele conseguisse me ouvir.
E aí eu deitei na cama desarrumada, me enrolando no edredom
como um casulo, me envolvendo no cheiro dele. Tirei a cânula para poder sentir
melhor aquele cheiro, inspirando e expirando o Gus, o aroma já se dissipando
mesmo enquanto eu ainda estava deitada lá, meu peito queimando até eu não poder
diferenciar as dores.
Eu me sentei na cama depois de um tempo, reinseri minha cânula
e respirei por alguns minutos antes de subir as escadas. Só o que fiz foi
balançar a cabeça negativamente em resposta aos olhares de expectativa dos pais
dele. As crianças passaram por mim correndo. Uma das irmãs do Gus, eu não sabia
ainda dizer quem era quem, falou:
— Mãe, você quer que eu os leve para o parque ou algo assim?
— Não, não, está tudo bem.
— Há algum outro lugar no qual o Gus possa ter colocado um
bloco ou caderno? Tipo, ao lado da cama de hospital, quem sabe? A cama já tinha
sido retirada de lá, como requisitado pelo hospital.
— Hazel — o pai dele falou —, você esteve aqui conosco todos
os dias… ele não ficava muito tempo sozinho, querida. Não teria tido tempo de
escrever nada. Sei que você quer… Quero isso também. Mas as mensagens que ele
nos deixa agora estão vindo lá de cima, Hazel.
Ele apontou para o teto, como se o Gus estivesse pairando
sobre a casa. Talvez estivesse. Não sei. Mas não conseguia sentir a presença
dele.
— É — falei.
Prometi visitá-los novamente dali a alguns dias.
Nunca mais senti o cheiro dele de novo.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
rês dias depois, no terceiro dia DG, o pai do Gus me ligou
de manhã. Eu ainda estava conectada ao BiPAP, por isso não atendi, mas ouvi o
recado deixado na caixa postal assim que o celular apitou avisando do
recebimento.
‚Hazel, oi, aqui é o pai do Gus. Eu achei um Moleskine preto
no revisteiro que estava do lado da cama de hospital, acho que próximo o
suficiente para ele alcançá-lo. Infelizmente não há nada escrito nele. As
páginas estão todas em branco. Mas as primeiras, acho que umas três ou quatro,
foram arrancadas. Vasculhamos a casa toda à procura delas, mas não as
encontramos. Por isso não sei o que pensar. Mas talvez fosse a essas páginas
que o Isaac estava se referindo. De qualquer forma, espero que esteja bem. Você
está em nossas orações todos os dias, Hazel. Então, tá. Um beijo. Tchau.‛
Três ou quatro páginas arrancadas de um Moleskine e que não
estavam mais na casa do Augustus Waters. Onde ele as teria deixado para mim?
Presas com fita adesiva nos Ossos Maneiros? Não, ele não estava em condições de
ir até lá. O Coração Literal de Jesus. Talvez ele tivesse deixado as páginas lá
para mim no seu Último Dia Bom.
Por causa disso, saí para ir ao Grupo de Apoio no dia
seguinte vinte minutos mais cedo. Fui dirigindo até a casa do Isaac, ele entrou
no carro e nós seguimos para o Coração Literal de Jesus com as janelas da
minivan abertas, ouvindo o novo álbum do The Hectic Glow, recentemente
disponibilizado na rede. Que o Gus nunca ouviria.
Pegamos o elevador. Guiei o Isaac até uma cadeira na Roda da
Esperança e depois fui percorrendo vagarosamente todo o Coração Literal. Olhei
em todos os lugares: debaixo das cadeiras, em volta do púlpito atrás do qual eu
tinha ficado enquanto lia meu elogio fúnebre, debaixo da mesa
T
de biscoitos, no quadro de avisos cheio de desenhos do amor
divino feitos pelas crianças que frequentavam a escola dominical. Nada. Aquele
foi o único lugar onde tínhamos estado juntos nos últimos dias, além da casa
dele. Ou as páginas não estavam ali ou eu estava esquecendo de procurar em
algum lugar. Talvez ele as tivesse deixado para mim no hospital, mas, se fosse
esse o caso, elas com certeza foram jogadas fora depois da morte dele.
Eu estava realmente sem fôlego quando, por fim, me sentei
numa cadeira ao lado do Isaac, e me dediquei, durante todo o depoimento da
ausência de bolas do Patrick, a dizer a meus pulmões que eles estavam bem, que
podiam respirar, que havia oxigênio suficiente. O líquido deles havia sido
drenado uma semana antes da morte do Gus. Fiquei vendo a água cancerosa cor de
âmbar pingar para fora de mim pelo tubo. E mesmo assim tinha a sensação de que
estavam cheios de novo. Fiquei tão concentrada em dizer a mim mesma para
respirar que, num primeiro momento, não reparei que o Patrick tinha dito o meu
nome. Retomei a atenção num estalo.
— Sim? — perguntei.
— Como você está?
— Estou bem, Patrick. Um pouco sem fôlego.
— Gostaria de compartilhar com o grupo uma lembrança que tem
do Augustus?
— Eu só queria poder morrer, Patrick. Alguma vez você já
sentiu vontade de simplesmente morrer?
— Já — o Patrick disse, sem fazer a pausa costumeira. — Já,
é claro. Então por que você não morre?
Pensei naquilo. Minha resposta, retirada de um estoque
antigo, era que eu queria continuar viva pelos meus pais, porque eles ficariam
arrasados e sem filhos depois de mim, e aquilo ainda era meio verdade, mas não
era bem isso, exatamente.
— Não sei.
— Porque você tem esperança de melhorar?
— Não — falei. — Não, não é isso. Eu realmente não sei.
Isaac? —
passei a bola.
Estava cansada de falar.
O Isaac começou a falar do amor verdadeiro. Eu não poderia
dizer a eles o que tinha em mente porque soava brega, mas o que eu estava
pensando era no universo querendo ser notado e em como eu havia reparado nele
da melhor forma possível. Eu me sentia em dívida com o universo, uma dívida que
só a minha atenção poderia saldar, e, além disso, me sentia em dívida com todo
mundo que deixou de ser uma pessoa e com todo mundo que ainda não tinha chegado
a ser uma pessoa. Tudo o que meu pai tinha me dito, basicamente.
Fiquei em silêncio até o fim da reunião do Grupo de Apoio, o
Patrick me dedicou uma oração especial, o nome do Gus foi adicionado à longa
lista de mortos — quatorze para cada um de nós — todos prometemos viver o
melhor da nossa vida hoje, e aí eu levei o Isaac para o carro.
* * *
Quando cheguei de volta à minha casa, mamãe e papai estavam
à mesa de jantar, cada um com seu laptop, e assim que entrei pela porta mamãe
fechou a tampa do dela.
— O que tem no computador?
— Só algumas receitas antioxidantes. Preparada para o BiPAP
e para o America’s Next Top Model? — ela perguntou.
— Só vou me deitar um minuto.
— Você está bem?
— Estou, só um pouco cansada.
— Bem, você precisa comer antes de…
— Mãe, eu não estou com a menor fome.
Dei um passo na direção da porta, mas ela me parou.
— Hazel, você precisa comer. Só um pouco de…
— Não. Estou indo deitar.
— Não — mamãe falou. — Você não vai. Olhei para o meu pai,
que só deu de ombros.
— É a minha vida — falei.
— Você não vai ficar com fome até morrer só porque o
Augustus se foi. Você vai jantar.
Fiquei muito irritada, por algum motivo.
— Eu não consigo comer, mãe. Não consigo. Tá?
Tentei passar por ela, mas a mamãe me segurou pelos ombros e
disse:
— Hazel, você vai jantar. Você precisa se manter saudável.
— NÃO! — gritei. — Não vou jantar e não posso me manter
saudável porque não sou saudável. Estou morrendo, mãe. Vou morrer e deixar você
aqui sozinha, e você não vai mais ter uma ‚eu‛ para pairar em torno, e você não
vai mais ser mãe, e eu sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer a
respeito, tá?!
Eu me arrependi de ter dito aquilo assim que fechei a boca.
— Você ouviu o que eu disse.
— O quê?
— Você ouviu quando eu disse isso ao seu pai? — Ela
arregalou os olhos. — Você escutou? — Eu fiz que sim. — Ai, meu Deus, Hazel.
Sinto muito. Eu estava errada, querida. Aquilo não era verdade. Eu falei num
momento de desespero. Não é algo em que eu acredite. — ela disse e se sentou, e
eu me sentei junto.
Fiquei pensando que deveria simplesmente ter vomitado algum
macarrão por ela, em vez de ter ficado tão irritada.
— Em que você acredita, então? — perguntei.
— Enquanto uma de nós estiver viva, eu serei sua mãe — ela
falou. — Mesmo se você morrer, eu…
— Quando — falei.
Ela assentiu com a cabeça.
— Mesmo quando você morrer, eu ainda serei sua mãe, Hazel.
Não vou deixar de ser sua mãe. Você deixou de amar o Gus?
Balancei a cabeça negativamente.
— Bem, então como eu poderia deixar de amar você?
— Tá — falei. Meu pai começou a chorar.
— Eu quero que vocês vivam a vida de vocês — continuei. — Eu
fico
com medo de vocês não terem uma vida para viver, de ficarem
sentados aqui o dia todo sem um ‚eu‛ para cuidar, olhando para as paredes,
querendo dar o fora.
Depois de um minuto, a mamãe disse:
— Eu estou fazendo um curso. A distância, da Universidade de
Indiana. Para obter um diploma de mestrado em serviço social. Na verdade, eu
não estava lendo receitas de antioxidantes; estava fazendo um trabalho do
curso.
— Sério?
— Não quero que pense que estou imaginando um mundo sem
você. Mas se conseguir o mestrado poderei ajudar famílias que estejam em
momentos difíceis ou liderar grupos que lidam com as doenças dos familiares
deles ou…
— Peraí, você vai virar um Patrick?
— Bem, não exatamente. Existem vários tipos de trabalho de
assistência social.
Papai falou:
— Nós dois ficamos preocupados achando que você poderia se
sentir abandonada. É importante que você saiba que sempre estaremos aqui para
você, Hazel. Sua mãe não vai a lugar algum.
— Não, isso é ótimo. Isso é fantástico! — Eu estava sorrindo
de verdade. — A mamãe vai virar um Patrick. Ela vai ser um ótimo Patrick! Ela
vai ser tão melhor nisso que o Patrick!
— Obrigada, Hazel. Isso significa muito para mim.
Eu balancei a cabeça. E comecei a chorar. Não consegui
conter a felicidade que estava sentindo, chorando lágrimas verdadeiras de
felicidade pela primeira vez em sei lá quanto tempo, imaginando minha mãe como
um Patrick. Aquilo me fez pensar na mãe da Anna. Ela também teria dado uma
ótima assistente social. Depois de um tempo, ligamos a TV e assistimos ao ANTM.
Mas dei uma pausa no programa cinco segundos após o início porque tinha várias
perguntas a fazer para a mamãe.
— Quanto falta para você terminar o curso?
— Se eu for a Bloomington e passar uma semana lá nesse
verão, pode
ser que consiga terminar em dezembro.
— Há quanto tempo exatamente você vem escondendo isso de
mim?
— Há um ano.
— Mãe.
— Eu não queria magoar você, Hazel. Incrível.
— Então, quando você está esperando por mim do lado de fora
do MCC ou do Grupo de Apoio ou sei lá o quê, você está sempre…
— Estou. Fazendo trabalhos ou lendo.
— Isso é tão maravilhoso! Quando eu morrer, quero que você
saiba que estarei suspirando para você lá do céu cada vez que pedir a alguém
que compartilhe seus sentimentos.
Meu pai riu.
— E eu vou estar com você, filha — ele me garantiu.
Por fim, assistimos ao ANTM. O papai fez um esforço enorme
para não morrer de tédio e toda hora confundia quem era quem entre as garotas,
e perguntava:
— Nós gostamos dessa?
— Não, não. Nós odiamos a Anastasia. Nós gostamos da
Antonia, a outra loira — a mamãe explicou.
— Elas todas são altas e horríveis — papai retrucou. —
Perdão por não conseguir distingui-las.
Papai esticou o braço por cima do meu colo para pegar a mão
da mamãe.
— Vocês acham que vão continuar juntos se eu morrer? —
perguntei. — Hazel, o quê? Querida. — A mamãe procurou o controle remoto e deu
uma pausa na TV de novo. — O que a preocupa?
— É só que, vocês acham que vão continuar juntos?
— Sim, é claro. É claro — o papai disse. — Sua mãe e eu nos
amamos, e se perdermos você, vamos enfrentar isso juntos.
— Jure por Deus — falei.
— Eu juro por Deus — ele disse.
Olhei para a mamãe.
— Juro por Deus — ela concordou. — Mas por que é que você
está
preocupada com isso?
— Só não quero estragar a vida de vocês nem nada.
A mamãe se inclinou para a frente e encostou o rosto no meu
cabelo bagunçado, me beijando no alto da cabeça.
Falei para o papai:
— Não quero que você se torne um alcoólatra desempregado e
patético ou coisa assim.
Minha mãe sorriu.
— Seu pai não é o Peter Van Houten, Hazel. Você, mais que
qualquer pessoa, sabe que é possível conviver com a dor.
— É, tá — falei, e mamãe me abraçou, e eu deixei que ela
fizesse isso, mesmo, no fundo, não querendo.
— Tá, você pode dar play agora — falei.
A Anastasia foi eliminada. Ela fez um escândalo. Foi
incrível. Comi um pouco no jantar, farfalle com molho pesto, e consegui fazer
com que a comida continuasse dentro de mim.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
cordei na manhã seguinte em pânico porque tinha sonhado que
estava sozinha, dentro de um lago enorme, sem um barco. Levantei no susto,
puxando o BiPAP com força para a frente, e senti a mão da mamãe em mim.
— Oi, você está bem?
Meu coração estava disparado, mas fiz que sim
com a cabeça. Mamãe falou:
— A Kaitlyn está ao telefone e quer falar com você.
Apontei para o BiPAP. Ela me ajudou a tirá-lo e me conectou
ao Felipe. Só então peguei o celular da mão da mamãe e disse:
— Oi, Kaitlyn.
— Só liguei para saber como está tudo — ela disse. — Para
ver como você está indo.
— Ah, obrigada. Estou indo bem.
— Você simplesmente teve um azar enorme, amada. Isso é tão
desarrazoado!
— Talvez — falei.
Eu não pensava muito mais na minha sorte ou no meu azar. Na
verdade, não queria falar com a Kaitlyn sobre nada, mas ela insistia em puxar
assunto.
— E então, como foi? — ela perguntou.
— Como foi a morte do meu namorado? Humm, uma droga.
— Não — ela falou. — Estar apaixonada.
— Ah — falei. — Ah. Foi… foi legal passar um tempo com
alguém tão interessante. Nós éramos muito diferentes, e discordávamos em muitas
coisas, mas ele era sempre tão interessante, sabe?
— Ai de mim, não sei. Os garotos que eu conheço são
extremamente
A
desinteressantes.
— Ele não era perfeito nem nada. Ele não era um príncipe
encantado de conto de fadas, e tal. Tentava ser assim às vezes, mas eu gostava
mais dele quando essas coisas desapareciam.
— Você tem, tipo, um álbum com as fotos e as cartas que ele
escreveu?
— Tenho algumas fotos, mas ele nunca chegou a me escrever
nenhuma carta. Exceto, bem, há algumas páginas faltando no caderninho dele que
podem ter sido algo para mim, mas acho que ele as jogou fora ou elas se
perderam ou coisa assim.
— Talvez ele tenha mandado essas páginas pelo correio para
você — ela disse.
— Não, elas já teriam sido entregues aqui.
— Então talvez não tenham sido escritas para você — ela
falou. — Talvez… Quer dizer, não quero deixar você deprimida nem nada, mas
talvez ele as tenha escrito para outra pessoa e colocado no correio…
— VAN HOUTEN! — gritei.
— Você está bem? Isso foi uma tosse?
— Kaitlyn, eu te amo. Você é um gênio. Tenho que ir agora.
Desliguei o telefone, rolei para o lado, peguei o laptop,
apertei o botão de ligar e então escrevi um e-mail endereçado a Lidewij
Vliegenthart.
Lidewij,
Acredito que o Augustus Waters tenha enviado algumas páginas
do caderninho dele para o Peter Van Houten logo antes de ele (o Augustus)
morrer. É muito importante para mim que alguém leia essas páginas. Eu quero
lê-las, claro, mas talvez elas não tenham sido escritas para mim. De qualquer
forma têm de ser lidas. Precisam ser lidas.
Você poderia me ajudar com isso?
Hazel Grace Lancaster
Ela respondeu no fim daquela tarde.
Querida Hazel,
Eu não sabia que o Augustus tinha morrido. Fiquei muito
triste ao saber do acontecido. Ele era um jovem muito carismático. Sinto tanto.
Estou tão triste. Não falei com o Peter desde que me demiti, naquele dia em que
nos conhecemos. Está muito tarde aqui agora, mas irei até a casa dele amanhã
cedo a fim de procurar essa carta e forçá-lo a lê-la. As manhãs costumavam ser
a melhor hora para falar com ele. Sua amiga,
Lidewij Vliegenthart
PS: Levarei meu namorado comigo, para o caso de termos de
conter o Peter fisicamente.
* * *
Fiquei me perguntando por que ele teria escrito para o Van
Houten naqueles últimos dias em vez de para mim, dito que ele só seria
absolvido se me desse a minha continuação. Talvez as páginas do caderninho só
repetissem seu pedido ao Van Houten. Fazia sentido, o Gus usando sua
terminalidade para realizar meu sonho: a continuação da história era um algo
muito pequeno pelo qual morrer, mas foi o maior que restou à sua disposição.
Atualizei meus e-mails sem parar aquela noite, dormi algumas horas, e então
comecei a atualizar de novo lá pelas cinco da manhã. Mas não chegou nada.
Tentei ver TV para me distrair, mas minha cabeça ficava
viajando de volta a Amsterdã, imaginando a Lidewij Vliegenthart e o namorado
percorrendo a cidade de bicicleta numa louca missão à procura da última
correspondência de um garoto morto. Como seria divertido ir sacudindo na
traseira da bicicleta da Lidewij Vliegenthart pelas ruas de paralelepípedo, seu
cabelo vermelho e ondulado sendo soprado em meu rosto, o cheiro dos canais e da
fumaça dos cigarros, todas aquelas pessoas sentadas do lado de fora dos cafés
bebendo cerveja, falando suas letras ‚R‛ e ‚G‛ de um jeito que eu jamais
aprenderia…
Eu sentia falta do futuro. É claro que eu sabia, muito mesmo
antes da recorrência dele, que nunca envelheceria ao lado do Augustus Waters.
Mas ao pensar na Lidewij e em seu namorado, eu me senti roubada. Era muito
provável que eu nunca mais fosse ver o oceano de uma altura de trinta mil pés
de novo, uma distância tão grande que não dá nem para distinguir as ondas, nem
nenhum barco, de um jeito que faz o oceano parecer um enorme e infinito
monólito. Eu poderia imaginá-lo. Eu poderia me lembrar dele. Mas não poderia
vê-lo de novo, e me ocorreu que a ambição voraz dos seres humanos nunca é
saciada quando os sonhos são realizados, porque há sempre a sensação de que
tudo poderia ter sido feito melhor e ser feito outra vez.
E mesmo se você conseguir chegar aos noventa anos, deve dar
essa mesma sensação — embora eu inveje as pessoas que têm a oportunidade de
comprovar isso. Mas, pensando bem, eu já tinha vivido o dobro do tempo que a
filha do Van Houten. O que ele não teria dado para ter uma filha morta aos
dezesseis anos…
De repente, a mamãe estava de pé entre mim e a TV, as mãos
cruzadas nas costas.
— Hazel — ela disse.
Seu tom de voz era tão grave que achei que algo estava
errado.
— Sim?
— Você sabe que dia é hoje?
— Não é meu aniversário, é?
Ela riu.
— Ainda não. Hoje é dia quatorze de julho, Hazel.
— É o seu aniversário?
— Não… — É o aniversário do Harry Houdini?
— Não…
— Cansei de tentar adivinhar, sério.
— É O DIA EM QUE SE COMEMORA A QUEDA DA BASTILHA!
Ela levou os braços à frente do corpo, revelando duas
bandeirinhas de plástico da França e agitando-as entusiasticamente.
— Isso parece coisa inventada. Tipo o Dia da Consciência do
Cólera.
— Garanto a você, Hazel: o dia da Queda da Bastilha não é
uma invenção. Você sabia que há exatamente duzentos e vinte e três anos o povo
da França invadiu a prisão da Bastilha para se armar e lutar por sua liberdade?
— Uau — falei. — Nós deveríamos mesmo comemorar esta data
tão importante.
— Acontece que eu acabei de combinar com seu pai um
piquenique no Holliday Park.
Ela nunca se cansava de tentar, a minha mãe. Empurrei o sofá
com a mão e me levantei. Juntas reunimos alguns ingredientes para sanduíches e
achamos uma cesta de piquenique empoeirada no armário do corredor.
* * *
O dia estava, tipo, lindo, finalmente verão de verdade em
Indianápolis, quente e úmido — o tipo de clima que fazia você se lembrar,
depois de um longo inverno, que ainda que o mundo não tivesse sido feito para
os seres humanos, nós tínhamos sido feitos para o mundo. O papai estava
esperando por nós, de terno bege, de pé na vaga para pessoas com deficiência,
digitando em seu smartphone. Ele acenou para nós enquanto estacionávamos e
depois me abraçou.
— Que dia! — ele disse. — Se morássemos na Califórnia, todos
os dias seriam assim.
— É, mas aí você não daria valor a eles — minha mãe falou.
Ela estava errada, mas eu não a corrigi.
Acabamos colocando nossa toalha ao lado das Ruínas, o
estranho retângulo de ruínas romanas plantado no meio de um campo em
Indianápolis. Não são ruínas de verdade: são, tipo, uma recriação escultural de
ruínas construída oitenta anos atrás, mas tinham sido tão malcuidadas que
acabaram meio que virando ruínas de verdade por acidente. O Van Houten iria
gostar das Ruínas. O Gus também.
Então nos sentamos à sombra das Ruínas e fizemos uma
‚boquinha‛.
— Você quer passar filtro solar? — a mamãe perguntou.
— Não, obrigada.
Dava para ouvir o vento balançando as folhas, e naquele
vento viajavam os gritos das crianças no playground, a distância, descobrindo
como continuar vivas, como percorrer um mundo que não foi feito para elas ao
percorrer um playground que foi.
O papai me viu observando-as e perguntou:
— Você sente saudade de correr de um lado para outro desse
jeito?
— Acho que sim, às vezes.
Mas não era nisso que eu estava pensando. Só estava tentando
reparar em todos os detalhes: a luz nas Ruínas arruinadas, a criancinha que mal
conseguia andar descobrindo um graveto no canto do playground, minha
infatigável mãe ziguezagueando a mostarda no sanduíche de peru dela, meu pai
dando batidinhas no smartphone no bolso e resistindo à tentação de dar uma
espiada, um cara jogando um frisbee que seu cachorro ficava correndo para
alcançar e depois levar de volta para ele.
Quem sou eu para dizer que essas coisas podem não durar para
sempre? Quem é o Peter Van Houten para afirmar como verdade a conjectura de que
nossa labuta é temporária? Tudo o que eu sei sobre o paraíso e tudo o que eu
sei sobre a morte está naquele parque: um universo elegante em movimento
constante, pululando com ruínas arruinadas e crianças estridentes. Meu pai
começou a balançar a mão na frente do meu rosto.
— Sintonize, Hazel. Você está aí?
— Foi mal, é, o quê?
— A mamãe sugeriu que fôssemos ver o Gus.
— Ah. Tá — falei.
* * *
Então, depois do nosso almoço no parque, fomos de carro até
o Cemitério Crown Hill, o último e derradeiro local de descanso de três
vice-presidentes, de um presidente, e do Augustus Waters. Subimos a ladeira e
estacionamos. Os carros passavam atrás de nós na Rua 38. Foi
fácil achar o túmulo do Gus: era o mais novo. A terra ainda estava amontoada.
Nada de lápide por enquanto.
Não senti como se ele estivesse ali nem nada, mas, mesmo
assim, peguei uma das bandeirinhas ridículas da mamãe e enfiei-a no chão, ao pé
do túmulo. Talvez quem passasse por ali pensasse que o Gus tinha sido um
integrante da legião estrangeira francesa ou algum mercenário heroico.
* * *
A Lidewij finalmente escreveu logo depois das seis da tarde,
enquanto eu estava no sofá assistindo ao mesmo tempo à televisão e a alguns
vídeos no meu laptop. Imediatamente pude ver que havia quatro arquivos anexados
ao e-mail e quis abri-los primeiro, mas resisti à tentação e li a mensagem.
Querida Hazel,
O Peter estava muito bêbado quando chegamos à casa dele esta
manhã, mas, de alguma forma, isso acabou tornando o nosso trabalho mais fácil.
Bas (meu namorado) o distraiu enquanto eu vasculhava o saco de lixo no qual ele
guarda as cartas dos fãs, mas aí eu me dei conta de que o Augustus sabia o
endereço do Peter. Havia uma enorme pilha de cartas na mesa de jantar, onde
logo encontrei a do Augustus. Abri o envelope e vi que estava endereçada ao
Peter, por isso pedi a ele que a lesse.
Ele se recusou.
Fiquei com muita raiva naquela hora, Hazel, mas não gritei
com o Peter. Em vez disso, falei que ele devia à filha morta a leitura da carta
escrita por um garoto morto. Entreguei a carta ao Peter, ele leu tudo e disse —
e aqui o cito fielmente, palavra por palavra: ‚Mande a carta para a menina e
diga a ela que não tenho nada a acrescentar.‛
Eu não li a carta, embora meu olhar tenha capturado algumas
frases enquanto escaneava as páginas. Eu as anexei a este e-mail e depois vou
enviá-las pelo correio para a sua casa; seu endereço ainda é o mesmo?
Que Deus te abençoe e te guarde, Hazel.
Sua amiga,
Lidewij Vliegenthart
Cliquei e abri os quatro arquivos anexados. A letra dele
estava confusa, inclinada, o tamanho variando, a cor da caneta mudando. Ele
tinha escrito a carta durante vários dias, em graus de consciência variados.
Van Houten,
Sou uma pessoa boa, mas um escritor de merda. Você é uma
pessoa de merda, mas um bom escritor. Nós formaríamos uma bela equipe. Não
quero lhe pedir nenhum favor, mas, se tiver tempo — e pelo que vi, você tem
tempo de sobra —, fiquei me perguntando se poderia escrever um elogio fúnebre
para a Hazel. Tenho algumas anotações e tudo mais, mas se você pudesse
transformá-las num texto completo e coerente, e tal… Ou então só me dizer o que
eu deveria escrever de forma diferente.
O bom da Hazel é o seguinte: quase todo mundo é obcecado por
deixar uma marca no mundo. Transmitir um legado. Sobreviver à morte. Todos
queremos ser lembrados. Eu também.
É isso o que me incomoda mais, ser mais uma vítima esquecida
na guerra milenar e inglória contra a doença.
Eu quero deixar uma marca.
Mas, Van Houten: as marcas que os seres humanos deixam são,
com frequência, cicatrizes. Você constrói um shopping center medonho ou dá um
golpe de Estado ou tenta se tornar um astro do rock e pensa: ‚Eles vão se
lembrar de mim agora‛, mas: (a) eles não se lembram de você, e (b) tudo o que
você deixa para trás são mais cicatrizes. Seu golpe de Estado se transforma
numa ditadura. Seu shopping center acaba dando prejuízo.
(Tá, talvez eu não seja um escritor tão de merda assim. Mas
não consigo organizar minhas ideias, Van Houten. Meus pensamentos são estrelas
que eu não consigo arrumar em constelações.)
Nós somos como um bando de cães mijando em hidrantes. Nós
envenenamos as águas subterrâneas com nosso mijo tóxico, marcando tudo
como MEU numa tentativa ridícula de sobreviver à morte. Eu
não consigo parar de mijar em hidrantes. Sei que é tolice e inútil — epicamente
inútil em meu estado atual —, mas sou um animal como qualquer outro.
A Hazel é diferente. Ela anda suavemente, meu velho. Ela
anda suavemente sobre a Terra. A Hazel sabe qual é a verdade: é tão provável
que nós consigamos ferir o universo quanto é provável que nós o ajudemos, e é improvável
que façamos qualquer uma dessas duas coisas.
As pessoas vão dizer que é triste o fato de ela deixar uma
cicatriz menor, que menos pessoas se lembrem dela, que ela tenha sido muito
amada mas não por muita gente. Mas isso não é triste, Van Houten. É triunfante.
É heroico. Não é esse o verdadeiro heroísmo? Como dizem os médicos: em primeiro
lugar, não cause dano ou mal a alguém.
Os verdadeiros heróis, no fim das contas, não são as pessoas
que realizam certas coisas; os verdadeiros heróis são as que REPARAM nas
coisas. O cara que inventou a vacina contra varíola não inventou nada, na
verdade. Ele só reparou que as pessoas que tinham varíola bovina não pegavam
varíola.
Depois que a minha tomografia acendeu como uma árvore de
natal, eu entrei furtivamente na UTI e vi a Hazel quando ainda estava
inconsciente. Entrei andando atrás de uma enfermeira de crachá e consegui me
sentar ao lado da Hazel por, tipo, uns dez minutos antes de ser pego. Eu
realmente achei que ela fosse morrer antes que eu pudesse lhe contar que também
ia morrer. Foi brutal: o arengar mecanizado incessante da terapia intensiva.
Havia uma água cancerosa escura pingando do peito dela. Os olhos fechados.
Entubada. Mas a mão dela ainda era a mão dela, ainda quente, as unhas pintadas
de um azul-escuro quase preto, e eu simplesmente segurei sua mão e tentei
imaginar o mundo sem nós, e por mais ou menos um segundo fui uma pessoa boa o
suficiente para torcer que ela morresse e nunca ficasse sabendo que eu também
ia morrer. Mas aí eu quis mais tempo para que pudéssemos nos apaixonar. Creio
que meu desejo foi realizado. Eu deixei a minha cicatriz.
Um enfermeiro chegou e me disse que eu precisava me retirar,
que visitas não eram permitidas, e eu perguntei se ela estava melhorando. O
cara disse: ‚Ela ainda está fazendo água.‛ Bênção do
deserto, maldição do oceano.
O que mais? Ela é tão linda! Não me canso de olhar para ela.
Não me preocupo se ela é mais inteligente que eu: sei que é. É engraçada sem
nunca ser má. Eu a amo. Sou muito sortudo por amá-la, Van Houten. Não dá para
escolher se você vai ou não vai se ferir neste mundo, meu velho, mas é possível
escolher quem vai feri-lo. Eu aceito as minhas escolhas. Espero que a Hazel
aceite as dela.
Eu aceito, Augustus.
Eu aceito.